Só Deize salva

DEIZE TIGRONA

Quando pequena, com 7 pra 8 anos de idade, eu, minha mãe, meu padrasto e meu irmão morávamos numa cabeça de porco, que hoje é chamada de quitinete. Nesse lugar, moravam mais umas sete famílias, mas, somente a minha mãe tinha filhos. Ali, éramos uma grande família, todas com seus problemas, bons ou ruins, mas sempre nos ajudando. Ali, passamos mil coisas, e, de certa forma, morar lá não era tão ruim, pois, de alguma maneira, essa experiência ficou marcada na minha memória, a ponto de eu não lembrar de ter morado em outro lugar. É até estranho eu falar que não era tão ruim morar ali, pois foi lá que um cara abusou de mim. Na época, eu nem sabia o que era isso, eu era apenas uma criança querendo ganhar uma bala doce. Foi traumático, e só não foi pior porque meu padrasto chegou a tempo de impedir que aquele homem seguisse com o seu plano de abusar de mim. Naquele dia, minha mãe me bateu. Ela sempre pedia para nós, eu e meu irmão, não sairmos de casa e nem abrirmos a porta enquanto ela não estivesse em casa e sempre conseguia que a vizinha cuidasse de nós, que nos olhasse. A vizinha combinava de ir nos ver, de vez em quando, e de certificar que estávamos bem, mas foi numa dessas que eu, esperando a visita da vizinha, saí de casa e fui brincar no quintal. Eu fazia isso às vezes, porque, lá nesse bairro, o banheiro era comunitário, e ficava no corredor, mas a minha mãe nunca nos deixava usá-lo. Dentro de casa havia um cano instalado no chão, que utilizávamos para as nossas necessidades. O cano dentro de casa fedia bastante, e às vezes eu tentava sair de casa para parar de sentir aquele cheiro. E foi nessa saída que esse moço me chamou para receber uma bala. 

Lembrando dessa parte da minha vida, eu vejo que, de fato, Deus protege as crianças. Eu e meu irmão, na verdade, ficávamos nas mãos dele, e talvez essa minha escrita de que não era tão ruim morar lá seja porque eu queria voltar a ser criança agora, talvez ter um pensamento ou atitudes diferentes. 

Com o acontecimento do abuso e de outras situações com nossa família,  meu padrasto pediu ajuda da minha avó para conseguirmos sair de lá. Minha mãe odiava ter que pedir algo para alguém da família dela. Mas, não teve jeito. E, no final, não foi tão ruim. Minha avó nos ajudou a pagar um aluguel, porque já estávamos com atraso de uns cinco meses, levou o meu padrasto no mercado e fez umas compras para nós. Minha avó também orientou minha mãe a invadir um apartamento da CEHAB. Minha mãe relutou, mas não teve jeito, o meu padrasto já tinha aceitado logo de cara. E assim seguimos. Logo depois, a minha família invadiu o apartamento e, na primeira noite, na madrugada, apareceu uma outra família na porta informando que o apartamento era deles! E eles já chegaram forçando a porta, a minha mãe pegou uma faca, meu padrasto abriu a porta. A outra família não queria nos colocar pra fora, só falava que não era pra nós estarmos ali! Diziam que um parente deles os autorizou a invadir o apartamento, que eles só não entraram antes porque estavam vigiando o apartamento de longe. Só que não vigiaram direito, né! Porque nós entramos pela manhã e eles só entraram na madrugada do outro dia. Rolou uma discussão naquele dia, mas depois ficou tudo bem. 

A preocupação da minha mãe era a de como que iríamos ter privacidade para o uso do banheiro. A outra família dividiu a casa e pediu pra nós ficarmos no quarto, e eles, na sala. Mas, banheiro e cozinha, usávamos juntos. Meu padrasto botou uma cortina na porta do quarto e lá ficamos. Já não era como na cabeça de porco, que tínhamos que usar o mesmo banheiro, neh! 

