A GRANDE ONDA

um conto de Castiel Vitorino Brasileiro 

o amor de marinheiro, 
é um amor de meia hora

Ela respirou dentro d’água, um momento confuso porque o Tempo que lhe foi aprendido, lá na atmosfera, não lhe importou em nada. Ali, dentro da beira do mar da Ilha do Frade, os líquidos estavam claros, e ainda assim preservavam a sua coloração marinha escura, comum naquele lugar;esverdeado, por vezes, margens escuras formadas por algas fluorescentes. O sol já havia se alinhado verticalmente como a nossa profundidade, e ainda assim continuava queimando forte sua pele escura e esquentando feito um sopro, seu sangue e seus músculos. Respeitamos o sol, somos mais que suas filhas, somos indissolúveis à sua quentura, você nos conhece e nos guardou até aqui porque você e nós sabemos que quando você explodir tudo por aqui, não será o seu ou o nosso fim. A luminosidade deste astro vai se desfazendo com calma e quentura, não era sua vontade fazer este planeta permanecer na claridão, mas sentíamos que era da vontade do planeta, ser esquentado pelas labaredas solares até o fim daquele dia. O planeta desejava estar quente quando nossa lua iniciasse seu domínio na ilha de Vitória. E foi desse decréscimo inevitável, e nessa quentura cotidiana, que ela entrou aqui e respirou junto conosco. 

Não a demos boas vindas, ela sempre estava por aqui. Toda semana, ela vem ao mar. Mesmo após suas mudanças corporais, ela ainda permaneceu vindo até nós. Mesmo durante seus momentos de disforia, ela continuou vindo até nós. E ainda que assim não o fizesse, a água do seu corpo te arremessaria novamente nos desígnios de sua encarnação: chegar ao mar, e alí, respirar. Então estamos aqui, novamente juntas, vivendo aquilo que nunca deixou de acontecer: mergulhos, encontros. A cor é indescritível aos olhos da espécie que nos lê, mesmo que essa espécie nos veja em alguns momentos. O que a espécie vê somos nós, mas nós não somos apenas aquilo que a espécie enxerga. Por isso ela teve medo, porque ainda na adolescência, olhava para o espelho do banheiro e se perdia no reflexo de seus próprios olhos. Noite ou dia, havia susto e ela fechava os olhos mas se assustava novamente com sua verdade: a escuridão. 

Mas quando ela abria os olhos dentro do mar, a emoção era diferente. Sempre estivemos ao seu lado, e eu a ajudava a ficar calma quando dentro do mar seus olhos se arregalavam e lhe diziam aqui é o seu lugar. Porque ela aprendeu a nadar de olhos abertos, ainda que as águas da praia de Vitória fossem salgadas e escuras, por vezes barrentas… ela abria os olhos, aqui onde estamos. Olhavámos de longe, lá do outro lado da praia, essa era a distância que ela nos sentia, mas estávamos perto de você, ao seu lado. Ela fechou os olhos, respirou e nos sentiu, somos água, porque modificamos a qualidade da água com a nossa presença. Ali, a densidade é gelada na superfície e durante todo o ano, o gélido é que caracteriza as águas daquela ilha. 

Por isso ela abre seus olhos, porque na nossa presença, o mar tem a cor do gélido, a cor de sua mãe, a cor da saudade. Cores indispensáveis à espécies que nos lê, porém, cores invisíveis à quem não é como ela. Até mesmo em sua família terrena, não são todos aqueles mamíferos que conseguem enxergar as cores que ela assiste quando mergulha em nossa morada. Isso acontece porque ela foi marcada por nós. Em sua infância, a afundamos numa cachoeira em Santa Leopoldina. Uma mata atlântica que também não abandonou seu vai e vem de quenturas. Santa Leopoldina, onde ela foi picada por insetos, e

reclamou do calor, enquanto o cheiro de laranja, limão e mexerica se misturavam no ar e instauraram uma cor de vento que talvez apenas mamíferos consigam sentir, porque dos seus olhos saem lágrimas quando o vento dessas frutas tocam seus rostos. Como o pôr do sol na Ilha de Vitória, o degradê de cores. Mas ela não é o começo dessa história, apenas decidiu continuar sua linhagem, e aqui estamos nós, juntas, como sempre estivemos, em nossa morada, no mar. Estamos aqui, respirando juntas, dentro do mar. 

