Nossas histórias – transcrição

Deise Pimenta

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Deise: Meu nome é Deise Pimenta, tenho 37 anos, estou residindo na cidade de Atibaia, no município de São Paulo. Sou paraense, minha família é do nordeste do Pará, de uma cidade chamada Acará, que é uma cidade Ribeirinha, então a população é majoritariamente composta por ribeirinhos, quilombolas e populações originárias, entre eles os 00:37 (inaudível), são alguns povos mais próximos de onde eu nasci. O meu povo é o 00:45 (inaudível).

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Deise, conta um pouquinho de onde tu é, de onde sua família é, por onde passaram e o que passaram. Quais são teus familiares? Como que chegam a você? O que chega?

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Deise: Grande parte da minha família, onde eu tenho conhecimento, até onde me contaram, nós somos de uma região amazônica no nordeste do Pará, na Amazônia. A família da minha mãe é uma família quilombola, do Quilombo Vila Formosa. A mãe da minha mãe vem do território chamado Galho Branco, que era o local no nordeste do Pará onde ela viveu a infância e juventude. Com a família do meu pai tenho pouco contato, mas também é originária da cidade do Acará, de um Igarapé que chama Mariquita. Minha família por parte de mãe é do alto Acará e a família do meu pai é do baixo Acará. A família do meu pai também tem origem indígena. A mãe do meu pai faleceu no parto, mas era uma mulher aldeada. Eu não a conheci, mas conheço meus parentes que estão residindo no Mariquita ainda. O trânsito da minha família se deu sempre pelos rios no Acará, eu cresci lá na beira do Rio Acará, nasci em casa e a minha infância inteira foi em território de Quilombo, que é vizinho dos 02:55 (inaudível). Eles fazem muitas ações juntas, coletivas. Quando eu pude entender o que era aquele lugar onde eu morava, se deu muito por conta da defesa do território. Lembro que nos barcos de passeio, que era o principal transporte da minha família no quilombo, a gente tinha que ter maneira de se proteger dos fazendeiros, isso há 15, 20 anos atrás. Ali eu já percebi que tinha alguma coisa diferente em ser daquele lugar. A gente sempre ouviu histórias de pessoas que eram mortas por estar defendendo seu território. E aí minha mãe saiu do quilombo aos 18 anos e foi para o Acará. No Acará ela engravidou de mim, eu nasci no Acará e cresci no território de quilombo, em férias. Minha família toda está na Amazônia, no Pará. A família do meu pai também continua, tenho uma irmã que viajou e morou no sul, mas retornou para a Amazônia. Os outros trânsitos, que são a minha bisa e meu biso, eu não tenho conhecimento. Meu tio por parte de mãe contava que minha bisa era uma mulher indígena, com cabelos muito compridos. Ela não falava português, ela viveu com meu bisavô, que é de quem o meu tio me conta, meio sequestrada porque ela não falava a língua. Meu tio fala que ela sempre ficava sentada no pilão, pilando algumas coisas e falava na língua dela enquanto ela fazia esse ofício. Foi o máximo de acesso a minhas parentas mais antigas que eu tive, foi por conta desse meu tio que contava essas histórias para mim. Acho que nesse processo de mudança eu saí do Acará aos 9 anos não retornei mais, saí do Acará por conta do trabalho infantil. Fui morar na cidade de Belém com uma tia que é irmã da minha mãe. Ela ajudava a me cuidar, no sentido de observar seu ia a escola, mas eu já fazia trabalhos domésticos na casa dela e aos 14 anos eu comecei a trabalhar mesmo na casa de pessoas que eu não conhecia como doméstica. O Acará foi o lugar que eu não retornei mais. Depois disso a minha mãe saiu do Acará e foi morar e Ananindeua, onde ela faleceu em 2017. Eu não fiquei em Ananindeua por conta dessa experiência de emprego doméstico. Em 2006 eu consegui, por intermédio de uma conhecida, uma oportunidade de sair de Belém para ser empregada doméstica no Rio de Janeiro eu tinha 19 anos, a mesma idade que a minha mãe teve, a mesma idade em que a minha mãe saiu também do território dela. A mulher ofereceu uma passagem de avião e uma carteira assinada, na época R$ 360, e eu aceitei. Ela me deu duas semanas para eu fazer a mudança. Eu estava em Ananindeua, então fui até lá o território da minha mãe estava no Acará, conversei com ela, ela ficou bem emocionada, falou que estava com medo de eu ir para o Rio de Janeiro, mas que entendia que eu podia trabalhar e ter outra vida e aí eu fui morar no Rio de Janeiro, em 2006. O meu deslocamento continua, porque eu vivi no rio 16 anos, cheguei em 2006, ainda como empregada doméstica eu fiz um pré vestibular no ano de 2008, em 2009 eu consigo passar para Universidade Federal do Rio de Janeiro e eu saio do emprego doméstico, do quartinho de empregada doméstica e vou morar na moradia da UFRJ para cursar o curso de serviço social à noite. Cursei serviço social durante cinco anos, me formei, permaneci no Rio e trabalhei em alguns lugares na Cidade do Rio de Janeiro como educadora social promovendo o curso sobre direitos humanos, que a área em que me especializei até que minha última saída foi para a cidade de Atibaia, que é onde eu moro, porque eu passei no concurso público para assistente social. Hoje trabalho na Secretaria Municipal de Saúde de Atibaia, articulando políticas intersetoriais. Uma coisa curiosa é que o Acará é um rio que dá nome a cidade onde eu nasci. Eu cresci num lugar em que o rio eram as ruas, eu fui para o Rio de Janeiro, que é o Rio, que tem lá na Baía de Guanabara, eu cresci vendo a Baía do Guajará e quando eu vou para Atibaia, Atibaia é uma palavra tupi-guarani que fala rio de correnteza tranquilas. Eu tento fazer um caminho de água sobre esses lugares. E tem muita recordação, tanto do Acará, aliás desde que eu saí de lá eu fui poucas vezes por conta do trabalho, por conta da dificuldade de dinheiro para poder estar com minha família, mas sempre tive na minha cabeça que estou fazendo coisas que me aproximam de lá embora, cada dia mais, eu esteja territorialmente à quilômetros de distância. Mas a própria universidade, quando eu entrei fui escrever sobre os trânsitos das meninas quilombolas e indígenas no emprego doméstico, o quanto que isso é a cara de um Brasil que se utiliza da escravidão das populações negra e indígena para o trabalho doméstico. Quando saio da graduação, volto de novo para lá como pesquisadora, mesmo sem ir lá por conta do acesso, mas para especialização eu fui estudar o avanço do agronegócio no meu território, que é o território quilombola e 10:42 (inaudível) que é o avanço de uma grande empresa chamada Agropalma que faz a mocultura do dendê. E no mestrado, porque eu passei para o mestrado na UFRJ, eu faço outro caminho que também é de referenciar o meu território, as lutas do meu território, as pessoas do território sobre o que que é o modo de vida quilombola e indígena na Amazônia, as lutas as trajetórias e os protagonismos.

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Porra!!! (risos) (inaudível) cíclica inteira a tua vida. O que uma hora te afeta, afeta o povo, afeta o território, outra hora tu tá lá investigando isso, em outro tempo, em outra posição.

