01 set 2018 - 10 mar 2019

curadoria Hernani Heffner
Lei de Incentivo à Cultura
Mantenedores do MAM Rio Rede D'Or, Petrobras e Techint
Apoio Globo, Associação Brasileira de Cinematografia, Visom, Cinédia, Naymar, Cinemar, Lupa, Decine - CTAv, Delart
Realização Ministério da Cultura, Governo Federal

Galáxia(s) do Cinema

Máquinas, Engrenagens, Movimentos ou this strange little thing called Love

Qual o estatuto do cinema na vida cotidiana? É um lazer, um “entretenimento”, um instrumento educativo, de informação, de memória, uma arte? Ou um pouco de cada vetor? Costuma-se fracionar um mesmo objeto de muitas formas, a partir de muitas perspectivas e pontos de vista, de acordo com os interesses e aplicações em jogo, resultando daí uma imagem sempre parcial e por vezes artificial, que alimenta as disputas entre os diferentes olhares, os diferentes setores, os diferentes momentos históricos da sociedade. Mesmo assim, das fantasmagorias ao celular e ao VsD, com maior ou menor efeito/eficácia, trata-se sempre de imagens em movimento, associados ou não a uma trilha sonora, caracterizadas pela inscrição em um quadro/moldura, que articula os limites espaciais e temporais, internos e externos, relacionados a uma “ação”/acontecimento, cuja natureza final é ser em princípio imagem/retrato do mundo.

O cinema é ao mesmo tempo uma economia, uma tecnologia, uma forma de expressão, um repositório histórico e um objeto simbólico, proposto e reproposto incessantemente como diálogo e representação em torno dos caminhos e descaminhos dos mesmos grupos, segmentos, setores, classes, coletividades concretas, imaginadas ou virtuais na luta pela afirmação em meio à sociedade. A rigor é um produto do capitalismo industrial ocidental, lançado em fins do século XIX, que soube se adaptar continuamente às mudanças de “gosto” e se capilarizar através de novos artefatos, suportes, formas de comercialização e arranjos técnico-culturais, como a televisão e a internet.

O cinema como fato cultural se multiplica e se segmenta de muitas maneiras, criando usos/distinções/mercados de acordo com as possibilidades tecnológicas e os interesses visados. Mas em qualquer circunstância ele nunca deixa de ser o que é. As apropriações de sua natureza não o transformam significativamente, ainda que pareçam descobrir nele atributos e limitações novos. A “leitura” desses traços particulares pode ser múltipla, e nesta exposição está apenas uma combinatória delas, criada a partir da percepção maquinal imediata do meio e ao mesmo tempo tentando reconstituir a máquina invisível que constrói os derivativos do cinema, em suas passagens do tempo da “linha de montagem” dos grandes estúdios/fábricas do passado para a atual estratégia randômica e on-line de criação compartilhada pelas novas economias e divisões do trabalho.

Houve um tempo em que o mundo do filme, com seus conteúdos, formas, estilos, estéticas e ideologias, não se diferenciava tão substancialmente do mundo real. Não que as diferenças constitutivas de ambas as experiências não fossem percebidas. É que não eram tão importantes assim. O espectador do dia-a-dia considerava as ficções (incluindo as documentais) como relatos do mundo, não muito diferentes daqueles apresentados ao redor do fogo, e não sobre o mundo, algo que com a vertente moderna do cinema passou a chamar a atenção para o relato em si. Com a fetichização contemporânea da tecnologia, o suporte do relato chama mais a atenção do que a visão de mundo a ser apresentada, afinal um iphone é um “Iphone”. Não que não seja possível vivenciar o produto filme como um objeto em si mesmo, um relato em si mesmo, expectativa que temos para o percurso dessa exposição de materialidades e virtualidades cinematográficas. É o que propõe Andrei Tarkovski, procurando um tempo já superado de uma experiência fílmica original. E não esquecemos as dimensões videográfica e digital, pois do seu ponto de vista a televisão já tinha desmistificado e objetificado o cinema, confrontando-o com suas metamorfoses e tornando-o um objeto do passado, um repositório histórico revivido por locadoras físicas (VHSs, DVDs, Blurays) e virtuais (VsD – Vídeo sob demanda).