Então mais uma vez ela entrou no mar, e o momento já havia sido anunciado para todas nós. Ela sabia que precisávamos que ela vivesse essa dissolução, seus olhos demonstraram espanto mas seu corpo lembrou que sim, aquilo lhe era possível. Precisávamos que seu corpo fosse traumatizado daquela forma, ela precisava ter seus músculos marcados por essa experiência. Pois esse sempre foi o seu destino, acordado por ela e por nós: voltar ao mar, mergulhar onde por toda infância teve medo e vontade de encontrar. 

Ainda filhote, quando o primeiro líquido saiu de seus testículos, ela se assustou com a imprevisibilidade de sua água. Não houve mentiras, inverdades, ou contornos para aquilo que lhe estava acontecendo, porque o acaso nunca a protegeu daquilo que ela sempre soube não haver: a solidão. Então quando o líquido saiu de si, e espingou por toda a parte, ela se assustou porque lembrou das vontades da água em sua vida. Ou de sua vida como uma vontade d’água. E entendeu, criança, que nunca estará sozinha. Por isso vai à Beira Mar sozinha, por isso andou com suas pernas até a Curva da Jurema, e lá da areia ficou nos olhando. Estávamos na areia, ao seu lado. Algo estranho para quem nos lê, porque a mitologia criada nessa língua nos diz espécies que respiram apenas dentro d’água, mas o planeta terra é um estado de mergulho, a atmosfera também é imersão, a criamos, também somos filhas do ar. Peixes não são tão diferentes de mamíferos, e nós também não somos peixes, mamíferos, ou sereias. Não existem sereias, por isso acreditamos nela, porque ela acredita no impossível, ela acredita no que não existe: nós. 

Sim, estamos no fundo do mar, e aqui continuamos durante todos esses anos. A ilha de Vitória é um lugar especial, sua profundidade na atmosfera é bonita. Uma profundidade que cresce pra cima, montanhas; ela ama o Penedo, por isso vai à Beira Mar, para admira-lo, conversar com grande pedra. Ela morava na profundidade atmosférica, a Fonte Grande, nós estamos abaixo da ilha, no mar onde esse círculo de terra nasce e permanece. Embaixo da ilha há água, uma linha vertical por vezes se estabelece entre nós, os vulcões. Então misturamos ou assistimos a mistura entre a água de fogo e o fogo de sangue que saem da profundidade atmosférica, vulcões, as lavas. Mas a Fonte Grande não é um vulcão, ainda que ela sinta esse fogo. Nesta parte do planeta, não há vulcões. Então ela gozou, aquela água quente não era vermelha mas quando foi penetrada, sim, sentiu o sangue do músculo que te abria, sorriu e disse baixinho: estou pegando fogo, preciso de água. Então pararam o sexo, ela foi beber água e expelir líquidos. Lembrou: preciso de mais sexo, quero gozar sendo penetrada. E assim o fez, e daqui da kalunga a vimos, olhamos para ela, pelo buraco que foi aberto abaixo da Ilha de Vitória. Assistimos ela morrendo afogada em suas próprias águas e gargalhando. Assistimos através das nascentes daquela montanha. As nascentes são nossos olhos, e sim, estamos sempre chorando. 

Porque ela sentia cócegas de prazer quando, no alto da Fonte Grande, olhava para o mar e imaginava que uma grande onda iria inundar sua ilha. Uma grande onda azul, que ultrapassaria o Penedo, e repousaria-se na subida do morro. Uma onda gostosa, gorda, enorme, refrescante e cruel. A onda chegaria no fim da tarde ou no inicio da manhã, o céu estaria azul. O dia da grande onda seria um dia de prazer e comemoração, ainda que fosse o medo aquilo que em primeiro momento tomasse conta de seu corpo ao pensar na grande onda.

Ela sabia que estaria segura na Boca da Mata, pois também imaginava o que era preciso ser feito quando essa grande onda chegar: continuar subindo a montanha. Subir na Escadaria do Céu talvez não lhe fosse necessário mas se fosse preciso assim o faria. Porque ela sentia que a água não chegaria na Boca da Mata, ali já é bem alto. 

Havia também aquela preocupação de como salvar sua família, ela se preocupava e sabia que essa preocupação era uma mancha que lhe dificultava enxergar seus cuidados; eu os guardarei em um lugar seguro, e vou me jogar no mar sem ter previsão de volta. Voltarei, mas sem previsão…. 