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Deise: E a decisão de eu fazer esse esse olhar, que é o meu presente, é o meu futuro e é o meu passado. Por que que eu fui investigar emprego doméstico na graduação? Porque a minha mãe foi doméstica, minha avó foi doméstica, minha mãe analfabeta, morreu sem saber ler, ela não sabia escrever o nome dela, minha avó também não teve direito a alfabetização e teve uma vida toda no emprego doméstico. Eu faço esse caminho para trazer essas pessoas para roda, para falar do lugar que é esse lugar que é ser amazônida. Na graduação. no TCC que é o trabalho de conclusão de curso, eu conto do Rio que me viu crescer, eu conto os trajetos que eu fazia, eu conto dos canoeiros, dos mestres de canoa que antes das balsas chegarem… eu falo do meu trânsito. Tem um poeta, cronista, romancista que eu gosto muito que é o Dalcides Jurandir, que fala sobre esses trânsitos das meninas que saem, são raptadas, na infância ainda tem esse agravo de trabalhar como empregada doméstica. É um jeito de revanche que eu tenho, de usar daquele lugar que sempre me foi de muita dor, porque o emprego doméstico para mim sempre foi uma questão muito difícil, eu sempre me envia muito só, eu sempre pensava no meu quilombo, na minha mãe, nos meus irmãos, no que que eles estavam fazendo. Eu folgava de 15 em 15 dias, então não tinha condições de ir no Pará, eu ganhava R$ 150,00. Em Belém, quando eu era adolescente e fui trabalhar, eu ganhava R$ 150 para ficar com uma família todo tempo, indo para casa de praia deles e eu lá mesmo no Pará eu não tinha condições econômicas e tempo de ir para o meu território, que é o quilombo, que é aldeia, que é o Acará que para mim também é um território de tradição. Quando acabei a graduação e entreguei, falei “olha, o emprego doméstico no Brasil é isso aqui, é outra atualização da escravidão, da violência contra as meninas negras e indígenas, é o lugar do privilégio de uma elite branca, cosmopolita, urbana”. Estive no Acará e vi a cidade que eu fazia a pé, que a minha mãe contava as histórias da 14:32 (inaudível) que a minha mãe, na beira do rio, não ia mergulhar porque já tinha passado das seis horas e ela tomava banho de cuia lá na beira do rio. Ela me contava as histórias da cobra grande da 14:45 (inaudível), me contava que ela tinha um olho só porque o pescador acertou ela, porque ela ela estava querendo engolir uma cidade pequenininha. Todo aquele universo que eu vi e que eu reconheço, as esquinas do rio estava sendo destruído pelo agronegócio, aquilo me deu mais raiva ainda e eu falei assim “pois agora vou dizer, ouvir as pessoas que estão ali e que estão resistindo há 10 anos” que foi a chegada do agronegócio com seus modos de vida mesmo plantando, plantando seu açaí, tendo suas casas de farinha, plantando mandiocaba, fazendo nosso mingau de mandiocaba, bebendo açaí, plantando cupuaçu, pescando dos modos tradicionais em detrimento dessa dessa galera que é de fora e que vai lá para plantar a monocultura do dendê, para envenenar os rios, colocar o agrotóxico lá nesse lugar. O que me distancia do meu lugar é o que mais me aproxima do meu lugar, porque eu olho para Acará, eu olho para o Quilombo Vila Formosa, eu olho para aldeias dos parentes 16:13 (inaudível). Eu entendo que esse lugar é que me possibilita estar em qualquer outro lugar e preenchida de tudo do que eu preciso para permanecer com meu espírito ligado a esses lugares.

16:33
Antes de ir para a próxima pergunta, que eu acho que tu já deu algumas respostas, já provocou a próxima pergunta, impressionante como essas experiências de tua vida são marcadas por diferentes contextos, tempos, gerações. Sobre a raiva, lembrei de 17:02 (inaudível) falando da raiva ancestral. O que faremos, o que fazemos com ela? A próxima pergunta é sobre reconhecimento. Deise, como e quando você se reconhece 17:21 (inaudível) e o que é isso para a sua família?

17:26
Deise: Tentando organizar o que para mim faz sentido nesse percurso, porque a minha família majoritariamente vive no quilombo, muitos referenciam os Tembé no território, trocam e tem a identidade negra amazônida, que a gente chama, que são os afro-indígenas. A minha pele é parda, como dizem por aí, não sou branca e também não tenho a coloração de pele preta. Aquilo sempre me chamou um pouco de atenção das referências que as pessoas faziam sobre isso, “você tem cara disso, você tem cara daquilo outro” e nunca da referência dos parentes Tembé e eu senti uma imensa solidão de poder comungar com alguém e com coisas que me eram muito importantes de entender, por exemplo, a ordem do dia pelo pela lua, pelo sol. Isso meu tio Mandinho, que me criou, me ensinava. A vivência na aldeia eu não tive no território Tembé, só no território quilombola. Com o tempo eu fui conversando com os parentes da aldeia Tembé porque eu gostaria de me aproximar de lá do território, que é o lado, é muito grudado o quilombo e a Aldeia, e ele subir me recepcionou, foi muito afetuoso em dizer que a maioria dos Tembé também são moradores do Quilombo Vila Formosa, que minha avó, minha bisa, provavelmente são mulheres originárias que saíram da aldeia por motivo forçado ou raptadas, ou então por casamento com alguém que não é da aldeia e ficaram no território de quilombo. Isso era uma coisa uma coisa que para território era bem tranquilo por conta da proximidade territorial, mas também dos costumes, do que aproxima os dois povos que é o Quilombo Vila Formosa e os Tembé. A partir dessa acolhida eu fui me enchendo daquilo que meu tio contava em território de quilombo mas com uma referência, por exemplo, da agronomia que é uma das maiores áreas de conhecimento do meu povo 20:33 (inaudível) a ponto de terem estudos na Universidade Federal do Pará sobre a organização dos Tembé no ensino, na leitura dos astros, da lua, das estrelas para a agricultura, para a matemática e aí eu fui cada vez mais lendo, observando, aprendendo, me me aproximando de pessoas que, como eu, estavam longe do Pará mas que são pessoas originárias. Eu me cerquei dos 21:10 (inaudível), me cerquei de uma mana que é de Salinas, que é Tupinambá, a gente fez a nossa grande aldeia amazônida no Rio de Janeiro. E foi um grande reencontro, eu digo que não foi encontro, foi reencontro porque eu senti aquilo, eu sei que quando a minha avó me ensinava a rezar e falar com vento, ela tinha como referência as histórias que ela ouviu das mulheres do nosso povo, dos Tembé. Eu comecei também a pedir licença para as parentas que são aldeadas e compartilhar do que me fez estar fora desse lugar que também é minha casa, mas por algum motivo se tornou um lugar de distanciamento que é a aldeia. E foi também muito feliz porque aparenta 22:29 (inaudível), por exemplo, Tembé, é uma mulher incrível e também fala desse lugar, dessa construção mentirosa da inexistência entre as pessoas que são chamadas nacionalmente de pardas, de povos originários. Isso me deixou mais acolhida, mas é um caminho sempre feito pela minha necessidade de ter fé. O meu caminho, apesar de estar distante, ele é feito por todas essas pessoas, pela memória dessas pessoas e quando eu preciso, e é sempre que eu preciso, eu remonto os lugares, as história, as pessoas .A partir do momento que eu me referencio ao povo 23:31 (inaudível) é com todo esse esse desejo de que o território esteja de pé, que o agronegócio seja retirado do território quilombola e indígena, que a gente tenha o nosso espaço de demarcação, que a gente tenha o nosso espaço de soberania, de vida, de cultura, de fé garantidas, que é o agora que precisa do nosso conhecimento, que precisa de pessoas que entendam que a natureza e nós somos uma coisa, que o meu corpo e uma árvore têm a mesma importância. É isso que me faz hoje, cada vez mais, me entender parte de um povo. Em 2017 eu tive a grata felicidade de estar com essa minha aldeia que, como a gente se chama, é multifacetária, que é como aparenta 24:40 (inaudível), como a parenta Tupinambá. A gente foi para Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, e aí eu pude estar com as parentas Tembé durante o acampamento, o tempo todo. E é incrível como é familiar, como se a gente olhasse no olho delas e parece que elas já viram a gente em muitos outros lugares. Até me emociono, porque não tem uma diferença de você sentir, a diferença de elaboração de sentidos, é um reconhecimento mesmo, é um reconhecimento a partir do reencontro. Eu não uso a palavra “retomar” porque não me tiraram nada, tentaram muito e tentam todos os dias fazer com que eu me sinta perdida, sozinha, que eu me sinta como se algo tivesse sido tirado de mim, só que quando eu olho para mim, está tudo ali. Eu falo para mim mesma, nem coloco isso de maneira pública, não é o interesse meu, não estou aqui para isso. Mas eu me recoloco-me reposiciono estrategicamente a partir do lugar aonde eu estiver, tendo meu território como a minha maior orientação, no caso, o território quilombola, e Tembé e sinto que esse é o caminho que eu faço, eu me auto reconheço, me autodenomino por conta da investigação da família materna e tem o meu pai, que minha avó, que é uma ancestral mais próxima a mim, mesmo faleceu na aldeia, mas por eu não ter contato com meu pai, sei que a energia, a força e a presença do povo da minha avó paterna vive comigo, tanto quantos quilombolas de Vila Formosa sou eu também e eu sou aquela pessoa que saiu também. Eu sempre me recoloco. Quando eu era doméstica, adolescente, ou sentia muita saudade da minha mãe e como meu tio me ensinou a olhar o céu, a ler o céu e o nome da minha mãe é Dalva, quando a estrela ia saindo, eu ia para fora dos apartamentos onde eu morava, eu sempre conversava com a estrela e falava com a minha mãe, falava com meu lugar também, porque no Acará tem o céu onde todas as estrelas estão presentes, a gente não tem muita incidência de iluminação. Isso me faz me sentir parte, exercer o que eu sou mesmo sem estar lá perto sem ter tido a oportunidade de ter partilhas de experiências na Aldeia. Eu faço do lugar onde hoje é a Aldeia dos 28:11 (inaudível).

