TONICATO MIRANDA (o sobrinho Carlinhos)
A esposa Lúcia, pediu-me, num sábado em março de 2022, para escrever alguma coisa sobre Tio Júlio. Ela queria dois ou três parágrafos, talvez um áudio, sobre fatos relevantes desse meu querido parente e amigo. E aqui devo dizer, nem todos parentes tratamos como amigos, seja por discordâncias de gostos; de trajetória de vida; de interesses; e até de posicionamento político. Mas com o Tio Júlio quase tudo isto se encaixava. Embora não seja um cinéfilo – muito mais ligado à música, à literatura – tínhamos pontos coincidentes em várias áreas. Mas importante é contar alguns causos sobre o Tio Júlio. E me perdoe Lúcia pois vou exceder o solicitado, fazendo uma crônica.
A primeira vez quando tive consciência da forte presença do Tio Júlio, foi quando chegou em minha casa, no Grajaú, no assento de um moto Harley-Davidson preta. Na ocasião ele vestia uma jaqueta de couro também preta, cheia de botões de metal prateados. Para mim, debaixo de meus doze anos, Tio Júlio parecia James Dean saindo direto da tela do cinema. Embora ainda assistisse Roy Rogers na TV, seriado onde o cowboy andava de moto também, o perfil do Tio Júlio no início dos anos 60 mas parecia com Dean e a juventude meio “transviada”.
A segunda vez a lembrar do Tio Júlio, foi quando fui à Rua Ernesto de Souza, no Andaraí. Na casa dos meus avós ele tinha um quarto separado do corpo principal da residência. Para ter acesso a ele, tinha de ser subida por uma escada, com uns vinte e cinco degraus, e espelhos com dezoito centímetros de altura. Ali era o esconderijo do gigante. Acho que ele já estava estudando Engenharia e não queria interferências. Uma única vez me deixou entrar naquele quarto grande, mas por poucos minutos.
A terceira vez trata-se de uma visita anos atrás que fiz ao Rio, quando Tio Júlio, se prontificou a ficar comigo e me levar a cinco museus ao mesmo tempo num só dia, com direito a almoço na Rua do Ouvidor, e café depois na Confeitaria Colombo. Ainda lembro a indignação dele, com aquele beiço amuado por não ter conseguido entrar no Museu do Amanhã. Sentado num banco de praça, desconsolado, dizia “Isto é um absurdo!” “Onde já se viu, marcar com antecedência, a visita de um museu!”.
Mesmo assim conseguimos assistir uma exposição sobre os Impressionistas, no Centro Cultural do Banco do Brasil. Ocasião em que vi por longo tempo – nunca antes tinha tempo – alguns quadros do Paul Gauguin. Para culminar este grande passeio, levou-me à Livraria Cultura, na Cinelândia. O Tio Júlio era assim – um entusiasmo exacerbado nas suas gratuidades. Quando gostava de uma pessoa fazia tudo para a agradar. Mas também quando tinha antipatia de alguém… De início sobrevinha uma explosão, mas logo depois esquecia, porque seu coração era grande demais para guardar mágoas. Certamente a pessoa ainda teria uma segunda chance com ele.
Uma quarta e última recordação foi quando o hospedei em minha casa em Curitiba. Ele estava ali porque consegui trazê-lo para uma palestra sobre cinema no IPPUC – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba. De início, ele ficou preocupado, nervoso, pois tentamos reproduzir um dia antes o vídeo que havia montado da sua apresentação, mas não conseguimos. Então fomos a um estúdio de gravação conhecido que resolveu nosso problema. E, em cima da hora, fomos para a palestra.
Com o auditório do instituto lotado – capacidade de não mais de sessenta pessoas sentadas –, tinha pessoas penduradas nas janelas-portas lateral; tinha gente nos dois corredores em pé; tinha gente sentada no chão no palco. Tio Júlio fez um estrondoso sucesso. Mostrou como o Cinema Brasileiro deu seus primeiros passos; quais as grandes fitas cinematográficas; a importância de alguns diretores. Mostrou tudo e mais um pouco. Foi aplaudido de pé.
Mais tarde, um dia depois, quando já tinha partido de Curitiba, muitos colegas vieram até minha mesa de trabalho me cumprimentar, e dizer “seu tio é demais”.
Puxa, não tive tempo de me despedir dele. De tomar um outro café na Colombo, ou no antigo Palheta, na Praça Saenz Peña, onde morava e onde ainda mora a Tia Lúcia. Pois é, posso dizer que meu Tio Júlio era demais. E ainda é. Pelo menos para nós que ainda guardamos sua memória criativa, explosiva, generosa e inteligente.
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Por ocasião da mostra “Homenagem a Julio Cesar de Miranda”, este espaço busca ainda ser uma espécie de memorial, um local onde estão recolhidos uma série de breves depoimentos escritos ou em vídeo enviados por muitos de seus amigos e companheiros de vida. Assista aos filmes na Cinemateca do MAM online de 1º a 30 de abril de 2022.
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