Sim, chegou até nós, entendeu que nós também respiramos na atmosfera. Sim, não há nada neste planeta que kalunga não tenha possibilitado. Sim, ocorreu sua respiração dentro do mar, ela não é a mensageira. Trata-se da incorporação de tudo aquilo que esta em sua volta. Ela integra-se, porque ela é a criadora. Nós a criamos. Sim, ela é a grande onda, o medo de si não a impossibilitou mudar seu destino. Ela é a grande onda. 

A COBRA GRÁVIDA 

Uma cobra que engravidou a si mesma, lembrei dela depois da chuva fina que aconteceu agora pouco. Uma cobra grande, sempre molhada, adulta de uns 35 anos, magra e quando ficou grávida formou-se um inchaço no meio do seu corpo. Um caroço, parecia um furúnculo cheio de pus, assim que me lembrava dela. Eu não lembro suas cores, é sua barriga estranha que me faz sentir nojo. Parece que vai explodir. Eu, quando a via, tinha vontade de pocar aquele furúnculo cheio de pus. Coitada, me lembro dela em sofrimento, se arrastando devagar e em sofrimento. Que nojo daquele bicho, daquela cobra grávida. Quanto tempo não lhe vejo… há muito tempo lhe conheço. 

Lembrei depois da chuva que até hoje eu não sei quem a engravidou. Não me importava, nós sabemos a história da gestação, a cobra sempre passava por aqui com aquela cara triste, suada, coitada, e aquele barrigão. Lembrei! Um vento se fez em barulho por aqui e me lembrei que foi a cobra que se engravidou. Sim! Nós sabíamos disso, era assim que cultuávamos ela. Que estranho, ela existiu? Que merda é essa! Que estranho… 

Aqui na minha frente acontecem dois pontos de luz amarelada, parecem estrelas mas então onde estou? Porque se forem estrelas.. deveriam ser maiores que eu. Não são vagalumes, eu não sou essa cobra! Eu tenho duas pernas, dois braços e não posso engravidar. Estou sentindo um enjoo na barrig… não, na boca! Minha barriga continua tranquila, disposta a engravidar. Eu li num livro, que minha espécie não protege aquela região mole do corpo, deixa exposta a bolsa d’água e quando nos abraços pressionamos uma contra a outra. Uma espécie corajosa, e eu também sou corajosa. Sou uma cobra. Eu tenho dois braços e duas pernas, mas não sou daquele grupo animal… eu sinto que… nossa, estranho eu por vezes sempre me pego pensando que tenho dois braços e duas pernas. Braços eu tenho, mas não tenho pernas. Não sou uma cobra, não sou um peixe, e lembramos que aquela cobra descobriu como matar a sua cria: era preciso se alimentar de coisas que gerassem o aborto. Não! Não eram plantas para abortar, a cobra queria matar a cria ainda dentro de si. Digo, a preocupação não era tirar aquele troço de dentro, mas matar ainda dentro. Porque ela não queria que sua cria passasse pela sua boca ou por algum outro buraco para sair de seu corpo. Seu medo era ter que reencontrar com aquilo que desejou ter, mas eu penso que aquilo nunca esteve fora dali, nasceu ali. O medo era de tirar aquilo dali!

Elas me dizem de uma cobra cansada, mas eu tento imaginá-la esperta. Eu sou uma cobra esperta. Se eu fosse cobra, eu seria esperta. Você não é uma cobra, elas me dizem, então me mostrem o nosso nome! Mas elas não querem dizer, ficam caladas, e só voltam a conversar para nos lembrar da tristeza daquela cobra que eu já nem acredito mais ser triste. Preciso acreditar que aquela cobra conseguiu matar a sua cria. Eu conheci uma cobra que engravidou-se de si mesma e matou sua cria afogando-a dentro de sua própria barriga. 

Tem uma escuridão aqui agora, um ventinho gelado… Eu acredito que sou um cobra e nunca estive grávida. Não, você esteve grávida sim, e você matou sua cria com uma dentada na sua própria barriga, você enrolou em si mesma e matou sua cria enforcada. Você é uma merda, perigosa! Sim! obrigada. Sim, de fato, tudo isso aconteceu e eu gostei. Eu gostei de matar, de fazer maldade comigo mesma, gostei de me apertar até explodir o que eu havia criado, aquela merda. Uma grande amiga, me fez feliz por muito tempo, mas aquela desgraça apodreceu dentro de mim, foi dificil mas eu a matei. Foi facil, uma questão de abandono. Não um abandono de mãe com a filha, um abandono da história. Abandonei uma história, e agora vocês estão ai, perdidas sem saber como me cultuar. Eu continuo cultuando ela. A cobra grávida. 