Natali

00:03
Natali: Olá, sou Natali (inaudível), tenho 27 anos, sou boliviana mas eu cresci aqui no Brasil desde pequenininha e agora estou em São Paulo.

00:14
Natali, conta de onde que vem a tua família, regiões. E por onde passaram, o que passaram. Qual é a trajetória da tua família?

00:35
Natali: Minha família é toda da Bolívia, por parte de La Paz, que é uma a cidade que não é como São Paulo, mas é uma cidade. Em La Paz tem regiões diferentes. Por parte da minha mãe que se chama (inaudível) que é uma parte um pouco mais tropical, mais quente de La Paz. Em La Paz é muito frio, mas tem essa parte bem quente, que não faz tanto frio, é onde tem as plantações de coca, onde tem frutas, tem muita coisa. Pela minha mãe, todos são de lá, minha família de lá é toda cocaleira, sempre trabalhando com campo. A família do meu pai é de 01:22 (inaudível), que é muito frio, que é a parte 01:27 (inaudível), onde eles moravam. Não lembro direito o nome do povoado deles, mas tem um lugar onde eles moravam e ambos também de regiões muito periféricas de La Paz, são de regiões bem difíceis. Houve época em que as pessoas sofriam muito, passavam muita fome. A família da minha mãe, quando ela era mais nova, ela teria que sair de casa. Com 8 anos ela saiu para trabalhar em outra família como empregada, para cuidar de crianças, para ela poder viver, poder se alimentar, porque a minha vó já não tinha condições de cuidar de todas as crianças, então ela e outra tia minha foram duas da família que foram para outras famílias. Minha mãe saiu com 8 anos de lá, foi morar com essa família 02:16 (inaudível) que era uma família que tinha grana. Acho que aos 15, 14 anos, por aí, ela saiu de lá e desistiu porque ela queria viver, queria ter mais dinheirinho, não queria mais trabalhar para famílias e aí ela foi para La Paz e também trabalhou lá com algumas famílias, trabalhou para La Paz cidade. Saiu do interior que seria e foi para cidade trabalhar, continuou com famílias e depois foi mudando. Fez várias coisas lá e nesse meio tempo meu pai passa por algo parecido. A família dele também era uma família pobre, que também que não tinha condições, eu acho que ele jovem saiu 02:52 (inaudível) e foi para outro estado, também acabou indo embora. Em algum momento ele vai para La Paz, volta e vai para cidade também e meus pais se conhecem lá numa oficina de costura. Lá tinha, acho que era uma oficina de costura, fazia roupas e se conheceram lá. Ele era bem mais velho. Acho que isso foi uma coisa que fez parte para minha mãe porque ela se criou sozinha, então acho que teve um apoio para ela, encontrou nele um apoio que poderia cuidar e fazer algo junto mesmo, ir para frente, não sei, pensar no futuro. Com 16, 17 anos a minha mãe engravidou. Ela me teve com 17 anos, muito novinha. Minha mãe estava grávida depois de alguns anos, se passou 1 ou 2 anos, com quantos anos ela engravidou a minha irmã do meio. Tenho mais duas irmãs e aí ela estava grávida e meu pai ouviu falar na Bolívia que no Brasil tinha oportunidade de trabalho, que tinha dinheiro. Acho que eles começaram sonhar e pensar em um futuro, como criar criança se os dois não tinham feito faculdade, na Bolívia não tinham muitas oportunidades, as famílias eram pobres. Estava melhorando já mas, ainda assim, como que eles iriam conseguir? A história deles é a de muitas famílias de lá, que vem para o Brasil, de pessoas não têm muita oportunidade lá, não vão conseguir, grande parte pe do interior, dessas regiões que são as regiões e que os indígenas moram, que ambos falam 04:27 (inaudível) essas são regiões indígenas. Quando você vai para a cidade lá, há sutilezas. Como todos tem o mesmo fenótipo, é bem parecido mas não se conhecem como indígenas. A separação é de onde você veio. Se você veio do campo você é indígena porque a pele é mais queimada, o jeito é diferente a pessoa sabe quando ela não é da cidade. Se não é da cidade, é do campo, é índio. Tem toda essa questão lá e eles vieram para o Brasil. Cresci aqui com minha mãe. Chegamos em Santana, depois moramos em São Mateus. Quando eu tinha 7 anos meu pai faleceu. Ele faleceu aqui. Minha mãe cuidou de mim e das minhas duas irmãs. Até hoje, ela sozinha, ficou e decidiu ficar, não voltou para lá. Esse sonho, essa vontade de seguir adiante, isso foi uma coisa que aprendi com ela.

05:27
Incrível, incrível. Tua resposta dá um contexto geral das migrações do interior para La Paz e da Bolívia para o Brasil, para São Paulo. Tua história, como tu disse, é de muita gente. Acho que dá um contexto massa, educativo. Agora, um pouco sobre reconhecimento. Você já comentou sobre, mas se puder falar um pouco mais. Como, de que forma. Foi um fato, foi uma série de coisas? Como e quando? Tem gente que lança a idade, tem gente que não,
que fala de um período da vida. Como e quando você se reconhece indígena e o que é isso para a tua família.