Perceber que são muitas as famílias que não têm onde morar é um problema social tão ruim que chega a mexer com o emocional de uma família. Desestrutura qualquer um. A falta de moradia precisa ser resolvida, mas o Estado quer nos ver mendigar! 

Minha mãe, no início, não queria dividir o apartamento com a outra família, mas ela acabou aceitando, pois estava grávida de novo. Meu padrasto foi orientado por minha avó a casar com ela e oficializar o registro de paternidade adotada na minha certidão de nascimento, e na do meu irmão. Isso era uma estratégia da minha avó para conseguirmos oficializar o pedido de moradia na CEHAB. Ele não conseguiu registrar o meu irmão, apenas eu. Com os documentos em mãos, o meu padrasto abriu o processo e a outra família teve de ir embora. 

Eu fiquei triste porque eu passei a gostar deles, das moças e dos filhos delas. Eram duas moças e dois meninos, parecia que uma delas era a mãe, e a outra era tia dos meninos. Elas davam comida para nós, porque minha mãe vivia dormindo por horas, devido a gravidez. Ela até esquecia que eu e meu irmão tínhamos que usar o banheiro. Mas, pra quem tinha morado numa cabeça de porco, com várias famílias, dividir o banheiro com apenas uma família não era tão ruim. 

Bom, estou escrevendo sobre essa parte da minha vida aqui porque passei um processo parecido com a separação do pai dos meus filhos. Por fim, eu só queria curtir a minha vida, mas, quando se é casada, não é bem assim, né. A gente parece não ter vida. Foram anos de casada para depois descobrir coisas desagradáveis. Não há compreensão. E a única solução, pra mim, foi a separação. E, quando eu tomo essa atitude, o boy me diz não ter onde morar, me pede pelo amor de deus para perdoar. Disse que seria constrangedor voltar para a casa da mãe. Nesse processo, ele me conta coisas da vida, de sua família do passado e me traz este gatilho do que eu vivi. Escrevi lá em cima. Mesmo com tudo isso, por ele ser o pai dos meus filhos, eu tive dó. Mas nem tanto assim, porque se fosse eu a adúltera, ele não iria me perdoar. Então não vi outro jeito e lhe contei o meu segredo, o segredo sobre o que aconteceu comigo no meio-tempo de reflexão sobre a nossa separação. Claro que foi algo gostoso e prazeroso pra mim, mas tive que contar pra ele como se fosse uma traição. 

Pensei que também o traí! 

Cheguei pra ele e falei que o traí porque ele me traiu primeiro! 

Ele me respondeu dizendo que não se sentiu traído, e, sim, que foi só uma forma que eu consegui me vingar da traição dele à minha pessoa. 

Fiquei frustrada e comecei a contar detalhes de como foi! 

Comentei pra ele que eu esperava uma amiga e que quando ela chegou, já foi me cumprimentando com um beijo na boca. Ficamos ali na sinuca do bar por um tempo. Em um momento, essa amiga me avisou que ia ao banheiro. Eu fiquei ali na sinuca com a Phil, outra amiga! Mas logo Phil sumiu por um tempo. Fiquei sozinha, e nada da outra amiga voltar do banheiro.

Phil voltou primeiro, me apresentou uma amiga dela de anos, que já foi logo beijando a minha boca! Eu já havia lhe perguntado, por umas três vezes, qual o seu nome. Ela só sorria, e eu ficava assustada. Enquanto isso, seguia esperando a amiga que me falou q iria ao banheiro! Estava ali na sinuca com a amiga da Phil, já correspondendo aos beijos, que neste momento já era sem medo algum. 

A amiga que foi ao banheiro voltou, me falou que não queria atrapalhar o encontro, que percebeu de longe que eu e ela não batia a “química”, mas que, se isso não nos incomodasse, ela queria um a três! A amiga de Phil, então, parou de sorrir. Eu fingi que não havia ouvido e nem visto a expressão delas kkkkkkkkkkk. 

