Sombras da Espanha nas Anas de Saura

por Carlos Alberto de Mattos

Cria corvos (Cría cuervos, 1976).

A grosso modo, a obra de Carlos Saura (1932-2023) pode ser apreciada sob dois eixos principais: as alegorias sobre a burguesia espanhola e as celebrações de tradições cênico-musicais. Nesse segundo eixo brilham filmes como Bodas de sangue, O amor bruxo, Carmen e Sevillanas, filão que ele estendeu para fora da Espanha com Tango, Fado, Argentina e El Rey de todo el mundo (México). Por pouco não realizou um filme sobre a música brasileira.

Já o eixo das alegorias dramáticas ostenta duas obras-primas de sua primeira fase: Ana e os lobos e Cria Corvos. Ambos os filmes têm personagens centrais chamadas Ana, nome elevado à categoria de ícone de um mundo obscuro, doentio e autoritário.

Como numa gota d’água

Serguei Eisenstein dizia que o todo só pode ser representado quando se encontra perfeitamente refletido, como numa gota d’água. Ana e os Lobos reuniu, como numa gota d’água, todos os indicadores do regime totalitário que dominou a Espanha por quatro décadas: a sólida e secular propriedade residencial; o maternalismo patético e agonizante; o instinto militaresco e despótico; o fanatismo religioso; a repressão moral e sexual; a passividade enlouquecedora e a inocência traumatizada. Cada um desses traços aparece personificado por um morador da grande casa. E dentro dela, a princípio desorientado e perplexo, o cidadão comum, a governanta Ana.

Quase nada se sabe a respeito de Ana, de seus pensamentos e posição diante da vida. O seu comportamento só se revela quando em contato direto com as demais peças do sistema. O que interessa são as suas reações, sua face social, o elemento da alegoria. Ela é a grande indagação, a tentativa de engajamento e a humilde ironia do indivíduo.

A alegoria se explicita, por exemplo, na figura da mãe-Espanha ou na composição das duas sequências de plano geral sobre os personagens reunidos, todos caracterizados, no pátio frontal do casarão. Se em instantes como esses o filme toca o absurdo, este é absorvido inteiramente pelo realismo alegórico e aparece como o absurdo do próprio regime franquista, o seu grau de insânia, o cerco implacável que vai se fechando em torno de Ana.

Ana e os Lobos pode ser visto, ainda, como uma alegoria do desnudamento do poder. Ao localizar a ponta do fio de cada personalidade de seus patrões, Ana passa a fingir-se de vítima da teia, a enredar-se nela para, conquistada a confiança, puxar o fio da meada. Por fim, passa a conhecer alguma coisa do mistério, a direção para onde aponta cada peça da engrenagem. O militarista José, o sexomaníaco Juan e o místico Fernando percorrem caminhos diversos que vão dar num mesmo ponto: o exercício do poder sobre Ana. Ou seja, os diferentes grilhões com que o franquismo aferroava o povo espanhol desde a guerra civil. As presas dos lobos, vistas como numa gota d’água.

Uma anatomia da moral infantil

Processo semelhante de desvendamento de uma estrutura familiar alegórica se dá em Cria Corvos, mas agora com desdobramentos bastante distintos. Retirada a fórceps do ventre materno, é como se a pequena Ana, já aos oito ou nove anos, custasse a se desprender da mãe. Não é, portanto, com bons olhos que ela vê a mãe falecer de uma doença incurável, agravada pelo desprezo do marido, por sua vez envolvido com uma amante, esta casada com um seu colega de farda. Nos ambientes penumbrosos da casa, Ana encontra razões bastantes para inquietar-se e produzir fantasias delirantes.

Sua família é um núcleo em processo de desagregação e apodrecimento, mergulhado em mentiras, traições e falso moralismo. Pouco a pouco, ela vai tomando conhecimento das ligações escusas, dos sofrimentos ocultados e dos murmúrios abafados que se acumulam pelos desvãos da casa. A mistura de pavor e curiosidade gera na menina precoce um surpreendente desejo de vingança e uma fantasia de onipotência em relação à vida e à morte dos parentes.

O título do filme, retirado do provérbio espanhol “Cria corvos e eles te arrancarão os olhos”, soa como uma terrível advertência sobre as influências do meio familiar na formação da mentalidade infantil. Ana, porém, tem peculiaridades que comprometem um pouco a generalização alegórica. A precocidade, por exemplo, a diferencia das crianças comuns. Basta comparar o seu comportamento com o da irmã mais velha e o da caçula. Ana é o que se costuma chamar de “criança-sanduíche”, desprovida de privilégios, enigmática no seu isolamento, cérebro constantemente em ebulição. Juntem-se a isso o fantasma da insônia e o apego à imagem da mãe morta para se ter a ficha completa de um caso especial.

Em oposição às cândidas imagens dos retratos de família estão o rancor de parte a parte, as queixas da mãe enferma e da avó muda e paralítica – enfim, a total invalidade de viver. É curioso notar que, nesse quadro, a presença masculina é intrusa, por que não dizer maléfica. A alegoria franquista aqui se deixa sobrepor pelas vicissitudes da família burguesa e de uma suposta moral infantil.

Depois de adulta, Ana parece uma mulher como todas as outras, apenas com a (des)vantagem de não acreditar no “paraíso infantil, na bondade e ingenuidade naturais das crianças”. Sua infância cuidou de lhe providenciar esse ceticismo, do qual ela passa a falar com um pouco de frieza e muita segurança.

Embora o argumento o permitisse, Saura deixou de lado todo freudianismo fácil, preferindo bater às portas do horror e do surrealismo. Não são poucos os momentos em que a tensão anímica quase explode no pavor direto. De dentro da geladeira, os pés de aves acenam com claras referências a Buñuel. As barreiras entre fantasia e realidade, visões e vigília são tênues a ponto de tocarem o surreal.

Essa indistinção aparece também no que diz respeito aos três níveis cronológicos da narrativa: o tempo da mãe viva, o de depois de sua morte e os monólogos da Ana adulta. Por isso não houve reconstituição de época. O tempo é apenas uma escala de estados mentais. O que importa é a evolução interna de Ana, e não a da cidade ou dos automóveis. A manipulação livre do tempo voltaria a caracterizar outros filmes de Saura, especialmente A prima Angélica, Doces momentos do passado e Antonieta.

Cria corvos e Ana e os lobos formam uma espécie de unidade já a partir do prenome das protagonistas e da presença de Geraldine Chaplin (então esposa de Saura). Ela faz a governanta de Ana e os lobos e tem um papel duplo em Cria corvos, como a mãe e Ana adulta. Este filme tem, ainda, uma possível influência de O espírito da colmeia, obra-prima de Victor Erice realizada dois anos antes. O filme de Erice revelou a pequena Ana Torrent, que ali também fazia o papel de outra Ana, menina que, impressionada com o filme Frankenstein, embarcava em insólitas experiências fundadas no desconhecimento e nos pavores infantis. São os olhos grandes e expressivos de Ana Torrent que ancoram a atmosfera inquietante de Cria corvos.

Ana e os lobos (1973)

Ana e os lobos (1973)

Cria corvos (1976)

Este artigo faz parte da Homenagem a Carlos Saura que a Cinemateca do MAM promove em abril de 2023.






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