Um olhar para a crise – os filmes de Rodrigo de Oliveira

RAUL ARTHUSO

Rodrigo de Oliveira Foto: Leo Lara

O jovem cinema brasileiro, que transformou o panorama do campo autoral a partir da segunda metade da década passada, tem sido um importante sismógrafo da crise brasileira nos últimos vinte anos. Os matizes vão da denúncia militante, atuando de forma direta em questões localizadas, à internalização radical no âmbito dos afetos, traduzida em luto por um elo perdido com a utopia de uma transformação ética, estética e sensorial do mundo. O dedo em riste e a melancolia da ruptura diante de uma nação incompleta. O cinema brasileiro autoral dos anos 2000 mostrou diversas possibilidades cinematográficas para lidar com a inquietação de artistas diante do abismo.

Rodrigo de Oliveira faz parte da primeira geração de cineastas no Brasil com uma relação orgânica com as mídias digitais. Não só no campo da produção de imagens (câmeras digitais portáteis que permitem um cinema mais ágil e espontâneo, com equipes menores e horizontalizadas), mas também da produção de conhecimento – com o compartilhamento de arquivos digitais, criando uma cinefilia menos dependente do precário mercado de lançamentos nas salas de cinema do país, e da crítica de internet, com novas ideias originadas dessa nova prática cinéfila.

Oriundo da atividade crítica, Rodrigo fez parte da Redação das duas principais revistas online dos anos 2000, Contracampo e Cinética. Ambas se baseavam em duas grandes tendências ideológicas, com diferentes ênfases em momentos diversos: o resgate da tradição moderna do cinema brasileiro, rediscutida e tornada colateral no período conhecido como cinema da retomada; e a atualização do cenário cultural nacional com o cinema de ponta circulante nos grandes festivais e circuito cinéfilos dos países do Norte global – produção que raramente chegava às salas brasileiras, exceto em grandes eventos, como a Mostra de Cinema de São Paulo e o Festival do Rio, ou pela internet. Esses serão dois valores importantes para a geração do novíssimo cinema brasileiro.

Para além da atuação crítica, isso se encontra em Todos os Paulos do mundo, dirigido em parceria com Gustavo Ribeiro. A presença figural de Paulo José costura diferentes tempos, gestos, afetos, memórias, fazendo dele uma personagem – segundo o próprio, uma personagem é mais interessante que qualquer pessoa – que catalisa o trajeto do cinema no Brasil nos últimos cinquenta anos. Essa tradição moderna é uma matriz ética de continuidade entre arte e vida, manifesta em diversos filmes autorais brasileiros das duas últimas décadas – em contraste com a “profissionalização” de modelo fordista das equipes de filmagem nos anos 1990. A homenagem aqui ultrapassa a pessoa Paulo José e engloba um modo do fazer cinematográfico a ser valorizado por sua singularidade e força criativa que este ator simboliza. Uma vida no cinema, e também de cinema.

Ao mesmo tempo, invenção e atualização se misturam na busca por um cinema no compasso com o melhor da produção contemporânea vinda da Europa e da Ásia. Essa geração realiza filmes de novas maneiras – coletivos, equipes reduzidas e interações colaborativas –, trazendo diferentes formas de abordagem da realidade brasileira alinhadas à estética de fluxo: a desdramatização das narrativas, a abordagem fluida do tempo e do espaço na encenação, a recusa da criação de sentidos demarcados, o apagamento das fronteiras entre ficção e documentário. Enfim, a crise da representação incorporada como potência estética no cinema de ponta desde a virada dos anos 1980-90 nos principais festivais do mundo. Nesse sentido, o cinema de Rodrigo de Oliveira ocupa um lugar peculiar, pois ao mesmo tempo que investiga essas formas, em compasso com a geração, faz sua crítica ao colocar em discussão esses pressupostos.


As Horas Vulgares, sua estreia na direção, codirigido por Vitor Graize, produtor parceiro de seus filmes seguintes, aborda motivos caros de seus companheiros de geração (como Luiz Pretti, montador do filme, e codiretor de Estrada para Ythaca e Os Monstros): a amizade como núcleo criativo, social e político; as imbricações entre arte e vida, uma certa cartografia do espaço de vivência, a presença forte da subjetividade das personagens a partir de seus afetos, o sentimento de fracasso no mundo contemporâneo. Filmes como A Alegria ( e Os Monstros viam nesses motivos formas de resistência aos imperativos da vida no capitalismo globalizado e suas padronizações, que atingem em cheio a vida no Brasil dos anos 2000.