06:31
Natali: O processo para eu me reconhecer indígena foi por etapas. Primeiro, eu sempre entendi que eu era diferente, sabia que eu era esquisita na escola. Eu lembro de quando era pequena, quando estava no ensino médio era um cáos a escola. Sempre estudei em escola pública. A educação é bem defasada aqui. As pessoas não comentavam sobre as pessoas indígenas, 06:59 (inaudível) livros. Não tinha referências para dizer, para eu entender. De alguma forma eu sabia que era diferente, que as pessoas me tratavam diferente e ouvia muito “volta para o seu país Bolívia” e eu tinha muita vergonha às vezes, não queria ser boliviana, sempre alguém falava “ah, escravidão, não sei o quê”. Era horrível ! Eu não entendia. Quando eu comecei a entender, o primeiro passo foi entender que eu era imigrante, “por que as pessoas sozinhas comigo?”. Fui indo por camadas “deve ser porque sou imigrante, porque não sou do Brasil as pessoas querem que eu vá embora”. Eu comecei a pesquisar e entender por um coletivo das 07:39 (inaudível), que coletivo de mulheres migrantes de vários países e durante a época da faculdade, entre 2016 e 2017, fiz uma amiga que, na época, ela estudava muito sobre o movimento preto, tudo. Ela vivia falando com várias questões comentadas Nossa Poxa eu eu tô relacionando que ela me falando de várias questões e eu ficava “nossa, e eu? estou relacionando o que ela me fala, estou entendendo o que ela está dizendo sobre as dificuldades, o que acontece com uma pessoa preta, eu também sofro coisas assim, acho que isso é racismo”. São várias camadinhas. E comecei a procurar como eu estou nessa história. Entendi que eu era imigrante e buscar o que era ser imigrante como uma pessoa política, eu como sujeito social que está num país. E que que significa ser imigrante? Todos os direitos que eu tenho, o que não tenho. Passou um tempo depois de eu entrar na pesquisa, eu fui ver que o problema não era eu ser imigrante, porque eu poderia estar em qualquer país e o tratamento vai ser diferente para mim. Foi quando fui para a Bolívia, em 2017, com minha família, comecei a notar essa sutileza que se você for a pessoa do campo e você estar na cidade a pessoa te trata diferente, ainda assim. Não era porque o imigrante no Brasil, eu também sou engraçada diferente na Bolívia. As pessoas também reconhecem fenótipos em mim e elas associam isso a pessoa indígena. Comecei a pensar muito nisso. Primeiro fui para o tom da pele, tem o movimento Identidade Marrom, que pegou pela internet, sei lá, pesquisando e entendi que eu tinha uma cor. Eu não sabia que tinha cor. Lembro que na escola uma vez perguntaram e eu falava “não sei que cor”. Parda? Pode ser, sei lá.Mas eu sou marrom. E o que significa ser marrom, o que significa ser indígena? Foi onde me identifiquei. Um dia eu lembro que eu falei para minha mãe “nossa mãe, estou pesquisando várias coisas”, sempre ia levando essas pesquisas para ela. Eu falei “mãe, você acha que eu posso dizer que eu sou 09:45 (inaudível)?” Ela falou “Claro! Sua família toda é, o seu pai é”, e eu falei “mas será que não vão falar para mim alguma coisa, porque eu não falo 09:54 (inaudível)?”. Mas como você ia saber° Ela mesma me explicou, era tão óbvio para ela, tipo “sim, o problema?” Na minha cabeça era “nossa, (inaudível), eu nem moro na Bolívia, nem estou lá, nem falo nada e estou aqui na cidade”. Foi isso, ela falou que eu podia falar que agora dou (inaudível). Se minha mãe deixou, então é isso, “se alguém perguntar alguma coisa pra você, tem que saber falar quando eu te perguntar, se for uma pessoa mais velha vai querer te questionar e você tem que saber o que responder” e eu falei “tá bom, mãe!” e comecei a me nutrir, entender o que era ser 10:30 (inaudível), o que era ser indígena. Só que foi bem recente, fazem uns quatro anos e minha mãe entendeu o que de fato significa ser indígena, ser (inaudível). Foi esse o processo.

10:47
Caralho, que fala poderosa! Poder de chegar aos corações, refazer imaginário, destruir alguns e construir outros. Que bonita a participação direta de tua mãe nessa história. As mulheres, em todas as histórias, são guardiãs das memórias. (inaudível) que o pai de um parente, lá em Manaus, revelou a ele que eles eram do povo (inaudível) e depois o pai faleceu por alcoolismo. Mas tem uma memória que nesse único caso foi um homem. OS homens são importantíssimos nesses povos, mas dentro desses contextos das histórias, até aqui registradas, são as mulheres. Chegamos na última pergunta, que é sobre isso, das rodas que vão abrindo, às vezes dando rumos, rastros de reconhecimento e agora, tão recente mas tão poderosa, um movimento de retomada dessa palavra que é de um povo, cultura e que, também como todos os povos, foi afetada em diferentes níveis. Frente esse apagamento todo, histórico. Pode dizer a partir do que tu conheces de outros povos, parentes. Referente a todo contexto de apagamento histórico, o que tu pensa sobre essa retomada para ti. O que é essa retomada 12:40 (inaudível) para você?

12:41
Natali: Acho que é onde eu estou agora, entendendo o que que significa essa retomada. Às vezes, essas palavras que são muito novas para mim, entender elas ainda é um processo. O que eu posso retomar? Agora estou nesse negócio de entender a minha cultura e ver por outro olhar, um olhar meu como uma pessoa. Como eu estava falando, mesmo na cultura Boliviana tem muito isso de você não poder modificar algo, mas sei que não é porque não pode, porque as pessoas não mantém as culturas, mas de poder criar outras coisas usando a própria cultura, não sei. É sempre uma questão para mim essas coisas e retomadas, entender 13:39 (inaudível) eu deveria aprender de novo, deveria aprender, não deveria atender, porque eu vou aprender, o que eu quero ser, como eu quero ser indígena, como quero que as pessoas me vejam, para quem estou fazendo isso, para quem eu vou criar isso, é para as outras pessoas verem, é para alguém que é boliviano e está nessa busca também ver, também se reconhecer. Acho que são várias coisinhas que vem na minha mente, não sei. Estou tentando responder. Acho que é isso, poder falar com a minha família, conversar com elas, entender o que minha mãe acha sobre isso. Sempre vou para minha mãe. Mãe, o que você acha disso? Pode falar sobre isso? E ela fala que às vezes pode, às vezes não pode, mas tem que ter um porquê, tem que ter um motivo o que você está fazendo. Acho que estou descobrindo. É muito difícil, muito novas essas coisas. Você não tem identidade e, de repente, você tem. E você tem muitas coisas para entender nessa identidade, tem vários pedacinhos e é sempre um processo de entender o porquê minha família veio, porque minha família era pobre na Bolívia, porque todas essas coisas vão lá para o início, para a colonização. Acho que agora estou assim, me conhecendo, entendendo essa identidade que eu não tinha e agora tenho. Acho que é isso.

Sambla Universo

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Sambla: Eu sou o Sambla Universo, (inaudível), nascido em Salvador, na Bahia, criado em Natal, Rio Grande do Norte. Sou artista, digo que sou multiartista, de manufaturas ou de manualidades, porque eu gosto muito de trabalhar com as mãos, dentre elas jardinagem, escultura, pintura, produção de roupas, moda, cozinha. Olha, tudo. Gosto de viver e fazer as coisas assim, de esculpir coisas, transformar, criar coisas. Esse acaba sendo meu trabalho. Corto cabelo também, enfim, coisas que facilitam a minha vida, que posso eu mesmo fazer e pode também ajudar os meus amigos, ajudar a auto estima do amigo, fazer um rango bem grande e todo mundo comer. Eu vivo não só para conseguir dinheiro para as trocas normais da vida mas, principalmente, para conseguir as trocas das pessoas, os escambos, as risadas. Atualmente estou morando em São Paulo capital, como todo nordestino em busca da oportunidade, que é bem árdua. Vim num governo bem difícil, mas estou aqui produzido várias coisas e, cada vez mais, sendo quem eu sou de fato.

