“Cinema mesmo, é o que nem se vê”

SILVIE DEBS

É com grande tristeza que soubemos da morte de nosso amigo e colega brasileiro José Carlos Avellar, durante o Festival Cinélatino de 2016, festival ao qual ele nos acompanhou tantas vezes. Fiel e aficionado, desde a primeira hora, ele partilhou conosco sua paixão pelo cinema, através de indicação de filmes, participação em debates e publicação de artigos em nossa revista. Queremos, por isso, fazer-lhe, de coração, uma última homenagem. 

O que, num primeiro momento, poderia se anunciar como um dever doloroso, graças à personalidade de José Carlos Avellar tornou-se um festival de cinema, uma reunião de amigos, num ambiente de eterna adolescência. Durante uma de nossas últimas reuniões no pátio ensolarado do Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, ele me ofereceu os folhetos da programação caprichada, cujas páginas de rosto eram a imagem de sua curiosidade universal: Pierre Etaix, Primeiros encontros, A batalha de Argel, A grande ilusão, Eisenstein e as artes, José Luis Guerin, Libertários/Chapeleiros, William Kentridge, Bela Tarr, Tomas Gutierrez Alea, Nostalgia da luz, Patrício Guzmán, etc. É pouco dizer de seu apetite insaciável por novas criações e de sua memória cinematográfica. De todos os cargos que ele ocupou em sua vida dedicada ao cinema, foi ali o lugar onde ele foi capaz de exercer, ao mesmo tempo, as várias facetas de sua paixão: pensar o cinema através da programação, conduzir discussões com o público e diretores, publicar textos críticos, editar filmes do cinema mundial para a coleção de DVD do IMS; servir à cinefilia e treinar novos públicos; manter contato com os diretores, incluindo as novas gerações. 

Um traço característico seu foi precisamente esse dom natural de combinar amizades antigas e novas. Em sua prática de criador e de idealizador, José Carlos Avellar trabalhou regularmente com seus velhos amigos cineastas, tais como Geraldo Sarno, para o lançamento do seu livro Cadernos do sertão (2006), ou Zelito Viana, para a produção do documentário Mapa 50 años: 50 Minutos de conversa com Zelito Viana (2015), sem, contudo, deixar de lado os jovens cineastas, que sempre incentivou. Prova disso foi sua dedicação com deleite às entrevistas com os diretores da “retomada”, na maravilhosa aventura da edição da revista Cinemais, idealizada ao lado de seus cúmplices Carlos Alberto Mattos, Geraldo Sarno e Ivana Bentes, de 1996 até 2005.

Na verdade, o exercício do diálogo e da entrevista ocupou um lugar de destaque tanto em sua vida quanto no cinema. Quantas vezes ele insistiu, em suas análises, na importância do diálogo, especialmente em documentários, como, por exemplo, em sua leitura magistral de Viramundo? Provavelmente não é uma coincidência que ele tenha contribuído também para o retorno de Eduardo Coutinho ao cinema, que logo desenvolveu seu “cinema da fala”. Nesse diálogo intergeracional permanente, após a extinção da Embrafilme (1969-1990), quando assumiu a liderança da RioFilme, apoiou o renascimento do cinema brasileiro, incentivando a co-produção e a distribuição: devemos-lhe algumas pepitas, como Central do Brasil (Walter Salles, 1998), Lavoura arcaica (Luiz Fernando Carvalho, 2001) e Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2002). Alias, foi no próprio escritório da RioFilme que o encontrei pela primeira vez, quando apenas iniciava minha pesquisa sobre o cinema brasileiro. Ele foi de uma generosidade e de uma ajuda preciosa, num momento em que a internet e os DVDs ainda não existiam. Como não conhecia bem a cidade do Rio, nem seus segredos de cinéfilos, ele me indicou uma lista de lugares mágicos para guiar minhas incursões e para que eu pudesse encontrar filmes em VHS em locadoras, com dicas de onde fazer cópias e de sebos onde buscar os raros livros de crítica cinematográfica.

Essa disponibilidade para o outro, independentemente do seu grau de envolvimento com o cinema, era outra característica de José Carlos Avellar. Sempre jovial e alegre, ele me confessou um dia que não havia melhor trabalho no mundo do que ser pago para ir ao cinema! E essa é a escolha que ele fez depois de ter ocupado vários cargos no âmbito da realização de cinema (em direção, fotografia, edição e produção). Nunca parou de percorrer todas as estradas laterais para se tornar um verdadeiro incentivador da criação e uma ponte entre o Brasil e a América Latina, por um lado, e entre o Brasil e os outros países da Europa, por outro. Jornalista, ensaísta, professor, curador, gestor cultural, diretor de festival e poliglota, ele seguiu os altos e baixos da produção cinematográfica brasileira, sempre encontrando a melhor maneira de servir à 7a arte. Provavelmente, achou mais gratificante pensar o cinema do que fazer cinema.

De fato, pensar e/ou imaginar o cinema era ao que ele se dedicava a cada dia. Desde seus primeiros textos até os últimos, o convite à imaginação sempre teve um papel fundamental, o que conferiu também à sua escrita um estilo inconfundível. Ler José Carlos Avellar era como comprar um bilhete para a liberdade de imaginar. Foi assim que, em 1980, a crítica do filme Providence, de Alain Resnais, começou com esta frase emblemática: “Imagina-se o espectador dentro da cabeça de um personagem”. Algumas décadas mais tarde, quando foi convidado a escrever um roteiro para Los cuadernos de cinema 23, do México, ofereceu, naturalmente, um texto intitulado “Roteiro para a imaginação”, que começa com a mesma injunção paradoxal: “Imaginemos um festival de cinema feito antes dos filmes”.

E se realmente imaginar o cinema fosse tão importante quanto fazê-lo? “Imaginemos a relação entre o trabalho de criar filmes e o trabalho de criar reflexões sobre o cinema como ações complementares, que funcionam uma para a outra, alternadamente, como os tempos do interior e os tempos do exterior de qualquer processo criativo”, escreveu, em sua análise das relações entre as indústrias de cinema da América Latina, nos anos 1950/1960. Não é este, de fato, um fator-chave para a criação? Por isso, agrada-me hoje imaginar, na pura tradição dos poetas de cordel do Nordeste, o encontro, no céu, entre José Carlos Avellar e todos os cineastas do mundo.

Sylvie Debs é Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Le Mirail, de Toulouse. É considerada uma das maiores especialistas de cinema brasileiro na França.

Publicado originalmente em: Sylvie Debs, « “Cinema mesmo, é o que nem se vê” José Carlos Avellar (1936-2016)», Cinémas d’Amérique latine [En ligne], 25 | 2017, mis en ligne le 11 juillet 2019, consulté le 26 juillet 2021. Link aqui.

Tradução: Sylvie Debs
Revisão: Lucia Castello Branco



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