Transmutando em canto

Uma narrativa de De La Cordillera Flow, Brisa
Abya Yala, 2021

Arqueologia do Corpo Vivo
Mimetismo
Artesanato da Sobrevivência
Impulso da Raiva
O transe

Licença pra chegar, para cantar e escrever sobre o canto como expressão artística e revolucionária. Licença peço também aos encantados para falar de algo que para nós é sagrado e atravessa nosso corpo físico e espiritual. Licença para estar aqui nesse tempo e nesse espaço como artista desenhando outras narrativas imaginárias sobre o tempo considerado passado. Licença eu peço aos meus antigos, machis e loncos para tecer futuros originários. Canto em forma de escrita freestyle para traduzir a sensação de estar viva em Abya Yala. Freestyle é a liberdade de fazer rap no fluxo da intuição. Improvisação um rezo. Um transe. E é assim que esse texto foi construído, da mesma forma que construo meus raps. Que a arte viva possa ser usada para curar as feridas coloniais. É tempo de reparação, auto estima e protagonismo dos povos indígenas.

Arqueologia do corpo vivo

Corpo originário em periferia, desterritorializado, migrante, sem referência na TV e na escola, cresce no veneno, na solidão. Procuro em mim memórias íntimas que possam me dar pistas de onde eu aprendi a cantar. Viajo no tempo e me vejo ali em General Carneiro, Sabará, de frente pro Ribeirão Arrudas, poluído, fazendo rimas. Cantando no quintal das montanhas de Minas Gerais. As montanhas anciãs sagradas do território Krenak que viram os humanos furar a Terra atrás de ouro e outros metais. Esquecendo que são gente da Terra. Não posso me esquecer que antes de ser artista eu sou gente da Terra. Corpo é Terra, corpo é Terra em movimento. Como rios que atravessam Abya Yala migrando para o mar. Procuro melodias, linguagem intuitiva, códigos de acesso. Os caminhos que me levam até as letras. Procurando rastros de água. Procurando semelhanças. Vista como estrangeira em minha própria casa. Me lembro de cantar para transmutar a mágoa. Violeta Parra, Victor Jara e as melodias que me faziam sentir em casa. Melodias antigas. Será que foi aí que aprendi a cantar?

Mimetismo

A música não é algo humano. O povo de pé, as árvores anciãs e novas, dançam o sopro da vida. Ouço passarinhos cantando e repito. O vento. A voz. Kupay May. Seria a música uma relação íntima de comunicação de vidas entre Terra? Contemplo a presença do grande espírito ouvindo sua força ao correr pelas águas no rio. Sopro vogais e os pássaros respondem como se estivéssemos conversando. Sinto que conversamos, mesmo que em línguas diferentes, o código musical ainda é o mesmo. O feeling. O ayun. O transe. Corpo é Terra, Terra é som. Som é corpo em movimento. Corpo é rio. Rio é dança. Dança é partitura partitura é tear. Volto a pesquisa no corpo pois ele é a minha memória de conexão com meus antigos. O único objeto de pesquisa possível a ser estudado seria o meu corpo e a cultura dos meus ancestrais porém me recuso a chamar nosso corpo de objeto e observa- lo junto a nossa vivência a partir de uma ótica racista antropológica acadêmica. Esse mesmo olhar justificou o sequestro de famílias mapuches por estudantes espanhóis e colocou meu povo em zoológicos humanos europeus até datas recentes como o parisiense em 1889. E eu chamo de presente pois o que são 100 anos ou até mesmo 500 anos para quem está aqui há 5.000 anos. E o presente ainda são nossos corpos sendo estereotipados e nossa cultura e ciência colocadas no passado enquanto morremos nas florestas e periferias para que não possamos existir mais ou para que nossos filhos não tenham mais memórias. Sejam desterritorializados. Volto a me lembrar de cantar para transmutar a raiva, a dor, as feridas coloniais.

Artesanato da sobrevivência

Precisamos ver a chegada dos invasores não como algo distante mas como algo recente e ainda presente nessa invenção chamada Brasil ou América Latina. Chamo também de invenção pois as fronteiras são ficções. Costumo dizer que vivemos um grande after de 1500; um surto coletivo da festa realizada pela colonização. Me questiono constantemente sobre o papel da arte diante do genocídio e do meu papel como artista originária migrante diante de um mercado capitalista que ainda pensa a obra como objeto de coleção, que atravessa o tempo e supera a natureza humana e o próprio artista. A visão da obra de arte como algo mais importante que as vidas originárias ainda é uma prática do genocídio. O colecionismo saqueou nosso continente para enriquecer países europeus e inúmeros artefatos sagrados de nossos povos estão em museus longe de nossos olhos. Mas por que chamar de artefato? Qual a diferença entre artesanato e arte? Quem faz arte é herdeiro da casa do engenho e quem faz artesanato é sobrevivente do genocídio? Quem faz rap vs quem faz aula de piano? A treta é sobre território, espaço, dentro do mercado da arte e da música. Vi meus pais fazerem o artesanato da sobrevivência, sem Terra, na cidade, vistos como estrangeiros em nossa própria casa. A auto estima ferida. Não chamar de arte a grandiosidade dos seus trabalhos manuais e ver de perto a vida instável do artista de rua me fez pensar que era melhor estudar pra não passar sufoco.

Impulso da Raiva

Fiz então a academia, chata, de música e me formei em licenciatura com a inocente ideia de que poderia adquirir ferramentas para trabalhar arte educação utilizando a música em periferias. Muito do que aprendi na faculdade se resume a ter paciência para não desistir do foco na guerra de conhecimentos que vivemos desde a invasão. Essa batalha intelectual e emocional, que já me fez andar cabisbaixa por conta se racismos epistêmicos. Se tem uma coisa que aprendi ali foi a fazer o famoso calmo quebrada respira fundo comigo mesma toda vez que presenciei comentários do tipo “Música não se aprende no rap da esquina. Ou quando assisti colegas de sala fazerem sons da música “Vamos Brincar de Índio da Xuxa”. E aí que eu paro pra refletir: O que nosso imaginário colonizado nos diz sobre a música indígena? Definir música indígena e possível? Já que somos mais de 600 povos em Abya Yala. Se a música brasileira de Villa Lobos tem motivos rítmicos de povos indígenas, por que continua codificada na linguagem europeia chamada partitura? Poderia escrever aqui que minha pesquisa se iniciou aí, diante da raiva do cistema que não considera a ciência originária como conhecimento a ser estudado e preservado. Mas eu não quero mais ser resiliente nem narrar episódios da branquitude.

O transe

Essa pesquisa não tem começo, meio e fim. Assim como nossa história não pode ser resumida a um capítulo da arte ou música. Somos plurais; Cantamos para celebrar e chorar, narrar a sensação de estar vivos nesse tempo nesse espaço. Práticas de repetir a batida a melodia. Sensações antigas já conhecidas. Mesmo na cidade aqui dentro ainda é floresta. Como em nossos olhos de água infinita. Corpo enraizado que marca o beat em migrações atravessamentos. Fluir de rios que ligam atlântico e pacífico desembocam e viram mar. Pés que saem e voltam pro chão. O toré. O transe. Batida interiorizada. O ritmo, o tempo sem linearidade; sem partitura. Fazendo som, transmutando o canto. Imaginando um mundo coletivo olhando as estrelas. Arte minha prática ancestral, estética para imaginar um novo mundo.



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