01:46
Que babado. Já faz logo o contrato, o negócio, o corre (risos).

01:54
Sambla: Faço de tudo. Fala fala o que tem que fazer. Se tiver na internet eu faço. Essa é minha sobrevivência atual. A multifacetária.

02:07
A outra pergunta, como te disse, é sobre rota familiar. Rotas familiares envolve os lugares e coisas que passaram. O que você lembra? O que chegou para você? Por onde passou tua família?

02:31
Sambla: Bom, meus pais se conheceram na Bahia, que foi onde eu nasci. Desde a infância sempre soube da minha ancestralidade indígena, mas sem muita história. Acho que, principalmente, pela minha estética enquanto criança, a carinha de curumim, a franjinha, além do racismo também. Tenho um irmão de mesmo pai e mãe que é branco e loiro. Eu questionava muito essa questão dele ter alguns privilégios e eu não, mesmo a gente tendo as mesmas condições. De certa maneira eu comecei a apagar minha ancestralidade indígena porque eu não achava que me servia, era mais fácil eu me sentir pardo. Durante a minha infância, principalmente com meus pais, com meus avós e bisavós, eu já tive uma infância mais nos pomares, no meio do mato, nas veredas, nos lajedos. Aprendi muito. Hoje em dia, os conhecimentos que eu tenho de erva, de fruto, de árvore, tudo isso é dos meus avós e bisavós, pais, tios e tias já começou a ficar diferente, além da religião que fazia com que eles também se distanciassem dessa coisa mais natural. Tenho avós católicos, tanto por parte de mãe quanto por parte de pai. Por parte de pai meus avós são ali do centro da Bahia, perto de Irecê 04:20 (inaudível) mais ou menos e por parte de mãe o meu avô é de Guarabira, que é na Paraíba. Não tenho nenhum contato de história, de língua, de nada, só o contexto isolado, do interior. A parte que eu mais gosto de lembrar é da minha infância, enquanto criança vivendo nesse mundo entre os bichos e as árvores. Lembro que, em época de alguma planta, sei lá, época de manga, eu catava milhões de manga e saía entregando na vizinhança e trocava por outras coisas, fazia amizade com as tiazonas fazendo comida para todo mundo e às vezes fazia várias coisas para que elas me contassem histórias “deixa que eu vou arrumar a casa, fica aí parada contando alguma coisa”, era basicamente isso. Eu que procurava e caçava, mas todo mundo na correria de ter que fazer dinheiro, na correria de ter que ser mulher ou ter que ser homem, todas essas coisas me deixavam bem chateado, tanto de papéis, quanto explorar a própria história. A gente estava cada vez mais dentro do que seria mais tecnológico para eles, mas no caso foi colonizado.

06:13
Você acabou respondendo um pouquinho da segunda pergunta, mas se puder pontuar de forma mais marcada esse assunto que você já adentrou, sobre reconhecimento. Tu falaste sobre perceber-se indígena. Teve algum momento, ocasião, período, uma idade, alguma coisa dessas, como e quando você se reconhece indígena? O que é isso hoje para a tua família?

06:56
Sambla: Eu hoje me reconheço indígena. Eu tive que levar na cara porque eu me apaguei, apaguei várias coisas, inclusive no “quem sou eu” também está que sou uma pessoa transmasculina não binária, e eu me apeguei de diversas formas, me obrigando a ser mulher e me embranquecendo cada vez mais. Eu eliminava a possibilidade de ser qualquer coisa se não, pelo menos, um pardo. E lá no nordeste, desta forma, todo mundo é queimado do sol, então não tem muita discussão entre preto e branco, como existe aqui em São Paulo. Cheguei aqui em São Paulo e as pessoas começaram a me colocar nessas duas caixas, ou você é branco ou você é preta. O fato do meu cabelo ser liso, o que não faz diferença nenhuma, porque existem pessoas indígenas de cabelo crespo, a diversidade é grande, a, pessoa, me colocavam enquanto branco e eu comecei a ficar meio puto. E eu achei estranho eu ficar tudo puto, porque antes eu achava massa. Só que desta vez eu já era uma pessoa que já me reconhecia com eu próprio gênero, então eu estava firme o suficiente para recusar essa outra coisa que me puseram. Antes eu já estava sendo mulher, já estava sendo isso, aquilo, hétero etc. Quando comecei a negar tudo isso, nessa última eu fiz “tem alguma coisa errada aí, pelo menos branco eu não”. Foi aí que eu comecei a recordar da minha infância, tudo que eu passei, dos meus bisavós, da região em que morava. Comecei a pesquisar tudo isso, pesquisar a região em que eu morava, as pessoas. Entrei numa nostalgia que eu fiz “isso sou eu, não tem nada a ver”. Eu entendo a cultura pop e as outras coisas que a gente vê como referência de coisas do mundo você faz “legal, acho massa, quero isso para mim”, cultura underground, não sei, mas esse tipo de referência me deu um arrepio diferente, uma coisa diferente. Fui procurar no YouTube, vi filmagens, vi várias coisas. Eu tinha, mais ou menos, dos 8 até os 13 anos e lembro que eu tinha contato com os caretas, que hoje em dia estão me fazendo fazer a minha arte. Os caretas eram uma galera que se montavam de um uns bichos toscos, faziam umas máscaras, umas coisas bem sinistras e tinha um dia dos caretas. As crianças que eram malcriadas, os caretas corriam atrás. Mas toda criança tinha medo, toda criança fazia alguma coisinha. Eles andavam de facão, com chicote, chicoteavam no chão, mas ninguém machucava criança nenhuma, mas tocava o medo. Hoje em dia faço máscaras de papel machê, com essa intenção, do que a gente se faz, as máscaras que a gente se coloca. Será que tenho que tirar? Será que tenho que colocar? Que horas tenho que colocar uma máscara para viver em tal lugar? Quem eu tenho que assustar? Quem eu tenho que agradar? Essa cultura me trouxe um sentido para minha arte que vou expor no MAM e no mundo inteiro. É sobre isso. Não vou fazer arte com coisas que vão terminar de acabar o mundo. Quero reconstruir, do mesmo jeito que me reconstruí, me resgatando da minha história. Um dia quero pisar lá de novo, com uma outra concepção de ser e tocando na minha criança interior, fazendo um lugar que possa proporcionar esse contato de crianças, é muito importante o contato com a natureza e isso foi muito importante para mim hoje. Puta que pariu, muito importante. Vivo num lugar com muito pouca natureza, mas consigo resgatar plantando algumas coisinhas. Eu saio na rua e reconheço coisas assim que eu paro, cato uma planta e a pessoa “acabei de pegar aqui, vamos lá, vamos fazer uma comida, isso aqui é uma planta, vamos agora”, “está com fome, com aqui é uma panc. Está com fome? vamos ali, tem uma jaqueira, tem jaca verde, vamos pegar e vamos fazer carne de jaca. Ah, não tem comida? Já sei onde tem uma taioba, já vou atrás pegar uma taioba. Eu me viro, consigo me virar. Hoje em dia é isso, a gente vai nas feiras e pede as frutas podres. Chegando aqui a gente corta metade da fruta, bota no saquinho, faz poupa. Não precisamos comprar, não vamos participar disso. Se fosse na natureza a gente ia lá catar de igual. Se não for pegar, vai para o Lixo. Buscando isso dentro da cidade, as minhas raízes, a partir de mim mesmo, porque eu tenho sangue. Não sei se é tão necessário assim ter contato com quem, infelizmente, não tive oportunidade porque morreram. Mas sou do sangue dessas pessoas. Uma vez, quando era criança, tive uma verruga no dedo e fiquei “vai começar a escola, tenho que entrar e é bem na mão que eu vou escrever, as pessoas vão tirar onda com a minha cara”. Eu acordei um dia, arranquei ela com a faca, peguei uma planta que hoje em dia sei qual é, é picão, peguei um galhinho, saiu um leite, eu botei. Eu não fazia ideia. Botei o leite, botei um negócio, amarrei. Secou, caiu. Hoje em dia sei que é para isso também. De onde eu tirei isso? Não sei. Sei que eu tenho isso e vou dar para os meus filhos, meus amigos. A gente vai trocando, um falando para o outro “é bom fazer isso, macerar um boldo”. Hoje em dia, nesse não-lugar que a gente fala, a gente busca, não só na história, na pesquisa que a gente tem essa ferramenta, mas isso de naturalmente a gente ter essas sacadas de como resolver cada coisa. Já fiz uma geodésica de bambu. Eu morei numa ecovila quando eu tinha 23 anos, junto com uma pessoa que eu me relacionei e essa pessoa tinha um enteado. A gente levou uma criança de um ano de idade, eu de vinte poucos e relacionamento de vinte poucos. A gente ficou nessa ecovila sozinhos, a dona da ecovila falou “vou para São Paulo”. Ficamos lá sozinhos e tivemos que nos virar com tudo. Fogão à lenha, catando as coisas lá. Não tinha estabelecimento próximo e eu querendo
fazer as coisas, porque a natureza dá coisas para a gente fazer toda hora. Catar uma coisa, fazer um negócio, construir isso, construir aquilo. E nisso cortei os bambus do meu jeito, pesquisei o que eu pude. Fiz uma geodésica para fazer uma estufa. Que onda da pessoa! Mas é isso, eu gosto disso e eu quero isso para minha vida também. Eu vim buscar um reconhecimento artístico aqui em São Paulo para ser alguém, porque eu não quero diploma. Eu já corri atrás do meu diploma mas não deu muito certo para mim, tive que correr atrás de comida antes do diploma, eu preciso achar minha comida para depois pegar meu diploma. Ou achar minha comida e ficar ótimo com isso. E como dá para ser artista até o fim da vida enquanto eu tiver minhas mãos. Aleijadinho fez sem mão, vou fazer com mão, sem mão até o fim da minha vida, tô nem aí. A gente fala “e a sua aposentadoria?”. Enquanto eu estiver vivo eu vou fazer arte e é isso. Não tô nem aí, ficar pensando demais no futuro nada funciona. Tem que viver o presente, o agora, o que eu posso fazer agora. E um dia vou comprar um terreno e vou fazer de um tudo nesse terreno, inclusive esculturas gigantescas. Vai chegar só o caminhão, vai levar e eu vou lá para assinar as coisas ou para dizer “que lindo, obrigado gente!”. Exatamente.

