Notas para um texto-coreografia

DAVI PONTES

Começo aqui, diante desse instante, um convite para compartilhar um experimento coreográfico, a fim de liberar a imaginação dos limites do entendimento e torcer o pensamento para outras direções.

Arraste o dedo por essas palavras até chegar neste LUGAR. Sim, esse texto pode ser tocado.

Agora sim.

Arraste o dedo por essas palavras até chegar neste LUGAR.

LUGAR como localização que teu dedo percorre até encontrar uma posição nessa página. Se lemos este texto da esquerda para a direita, estamos de alguma maneira criando juntos um tipo de acordo que permite imaginar uma linha reta. Essa linha reta supõe que existe um ponto de partida e que iremos percorrê-la até chegar no ponto de chegada. A escrita linear instaurou as noções de história e seus efeitos: causa, consequência, crescimento e progresso. O desejo incontornável de continuar lendo cada uma dessas palavras revela que nosso pensamento sempre procura a causa e o efeito em todos os acontecimentos.

Neste LUGAR seus olhos continuam articulando essas letras para dar sentido ao texto. Este texto é antítese do progresso. A sequencialidade é responsável por proteger o tempo linear e o mundo ordenado em conjunto com a tríade que sustenta o conhecimento moderno. Se a sequencialidade descreve o Espírito como movimento no tempo, um processo de autodesenvolvimento, e a História como a trajetória do Espírito, o experimento coreográfico aqui desenhado é um corte contra esse regime. Mantenho o compromisso de crítica a esse mundo e
aos modos que ele opera , e ao mesmo tempo, reconheço que não é apenas possível, mas fundamental, começar a imaginar a existência de um modo diferente.

Com o dedo neste LUGAR peço que faça uma pausa e, com a outra mão, desenhe uma linha curva. Depois, deposite o dedo neste LUGAR.

Podemos continuar.

Em qualquer instante, antes de chegar ao limite dessa página, momento que seus olhos alcançam a extremidade desse texto e os teus dedos ansiosos se preparam para revelar o que está a seguir peço que volte e deposite o dedo no primeiro LUGAR desse texto.

Imagine agora duas formas geométricas que tenham 4 lados, desenhe mentalmente cada lado dessa forma fora da tela e com os dedos indicadores de cada mão, trace lentamente e ao mesmo tempo as bordas dessas formas que estão soltas neste LUGAR que teu corpo compartilha.

Se chegamos até este LUGAR provavelmente você já tenha duvidado sobre como fazer essa coreografia corretamente. A incerteza é o primeiro gesto para liberar a imaginação dos limites do entendimento e torcer o pensamento para outras direções.

Como montar uma coreografia que pensa a diferença sem separabilidade e que ofereça uma equação para anular o espaço tempo como descritores de tudo que existe neste mundo?

Para orientar tal tarefa, vou pensar juntamente com Denise Ferreira da Silva e usar precisamente algo que sustenta o programa do conhecimento moderno – a formalização através do raciocínio matemático – num procedimento que confronta diretamente a determinação. Nesse exercício que se segue, articulo uma figuração entre racial e a não-localidade e uso bicondicional entre essas categorias para anular os efeitos que produzem. Na abordagem do pensamento pós-iluminista podemos notar sua capacidade de determinação observando duas estruturas lógicas: condicional e silogismo.

A escolha do ↔ (bicondicional) para apresentar essa imagem indica sua capacidade de obliterar a determinação de ambos os lados, pois esse símbolo é uma conjunção de duas condicionais que só pode ser compreendido em relação. Quero demonstrar também como a coreográfica pode interrogar economias do tempo quando colocada ao lado do pensamento fractal, reconhecendo que tudo nesse mundo está implicado em pelo menos 4 categorias, uma consideração da existência que atenda aos níveis biológico, histórico, cósmico, e quântico.

Peço que coloque um dedo indicador neste LUGAR e o outro dedo da mesma mão neste LUGAR. Provavelmente o gesto encontrado será um V ou U. Repita esse mesmo gesto na outra mão, agora encoste as duas mãos apenas com as pontas dos dedos. Desencoste apenas um dedo de cada mão e una novamente para cima ou para baixo repetidas vezes.

Agora solte as mãos e devolva o olhar novamente para essa página.

Emprego este gesto a partir da equação abaixo para fornecer uma descrição distinta para a diferença, o que proponho não segue as lógicas deterministas mas destaca a incertezas do movimento que estão fora dos limites da representação.

RACIAL ↔ NÃO LOCAL

Como discuti anteriormente neste LUGAR, o efeito dessa ação quando empregada é desfazer a diferença, não me interesso por dicotomias. Quer dizer, me comprometo em exceder essas tendências, pois a lógica praticada pela equação não se aplica na contradição, menos ainda na contraposição.

O que me interessa sublinhar nesse texto, entretanto, é a correlação da coreografia com o tempo linear, isto é, com uma temporalidade acionada a partir dos pilares ontoepistemológicos em que a determinação e a sequencialidade são responsáveis por sustentar essa linearidade direta, serial, da qual a modernidade cinética também participa.

Recomendo para isso uma coreografia que se alastra, expande, divide, que não tenha limites para divisibilidade, que desorienta o pensamento para implodir as construções do entendimento, que compactua apenas com o domínio do imprevisível e que esteja alinhada com as nossas vidas negras que irrompem na radicalidade. E agora, antes que possa começar a relação com que acontece do outro lado da página e antes que chegue ao final desse parágrafo, peço que esconda com o dedo indicador a palavra LUGAR que está na linha abaixo.

Percorra lentamente o dedo por cima das palavras abaixo na direção inevitável que seus olhos perseguem o texto para que cada palavra seja descoberta à medida em que as letras se revelam por de trás do seu dedo.

LUGAR. Nesse recomeçar se perpetua a promessa de obliterar a diferença.



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