Poderíamos ter incluído no último grupo os arquivos de filmes, as cinematecas como a do MAM Rio, mas eles não são bibliotecas ou locadoras de filmes. São muito mais do que isso. São uma tentativa de constituir uma memória, do cinema e das sociedades, de rearticulá-la como uma grande narrativa histórica e, mais importante, de repropô-la como uma dimensão em aberto, viva, uma experiência sempre no presente. Nesse sentido, arquivos de filmes coletam o passado e o presente mas são repositórios endereçados ao futuro. Os artefatos reunidos aqui dão conta desse trabalho arquivístico e de sua ambição de ultrapassar o filme e as estruturas que o criam e reencontrar o impulso,  as engrenagens profundas, o movimento que articula e rearticula o processo histórico-cultural em que o cinema se insere, a sua Modernidade intrínseca e a Modernidade maior. Como processo ao mesmo tempo tecnológico e artístico, o cinema proporciona inúmeras transduções, explorando o movimento como princípio, energia, rotação, deslocamento, conceito e prática criativa fundamental em sua expressão audiovisual, o que o tornou o principal irradiador de idéias, práticas e sonho do seu tempo, a máquina-utopia benjaminiana por excelência.

 

 

Estética Maquinal

“O que caracteriza um cineasta são os meios que ele usa”. Eric Rohmer

As exposições de tecnologia são raras no Brasil. As exposições de tecnologia cinematográfica são ainda mais esparsas. Salvo a iniciativa pioneira e efêmera de Jurandyr Noronha, que montou um Museu do Cinema em 1970, apenas mais algumas coleções de caráter público se formaram, como as do Museu de Cinema Antônio Vituzzo, do Cine Memória, criado por Vladimir Carvalho, e do Museu da Imagem e do Som de Camboriú, iniciativa de Fernando Delatorre. As milhares de peças reunidas ganham um complemento significativo na iniciativa de dezenas de colecionadores particulares. Mas ainda são de certa maneira invisíveis para o público.

A Coleção da Cinemateca do l, apresentada parcialmente nesta exposição e complementada com peças vindas de outros acervos, é em certa medida herdeira do conjunto original coletado por Noronha. Neste sentido espelha uma visão evolutiva da cinematografia brasileira, destacando seus instrumentos de criação mais decisivos, singulares ou persistentes. Sem encobrir a relação umbilical entre a obra fílmica e os equipamentos, insumos e materiais que a compuseram, além dos artistas que as utilizaram, modificaram ou reinventaram, Galáxia(s) do Cinema procura lançar um olhar mais amplo sobre as peças e documentos que compõem não só a criação como a vivência do cinema. Põe em relevo também a inserção dessa tecnologia particular no contexto moderno e taylorista, com suas padronizações, interdependências e utilitarismos, e no horizonte digital que passou a nos rodear.

Certamente uma câmara Arri 35, modelo IIC, como objeto industrial seriado, pode ser encontrado em muitos outros acervos, sem qualquer variação maior. O que a destaca quase sempre é a associação com alguma obra importante ou uso inovador para além de seus atributos de base. Mas são justamente estes atributos que devem ser considerados mais fortemente nesta exposição. Toda tecnologia tem um fundamento primordial, um modus operandi particular, um design específico, uma ergonomia funcional, uma aplicação direta, gera sentimentos de potência e mistério e carrega uma poesia oculta. Produzir captura, fixação ou reprodução do movimento visual ou sonoro, entre outros objetivos, não deve ser considerado um aspecto menor ou inerente. Ao contrário do que se pensa, os equipamentos sempre extravasam de sua funcionalidade imediata para o coração e inconsciente do mundo tecnológico de determinada época.

A era industrial, da qual o cinema foi um representante maior, pode ser percebida aparentemente como um tempo de máquinas mecânicas – associadas a técnicas físicas, óticas, químicas, de engenharia e arquitetura –, moldadas principalmente no metal duro, frio, “feio”. Mas o que é o sistema de elementos mecânicos internos? Mero conjunto de peças em movimento e que produzem movimento? Engrenagens são também algo mais abstrato: rotações, giros, torques, ciclos, interconexões, ritmos, formas, processos, transmissões, tropos, metáforas, imagens conceituais do Moderno. Engrenagens que performam o mesmo movimento circular, como quase tudo em cinema, em verdade são cíclicas, estáveis, repetitivas; não progridem. A aspiração moderna, porém, era estar em movimento contínuo, sustentável, vigoroso, como queriam as vanguardas históricas. Utopicamente em moto-perpétuo, termo cuja tradução em russo é Dziga Vertov, nome artístico escolhido por David/Denis Kaufman. O cinema precisou pensar sua natureza  desde muito cedo para impor-se como arte, a mais tecnológica de todas.