16:28
Que babado, que legal como tu costura os conhecimentos, muitos, da vida, dos territórios, desses não gêneros (inaudível). Isso da mão. Marca muito a mão na tua fala. (risos)

16:48
Sambla: Sim!

16:49
Essa do Aleijadinho foi sensacional (risos). Vamos a última pergunta. O Brasil inteiro é um apagamento histórico e hoje, num tempo que nunca existiu, a gente vem num movimento grande de pessoas autodeclaradas indígenas e buscando, por muitas palavras, essas insurgências, esses reafirmamentos, essa retomada. Basicamente, fazer as pazes de muitas formas. O que é para ti, o que tu pensa sobre retomada der identidade política?

17:46
Sambla: Penso que a retomada de identidade para mim é em processos. Não tenho pressa, por exemplo, para chegar nas pessoas que eu ainda não consegui voltar a falar depois da minha transição de gênero, para descobrir a minha etnia. Não tenho pressa. Um dia eu vou estar sentado na beira de uma calçada para conversar e vai ficar tudo bem, vai dar tudo certo. Como eu não tenho essa pressa, espero que as pessoas também entendam isso. Essa pergunta às vezes me provoca de uma forma negativa. Eu entendo quando a pessoa indígena fala sua etnia com todo prazer, porque é sobre isso também.Porra, a gente tem um orgulho de quem a gente é e vem toda uma regionalidade a partir disso. Mas tem outros recordes. Quais são os recortes? As pessoas LGBTs algumas ou a maioria não tem contato com a família, ou não consegue chegar nessa parte emocional de conseguir ter uma conversa íntima, a conversa é só “tudo bom? tchau!”. Tem que ter esse entendimento e eu tive que me dizer isso também, disse isso para mim para não me sentir menos, para não me sentir sozinho. Por isso que o termo “parente” para mim é incrível. Parente da onde? Não importa, é parente. Tendo contato com pessoas indígenas LGBTs, principalmente, eu tô tendo um pouco mais de abertura para conversar sobre a etnia da pessoa, entender. Eu sou um pouco assim, se eu não quero muito saber porque eu tenho um pouco de medo, eu fico bem retentivo, já não quero saber mesmo. Mas quando eu quero saber, eu quero saber mesmo. Eu vim tirando essa vista grossa, conversando com algumas pessoas, reconhecendo e uma pessoa que eu nunca eu nunca vi na vida, olhar para minha cara e falar “parente, tu é parente né?” Esse tipo de coisa acontece muito atualmente. Outro processo muito interessante também é a minha estética. A minha estética enquanto uma pessoa trans, eu sentia que faltava alguma, falta alguma coisa. Não sei, está faltando alguma coisa. Eu via uma coisa punk ficava quase lá, porque tinha um negócio de 21:01 (inaudível) um raspado aqui, um cabelo grande, uma coisa emo e tal. Quando peguei o
negócio todo, quando entendi que eu tenho essa veia indígena, foi que eu falei “putz!”, estralou tudo e isso mudou no meu trabalho enquanto pessoa que corta cabelo também. Eu já faço cortes que já vira umas cuias, umas coisas, uns cabelos grandes, uns cabelos curtos, uns negócios assim. Piercing também, eu já tinha um bocado, alargador. Eu tinha uma coisa assim, mas é isso, a gente entende que era um pouco europeu porque era o que a gente via na TV. Mas quando eu vi (risos), os bambus, as sementes, eu fiquei “nossa!” Eu comecei a misturar essas duas coisas, começo a misturar o metal com as coisas mais naturais e, sinceramente, eu já comecei a dizer aos outros. Eu disse ao meu pai “pai como o senhor é indígena, por isso que eu sou lindo”, mas ele acha estranho, mas eu sou a cara dele, ele sabe que ele é indígena mesmo, só que a gente não vai falando isso mais. Está na cara. Ele ri, ele fica achando bonito que eu acho bonito isso. E eu fico tentando dizer para ele, para ele achar bonito também. Agora estou mais 22:37 (inaudível) na moda, eu percebo que a nossa cultura indígena tem uma coisa que, por exemplo, usar uma sainha, um vestido, não é uma coisa só de indígena mulher. Tem uma quebra de gênero que me atrai, que eu acho legal. A moda, olha para onde vai. Quer saber, vou dar uma misturada nas coisas. Não sei, acho que estou sozinho enquanto alguém que não é uma criança que está com os pais, que está com a família, mas não estou sozinho porque tem tudo isso que paira ao meu redor, que sou eu. Meu altar, as coisas que coloco no meu altar. Inclusive, o sapinho que você me seu está lá no altar. Essas coisas, os elementos. Descobrir os elementos, entender os elementos. Mesmo estando na cidade fico sentindo essas coisas. E sinto mesmo, falo mesmo. E vejo outras pessoas aqui também sendo assim, trazendo coisas bem viscerais, falando sobre a família, falando sobre intrigas que não dá muito certo, mas entende que isso também é sobre história de retomada. Às vezes não quer falar sobre o passado porque foi ruim, foi de escravização, uma situação ruim. Você não vai obrigar sua mãe, sua avó a falar de uma coisa ruim, mas você pode criar coisas boas. Chegar e falar “vó, senta aqui que eu vou te fazer uma comida que a senhora fazia”. Eu faço com minha mãe. Minha mãe mora aqui em São José dos Campos, quando vou lá já falo para ela “mãe, trouxe uma coisa para você”. E ela é artista, ela pinta coisas, faz escultura, também planta, costura. A gente tem uma conexão bem grande com a arte e hoje em dia, principalmente, não sei se porque ela está um pouco mais velha ou o que é, ela está diferente, ela está mais emotiva, ela está vindo atrás, ela vem me visitar, ela faz coisas para mim, ela traz coisas para mim. Ela anda se reconhecendo mais, porque ela se embranquecia, pintava o cabelo de loiro. Uma vez falei para ela “você sabe que você não é branca, mãe?” e ela disse “eu sei”, eu falei “nossa, mãe, valeu, é sobre isso, vem que vem”. E é isso, várias trocas que estão sendo necessárias. Quero fazer com meu pai, mas ele é muito bitolado do juízo ainda. Ele é um pai de verdade, aquele pai que fala “oi, te amo”, só, não faz nada mais. Por isso que não construo muitas coisas por ali, mas um dia vou chegar, vou construir isso. Não tenho pressa. Já descobri meu não-lugar, então não tenho pressa de maneira nenhuma. Na verdade, vou continuar para os que virão, os curumim que estão aí. Se tiver que procurar uma referência, estou aqui, os curumins trans, estou aqui. É isso.