O boy, até então, me ouviu e me questionou num tom de ironia se foi só isso o que aconteceu. 

Eu então percebi e lhe respondi dizendo que poderia lhe contar mais sobre a sinuca e as amigas! Mas o boy seguiu insistindo e afirmando que sabia que foi só vingança, porque, pra ele, mulher não trai, se vinga! 

Continuei a história! 

A amiga da Phil me chamou pra uma baleada. Eu nem quis saber o que era e já fui junto. Seguimos com um grupo de meninas trans que também estavam no bar. 

Essa amiga da Phil segurava minha mão, me abraçava, bebia água, tomava cachaça, e me dava água ao mesmo tempo em que tomava a cachaça. 

Ela dizia que não iria jogar a baleada porque se sentia fraca para levar umas boladas nos peitos, rsrsrs. Mas que iria me acompanhar pelo menos nesta.

Chegamos no local da baleada e pra minha surpresa era num campo cheio de areia. Logo as meninas começaram a se dividir em dois grupos, cada um para um lado. 

Uma das meninas me chamou para mostrar o nome da praça, que se chamava Deize Salva! Eu perguntei o porquê daquele nome, se se tratava da mesma Deize do funk, ou se era outra. Elas me falaram que sim, era a Deize do funk! E que a participação da Deize com a Jup do Bairro, na música “Levanta dessa cama pelo amor de Deize”, as fez entender que a Deize é um Deus, e que nunca pensaram que Deus pudesse pisar naquela praça pra jogar uma baleada com elas. 

A amiga da Phil ficou me olhando durante toda a baleada. Distraída, levou uma bolada nos peitos e foi uma das primeiras a ser eliminada rsrskkkk. 

Eu, por final, levei uma bolada nas pernas! 

As meninas ficaram me fazendo de “bobinho” o jogo todo para que a baleada não acabasse tão rápido. Fazia anos que não acontecia uma entre elas. Então percebi que, é verídico, elas acreditam em Deus! 

O boy me interrompeu, perguntando o que era uma baleada? Eu respondi que era um jogo de queimado, igual o que se joga no Rio, sendo a única diferença o campo! Enquanto na baleada o campo é de areia, no queimado do Rio, o campo é sólido, tipo asfalto. Há uma diferença de nomes, mas o jogo eu já conheço. 

O boy tbm perguntou se as trans não sabiam quem eu era! Eu respondi que sim, mas que preferia acreditar que não, pois fui comparada a Deus, mesmo tendo sido baleada nas pernas. 

Por fim, já era umas 3 da manhã e a reunião da baleada se acabava. As meninas foram para suas casas. Eu pensando na primeira amiga da sinuca, em toda a situação que vivi, nas pessoas que estavam comigo à noite, a emoção de ouvir suas histórias, de beber e rir juntas e as consequências do coração quando o sentimento é intenso. Os olhares e beijos.

Eu pensava em tudo. Não tiver como escapar das olhadas da amiga da Phil, ela me olhava como se já me conhecesse, e eu correspondia como se ela já fosse dona da minha vida. Cada piscada que eu dava, me via cada vez mais embolada nos membros dela, nos braços, nas pernas, se escorregando com o suor dos nossos corpos, feito nossas línguas, tentado se encaixar, sugando uma à outra, até nos derreter e solidificarmos para a próxima cruzada de pernas ou piscada de olhos rsrsrs. 

Então o boy gritou!: “Você é sapatão? Você ficou com mulheres?”. 

Eu respondi: “Sim, fiquei com mulheres”. 

Ele contestou dizendo que já não era só vingança. 

Eu logo respondi: “Confusão ou traição também não foram!”. 

O boy, então, me implorou pra que não contasse essa história para ninguém, que ele ficaria mais conformado se fosse só vingança. Mas eu entendi, porque ele não acredita em Deus!



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