Em As horas vulgares, os sinais estão turvados, embrenhados no soturno da noite desse reencontro entre amigos que já não é prazer e proteção, mas mal-estar, incompatibilidade, desconforto. Amizade e arte já não bastam como proteção. Aparecem como retratos de uma memória afetiva guardada numa caixa difícil de lidar. A noite de Vitória não convida ao desconhecido. A cartografia do espaço intensifica as ilhas de subjetividade de cada personagem.

Rodrigo de Oliveira não discute apenas os motivos. Os pressupostos formais de sua geração são também colocados em crise. Essa ideia de crise, central no cinema brasileiro contemporâneo, encontrou terreno fértil na contestação formal da representação dramática. A crise social é incorporada numa crise das formas cujo substrato da “invenção” possibilita aos cineastas investigar. Rodrigo, por sua vez, coloca a própria crise em crise, buscando na potência da dramatização, da representação cênica, da crença na mise-en-scène como criação de sentidos os recursos para figurar essa crise da realidade e das formas de representá-la. A composição marcada, de encenação e texto, chama atenção para os ruídos produzidos pelas imagens. O cineasta vai buscar nas entranhas da representação as fissuras sociais, afetivas, políticas e formais do mal-estar contemporâneo. Uma navalha na carne.

A partir de Teobaldo morto, Romeu exilado, seu cinema se volta para a retomada de signos da cultura ocidental de diferentes materiais – artísticos, históricos, religiosos – e sua reinserção transfigurada em dramas contemporâneos, especialmente a simbologia cristã. Rodrigo investiga nas imagens da cristandade e seus textos sagrados o curto-circuito entre sagrado e profano, corpo e espírito, vida e morte, como se buscasse nessa tradição um mal congênito.

A ambiguidade iconográfica da odisseia sobre paternidade de Teobaldo… ou da maternidade em Eclipse solar é temperada pela música de concerto que nos leva diretamente a uma tradição erudita. Mas os anjos e diabos desses filmes carregam em si as manifestações mais diversas, como o Fausto clássico de Goethe, o moderno de Thomas Mann e também o pós-moderno da versão cômica do Mefistófeles de Chapolin.

A crise não começou ontem e continua a se atualizar, pois ela mora dentro de cada um, como a peste contagiosa citada em Ano Passado Eu Morri. Nesse filme, os temas da morte, do fim e do fracasso se materializam numa relação amorosa relembrada quando o protagonista, interpretado pelo próprio Rodrigo de Oliveira, está à beira da morte. Desde o título, a presença de textos da literatura moderna e contemporânea, da canção, além da crítica de cinema, transfiguram os valores. Morte e nascimento, Deus e diabo, eterno e contingente, masculino e feminino, as diferentes materialidades da imagem convivem, como numa batalha interna, chocando-se nos signos, motivos e clichês da cultura ocidental. O que apreendemos dos símbolos que habitam nosso mundo é, de certa maneira, resultado da violência do sentido que a sociedade dá às coisas – inclusive à crise.

O gesto de discutir os sentidos a partir de sua própria criação, redescobrir simbologias através de imagens que rediscutem símbolos e seus significados, é uma espécie de religião diabólica no contexto cultural brasileiro hoje. Os mais amados, abordagem direta do poema bíblico em livre adaptação ao Brasil bolsonarista do desastre e da ruína, nos lembra que o apocalipse não é o fim em si de todas as coisas, mas uma possibilidade de revelação. Diante da crise social, política e cultural brasileira – que não começou ontem – os filmes de Rodrigo de Oliveira são revelações sobre fissuras, enfrentamentos e afetos para o tempo próximo. Quem tem olhos, veja.

Raul Arthuso é cineasta, roteirista, crítico de cinema e doutorando em Meios e Processos Audiovisuais.

Texto publicado em 4 de abril de 2021.

A mostra O Cinema de Rodrigo Oliveira conta com o apoio da Vitrine Filmes.



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