UÝRA

UÝRA: Oi, meu nome é UÝRA, tenho 31 anos, moro em Manaus, capital do Amazonas, sou uma pessoa indígena em contexto de diáspora e hoje é trabalho como artista visual, arte educadora reunindo muito do que aprendi na biologia, como bióloga, como mestra em ecologia, esses saberes dessa ciência ocidental. As ciências outras, as ciências ancestrais dos conhecimentos tradicionais indígenas, territorializadas no tempo, no espaço amazônico, que é minha casa, minha avó desde criança. A história da minha família, acredito que, como muitas das histórias de pessoas como eu, que cresce na periferia, é uma história com muitas ausências sobre os rastros familiares. Pouco se sabe, muitas vezes, sobre muita coisa e às vezes de nossas memórias restam poucas coisas. Nesses últimos 100 anos a minha família viveu e vive cinco gerações, da minha bisavó Maria Eunites, da minha vó Maria Luzenira, da minha mãe Josenira Pontes, minha e da minha irmã, filhas de Josenira e a mais recente geração das minhas primas. Toda uma linhagem de mulheres indígenas e é essa história que vou narrar, sobre rotas familiares. Da parte de meu pai sei muito pouco, quase nada. Da linhagem da minha mãe já conheço um pouquinho melhor, porque venho cavando ao longo dessa vida, cavando para saber, cavando para contar, principalmente, para as crianças, já são agora e que continuarão um pouco depois da gente. A minha bisavó, Maria Eunites, é um grande mistério na nossa família. A gente cresceu com ela sendo contada de uma forma muito superficial, às vezes exótica. Minha bisavó Maria Eunites nasceu em Frecheirinha ao lado de Sobral, no Ceará. Contando o que eu sei, tudo que sabemos hoje na família. Ela foi professora, uma mulher indígena, educadora de crianças, que quando conto que ela é contada pelas pelas família, pelos processos afetados por uma estrutura racista, algumas práticas espirituais dela são contadas sob um tom engraçado. Pouco se sabe dessa mulher, o que se sabe é isso que conto e que a vida dela quando vai para cidade é uma vida de insistência em uma espiritualidade pouco compreendida pelos demais, de um estranhamento, imagino, pelas histórias. Eu a imagino quando a ouço, de estranhamento nesse novo lugar da cidade. Ao que tudo indica, ela vivia numa zona mais das matas, não se sabe como que povo, não se sabe onde exatamente, mas ali naquela região do sertão do Ceará. Ela falece ali mesmo nesse território e de lá minha avó, Maria Luzanira, migra com seis filhos, incluindo a minha mãe, para Mojuí dos Campos, já na Amazônia, hoje no estado do Pará, Hoje, Mojuí dos Campos é o lugar que cresci até os 6 anos de idade, vivendo pisando na terra, brincando com a mata e com o igarapé que passava atrás de casa e crescendo já sem a minha vó, sem Maria Luzanira, que nos levou para lá e depois encanto. Quem ficou foi mia tia avó, Maria Ivanilde, a irmã dela, minha tia avó era minha referência de vó. Ela não tinha duas pernas, ela dicava mais dentro da casa e eu, criança, brincava pelo quintal, ouvia os bichos, via uma coisa que eu não sabia o que era e eu ia sempre lá contar para ela o que eu tinha visto. E ela me dizia, a partir dos conhecimentos dela, o que aquilo significava. De algum modo, eu que conseguia andar por aí, era os olhos dela. Isso era a nossa conexão, essa era a nossa relação. Aos seis anos minha mãe, por razões da vida, precisou migrar mais uma vez, agora para Manaus, para o Amazonas para uma zona de preferia que é onde eu cresço, a partir de dos seis anos, junto à toda minha família, numa área precária em muitas coisas, não só do físico, mas do imaginário, local como todas as periferias do Brasil, um projeto de estado de
empobrecimento dos imaginários, por exemplo, da juventude de periferia que crescem com uma impressão de que faculdade, por exemplo, algo muito distante, que não é possível. E cresce nesse lugar cheio de coisas muito boas, brincadeiras nas ruas, dos afetos, do cuidado que a periferia tem uns com os outros, os vizinhos, os moradores habitam como habitam as árvores numa favela, casas muito próximas, conectadas, que se comunicam, se cuidam sempre, na medida do possível. Gosto de ver a favela com uma grande floresta. É assim na floresta, as árvores se falam e se protegem. E a diversidade, a cultura, a vida é uma manifestação diversa de vida. Tem mar nesse mundo, dentro de anos de vida, sem falarmos de nossas origens, porque parece que tinha ficado lá com a minha bisavó, com a Maria Eunites. A gente nunca falou falou muito não, embora na escola me chamassem de indiozinho, eu não gostava muito porque sempre vinha num tom, quem eu era sempre era narrado de uma forma ruim, que não fazia bem, incomodava. Era mais prático não ser. Não cresci com reconhecimento enquanto uma pessoa indígena, minha família também não, porque indígena é o índio no Brasil, essa imagem selvagem, preguiçosa, estereotipada de tudo quanto é maneira, muitas vezes até alegórica, inexistente parece que somos narradas dessa maneira, como pessoas que ficaram no século VI. Quando vemos a história do Brasil, em todos os séculos desse território inventado contra nós, entendemos o porquê disso para os diversos projetos de assimilação e civilização forçada, de atividades missionárias de agressões aos nossos corpos, retirados dos nossos territórios. O Brasil sempre quis nos tirar da gente. A cada dia sinto essa certeza, nos transformando em estranhos dentro dos nossos próprio quintal. Não tinha muito motivo, razão ou sustentação para que nos reconhecêssemos indígenas. As 25 anos, já imersa no local da universidade. me formando bióloga, mestra, passo a ter contato com diversas pautas, debates de populações vulnerabilizadas pelo poder do homem branco, por esse regime que busca homogeneizar as pessoas, apagando, violentando a maior parte delas, para a manutenção de um poder. Então comecei alguns debates, aprender mais sobre o que era racismo, entender sobre coisas que já vivia também enquanto uma pessoa trans, transfobia, aprender mais sobre o que vivíamos, que Brasil é esse de tantas desigualdades e uma história que não quer ser sumida, a do pagamento indígena, a do apagamento sistemático, oficializado e que perdura até hoje de pessoa. Começo a perceber que eu não tinha crescido efetivamente dentro de uma aldeia. Para mim, ser indígena, até então, era só isso. Também não cresci sabendo um canto, um grafismo uma prática espiritual de nenhum povo porque