Herdeiro da revolução científica burguesa o primeiro padrão-cinema, a tecnologia foto-química – seguiu-se a magnética, mais associada à televisão, e a algorítmica –, durou cerca de 120 anos, com variações e nuances expressivas. Endereçadas a um futuro utópico e redentor as máquinas modernas à engrenagem, entre elas câmaras, projetores, mesas de montagem e gravadores, mantiveram o status-quo e mantiveram-se imutáveis em sua essência, a despeito da adição de motores, válvulas, transistores e circuitos. O corte veio com a revolução algorítmica, com o computador, com a informática. Tecnologia eletro-eletrônica que virtualiza mundos, o dígito em suas quase infinitas possibilidades combinatórias instrumentaliza a máquina. Em vez de operação, processamento. Em vez de transmissão, permanência latente. Em vez da estabilidade, evanescência. A corrente elétrica não alimenta mais engrenagens, apenas pulsos organizados por uma “mãe” controladora. A “robotização” sempre foi o maior temor imaginário da era industrial, como o cérebro computacional o é da era pós-moderna.

O cinema digital admite variações e nuances? Sim, mas de modo muito sutil ainda e mais do que nunca associado às escolhas tecnológicas. Os sinais digitais são abstratos (intocáveis), discretos (descontínuos), randômicos (aleatórios) e uniformes (padronizados), mas podem ser diferentes em suas configurações. A racionalização e a serialização monocórdicas ambicionadas pelo capitalismo contemporâneo não se realizaram de todo. Antes propostas como analogias da natureza e como extensões dos corpos humanos, as máquinas, agora digitais, tornaram-se parcialmente independentes, e tentam se antecipar aos desejos de seus usuários e proprietários. Se querem como puros autômatos e como oráculos incontestáveis, além de atraentes e “amigáveis”. Nada mais de madeira e metal, matérias-primas tipicamente modernas, substituídas principalmente por plásticos, fibras, reciclados e sintéticos em geral. Elementos “frios”, sem condutividade, pulsão ou vibração. Não é uma oposição ou antagonismo mas uma percepção, aprendizado, performance diversa. Mais do que nunca cabe à arte, ao pensamento livre e à emoção sincera ultrapassar as superfícies, em busca do âmago (ou falta de) das coisas. Não olhar as máquinas em suas variadas modalidades como meros instrumentos, aparelhos, peças. O cinema como máquina das máquinas, como preconizou Roger Bacon, foi feito para a especulação, não apenas para o mero uso prático.

As tecnologias aqui expostas – maquinais, corpóreas, impressas, luminosas, sonoras, materiais –, além dos elementos artísticos que com elas dialogam – filmes, pinturas, fotografias, esculturas, objetos cinéticos –, tentam revelar não só um percurso artístico, uma cadeia produtiva, uma geografia de trabalho mutante e intercambiável, inclusive historicamente, mas também as qualidades inerentes a cada objeto tecnológico e documentos associados. Contemplá-los, inquiri-los, explorá-los é uma forma possível de aceder ao cinema em suas múltiplas metamorfoses, ao espírito moderno e ao contemporâneo, e ao contato mesmo com a tecnologia, as mais imediatas e as mais “ocultas”, em seus sentidos e alcance, beleza e terror, ação e resultado, conceito e preconceito, sentimento. Considere este espaço expositivo um grande estúdio, ou como um grande almoxarifado. Pense e repense os itinerários, as combinatórias, as performances possíveis. Como afirma o diretor de fotografia Vittorio Storaro “O cinema é incontestavelmente uma mistura de arte e tecnologia”.

Galaxia(s) do Cinema é um trabalho de reconhecimento e homenagem aquele que primeiro se apaixonou pelas máquinas cinematográficas: Jurandyr Noronha.

Hernani Heffner
Curador



Acessibilidade | Fale conosco | Imprensa | Mapa do Site