DJINA DIAMI, KIANDA. 

Eme 

Eie 

Etu 

Enu 

Ene 

Ngana Nzambi, ngassakidila por isso. Ngassakidila ngana nzambi. ngassakidila. A memória não existe sem a permissão. O desejo prevalece, o caminho se modifica, mas meu desejo em continuar, há de prevalecer. 

Ngana Nzambi, afaste de mim todo e qualquer medo, vergonha, boicote, desamor, makongo. Quero ser lembrada como um vento úmido, uma tempestade de verão, quero ser essa kalema, kalema, kalema, kalema, kalema e kalunga. 

kalunga, kalema 

kalema, 

kalema 

kalema, kalunga 

Gemisakidila, seres que não sei nada além da lembrança que sim, existem. A danada da lembrança que se modifica sempre que respiro no ar e sinto que meu corpo pede o mar, pois meus pulmões nunca se esqueceram que também sei respirar em kalunga. Gemisakidila às almas, aos seres, ao negrume, à kianda.

Preta-Velha feiticeira, Preta- Velha kimbandeira, a ganga zimba abalao. Berimbal tocou yuna, tocou berimbal kalunga, um toque triste de morte, a capoeira foi jogada ao som da triste canção. Na boca de um ganga zumba, no fundo do coração. Ieee vai la menina, mostra o que o mestre ensinou, mostra que ao arrancar a planta que a semente ali plantou, se ela for bem cultivada, dará bom fruto bela flor. 

kimbanda 

iêe 

iêe 

iêe 

dipanda, dipanda, dipanda, dipanda, dipanda, dipanda 

Eu não sou daqui, capoeira. Eu sou discípulo de zimba, foi ele que me ensinou. Eu quero capoeira, eu quero ver a rasteira, angola e regional. Eme mukua kalunga, eme mukua negrume, eme mukua escuridão. Eye we? Eme wami! Sou capoeira, sou Augusto Brasileiro, meu pai, Exú Caveira. Wijidilu wa ngongo. Nunca fui la, nunca pisei meus pés la, na wijidilu wa ngongo. Kianda, Exú, lelu ni maza. Então hoje vou dormir com um cristal dentro de meu cu, e outro no meio da sobrancelha, espero conseguir chegar por lá, onde kianda está: em angola ou no meu próprio sangue? 

Henda, muitas saudades. 

Medo, tunda. kalunga, me dai forças! 

Tunda, tunda, tunda medo! kalunga, me dai forças. 

Henda, henda, muitas saudades de vocês, minhas imãs. Encontrarei cada uma de nós, até quando eu não mais lembrar do nome que nos deram. 

Encontrarei cada uma de nossas que já não lembram que existimos. Eu sou a mensageira. Eu sou. Nos encontrarei. 

Venham até mim, chamem pelo meu nome. Me chamem pelo nome que eles não sabem. Me chamem pelo som que eles não escutam. Me mostre que não estou sozinha, me mostre o caminho do prazer, tire-me desta história, leve-me para onde eu disse que iria e hoje já não lembro mais onde fica. 

Malembe 

Jikulumesso. Jikulumesso. Jikulumesso. Jikulumesso! 

Ngassakidila 

Henda, se iavula, ibeka njinda! 

Não vou esperar a maré baixar, porque tenho amor quando meus pés não tocam o fundo do mar. Quando a maré baixar. 

Kangiji ku utenda, kena ku ufua! 

Kuzola, kukoka, kuzeka, kwivwa, kuzeka, kwivwa.

Kianda 

Kianda 

Kianda 

Te espero, te quero 

Kianda 

Kianda 

Kianda 

Nota de agradecimento 
Agradeço a escola Kalunga Idiomas, ao qual, por meio do curso de kimbundo, pude aprender a pensar minha vida com fundamentos que não os princípios modernos de identidade racial ou de gênero. Agradeço à mulongexi Pátila, e as pessoas de nossa turma. Ngasakidila. Aprender kimbundo, tem me mostrado que sim, é possível construir novas histórias para pessoas escuras, como eu. Não somos reféns da história racial, somos ancestrais, somos antigos, antecedemos tudo isso. Minha eterna gratidão ao kimbundo.



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