eu não cresci em nenhum povo. Depois eu entendi que eu tenho um povo sim, eu só fui distanciada dele, eu e minha família, distanciada por um projeto da colônia ao estado do Brasil. Começo o processo de entender que, mesmo sem o território, mesmo sem a cultura ou que é nomeado da cultura indígena, grande parte pelos brancos, mesmo sem tudo isso, havia uma uma grande presença na nossa vida que é a nossa identidade enquanto pessoas indígenas, que começam a aprender mais sobre isso, a me conectar à outras pessoas, habitantes cidades em Brasil, a maior parte de periferias, pessoas outras indígenas que também passaram por diversos processos de apagamentos históricos, que também foram morar, ao longo da trajetória de suas famílias, em lugares que não nunca quiseram, foram obrigadas pelo empobrecimento sistemático que o racismo gera, filho esse, da colonização. Bom, eu disse “sim, sou indígena”. Lembro pela primeira vez de dizer isso para mim no espelho e me alegrar muito o espírito, parecia fazer as pazes com muita coisa, para além do plano físico que envolvia também estética, que envolvia as pessoas, os corpos ao meu redor, o meu corpo, mas também questões espirituais. Era a voz e minha Maria Eunites, a voz de Maria Luzanira, minha vó e da minha tia avó, era a voz dessas mulheres todas, chamando de volta para a gente, para nós, para mim. Desde lá começo, dou uma pausa na produção científica, na vida acadêmica, em que trânsito para arte como um grande chamado, um grande chamado mesmo, nunca nem me imaginei nesse canto. Eu passo a desenvolver imagens, imagens que refletem naturezas, naturezas controvérsas que coabitam ao mesmo tempo o mundo, esse mundo que chamamos de mundo, que envolve tantos outros mundos, a maior parte licenciados para que haja só um mundo. Comecei a escutar mais esses outros mundos, incluindo mundo não humanos e contar histórias dessas tão diferentes naturezas que coexistem na paisagem que vimos ao abrir o olho pela manhã e ao fechar ele a noite, incluindo também essas paisagens que sonhamos, essa outra parte do mundo. Começo a me articular com espaços de arte, com artistas, com mundo, dessa arte com A maiúsculo, a produzir coletivamente, com respeito, contando história de bicho, planta, desses trânsitos, atravessamentos, desses fenômenos que ora se atracam, ora se abraçam e venho buscando contar histórias de tudo isso que também é minha vida a partir dali da Amazônia, de Manaus, desses mundos que atravessam a partir do meu corpo, da minha existência, também desse contato com outras vidas e histórias e uma outra camada surge nessa produção em arte, que é a da minha vida, que é a vida da minha família, que é da vida de dessas 44 pessoas que aqui estão conosco nesse momento, contando com muito respeito e dignidade, com muito carinho, sensibilidade e dor. Contando com tudo isso, suas histórias de vida. Me conecto a essas pessoas em diferentes momentos da vida, nesses últimos anos, uma a uma, conhecendo. São vizinhas, são amores, são novas migas. Pessoas que compartilham histórias muito parecidas com a minha e da minha família, pessoas indígenas em múltiplos contextos dessa diáspora, desse fenômeno que é uma das maiores diásporas do mundo que é esse momento onde há muitas pessoas juntinhas, que esse fenômeno que separa todas essas pessoas ou maior parte delas, separa levando-as em direções desconhecidas, muito distantes daquele núcleo que viviam juntas. E essas forças que eles separam e geram esses processos de diáspora no que hoje é Brasil 18:40 (inaudível) América, são as forças coloniais, são migrações forçadas de nossa gente a partir de expulsões de aldeias, descontinuidades étnicas, rupturas culturais que vão jogar toda essa gente para longe de si, do território, da cultura e da identidade. Pessoas que, como eu, banhadas com ancestralidade que nos habita, ainda nos lembramos de quem somos. Pensamos, toda essa gente que anda comigo, que tal contar juntas essas histórias, estarmos aqui no MAM, contado essas histórias juntas? Por que contar essas histórias? Elas são muito especiais, muito importantes. Não só porque elas não estão em nenhum livro de história ou porque a história essa com H do Brasil não conta essas histórias, e não conta por que não quer reconhecer as violências que o formam enquanto país. Por que contar? Por que dizer que aqui estamos? Para quem vamos dizer isso? Muita gente! Para as crianças, jovens e pessoas de qualquer outra idade tempo de vida, que tem sim a chance de aprender um pouco mais com essa escuta dos outros mundos, das verdadeiras origens que formam os tempos nesse território, que formam as subjetividades, que formam as geografias, as memórias, que deformam a memória, que deforma a geografia, que deformam as identidades. Tudo isso em paralelo, afirmando-se enquanto um grande coletivo que aqui está sim, indígenas. Transformados forçadamente, mas que permanecem ressurgidos com fé no rezo de muita gente antiga. Gosto de, como o parente Jorge nos lembra, que somos essas orações dos nossos ancestrais, que apesar de toda violência e de todos os pagamentos gerados e continuados nesse território Brasil, nós aqui estamos. Nós estamos nas cidades, nós estamos nas florestas, nós estamos nos Pampas, na Amazônia, nós estamos no litoral, nas serras, nos prédios, nas periferias, nós estamos nesse tempo do agora, nós estamos aqui no Museu, nas ruas, nós estamos aqui mesmo depois de tantas idas e vindas, mesmo depois de muitas fugas e reencontros, nós atravessamos as desgraças e aqui estamos. Aqui com esses rostos, com essas formas. Nessas diversas profissões, lugares e vozes. De novo, nós estamos aqui, nós mudamos, permanecemos nesse nosso quintal ancestral. Por tudo isso essa exposição existe e te convida a escutar com, novamente, muita dignidade e respeito. Acredito que assumindo o que é a história que a gente consegue poder sonhar um pouco mais com outros rumos desses tempos, assumindo as perspectivas, as ações, assumindo as estruturas, assumindo os tempos, os passos, reconhecendo a si, sua família, trajetória e raça nos tempos e nesse tempo do agora. A partir dessas diferenças que aprendemos um pouco mais do outro com respeito e boa escuta. Retomada, para mim, é um movimento muito grande, potente, de direito e que a cada dia só se expande nas ruas, nos corações e imaginários. Essa exposição é parte disso.





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