Terra, castelo, ficção de areia

DIEGO CRUX E GIAN SPINA

falavam do restaurante, da praia, do aeroporto, da casa de tortura usando a mesma palavra

Calabouço. Em cumprimento ao alvará régio de 16 de novembro de 1693, mandou-se construir, no Rio de Janeiro, junto ao Arsenal do Exército, no morro do Castelo, um calabouço ou casa pública para castigos dos escravos. O alvará proibia que os senhores de escravos usassem instrumentos de ferro nos castigos e que condenassem os escravos em cárcere privado.¹

Reconheço que era um modelo. Arguiam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude, e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o déficit. Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço.2

A terra. O Calabouço sobre ela, dentro dela. Às vésperas do centenário da dita independência do Brasil, o arrasamento do Morro do Castelo (Descanso) para a modernização da região. O aterramento do lugar, onde hoje, há o Aeroporto Santos Dummont (um dia Aeródromo Calabouço) e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio). Símbolos de acesso, poder, status. Somam-se outras terras, e, aquela terra vertical, rasgada em nome de um progresso pretensioso e prepotente, que apaga e silencia, é transfigurada em terras planificadas, que afastam as águas e são interditadas àquelus que, num acordo velado unilateral, não são bem vindes nesses espaços. Torço pela onda, pela quebra, pela infiltração.

O que essa terra, conhecedora das narrativas e testemunha das transformações —
inclusive da sua própria —, pode contar acerca dos planos e ações que determinaram, num dado momento histórico, naqueles chãos, quem não poderia sair, e num outro momento, quem não poderia entrar?

eles nos queriam abaixo e sabíamos que eles chegariam. o afastamento, o deslocamento, a separação de toda a nossa ocupação não seria algo difícil de prever. mas, como sempre, era difícil prevenir essa ação. muitos dos que quiseram a preservação, queriam apenas em benefício de uma fantasiosa lembrança enviesada de glória, uma memória seletiva. sabíamos de tudo isso porque já tínhamos visto, mesmo antes de ver. o nome Calabouço já pairava sobre os chãos que ali existiam antes de existir a extinta casa de correção. as mesmas violências ainda ocorrerem e se expandem em lugares sem nomes, assim como esse nome que agora acompanha outros-chãos-mesmos-chãos espalhados e planos, sem saber o que um nome pode invocar.

Descer o Morro

Que conversas as terras e as águas em seus silêncios podem ter?

por toda a nossa extensão, nosso corpo espesso, que liga polos opostos do mundo, há uma linha de fronteira, que separa o “eu” do “outro”, que me faz montanha e aterro. eu cruzo a cidade, que é uma tela de construção de significados. ontem, nós estávamos morro, e agora, recebemos, planificada, as pessoas que pousam na nossa barriga, que correm sobre o nosso peito e se divertem em um mundo com exposições internacionais.

Qual a dimensão poética da memória?

ser terra enquanto morro
ser múltipla enquanto solo
não morro,
multiplico

Corta a cena

22, cem anos passaram, já foram, viraram outros.

Como se fosse possível arrasar o morro do Castelo sem demolir tudo o que se achava sobre ele ³

É possível pensar a memória fora desses padrões coloniais?

com seu “zóio” grande, nos seus planos, nas suas ações, eles quase nos observavam,
quase nos viam esvaindo em forma de lama pelas mangueiras hidráulicas, enquanto que sobre o aterro resultante tomavam forma os palácios e as avenidas.4

Plano aberto

Abrem-se avenidas e um plano diretor encomendado demonstra preocupações de primeira ordem, frente aos rumos que a cidade leva. Remodelar, modificar, refazer. Escuta, pede, desmonta, atravessa por dentro do morro que não está mais lá, no meio do centro da cidade com casas de torturas a populações vindas de fora, do outro lado do rio, obrigadas. A rua, outra, a terra, a mesma. Transposição do solo em direção a uma outra forma. Achata isso tudo, põe de volta isso tudo. Pensa que a distância entre um e outro tem agora a forma de: geologia, museus, parques nacionais, que comemoram uma série de passados específicos, coretos e monumentos, nomes de novas ruas onde antes eram águas. Já viu, já passa e volta.

Imaginai tudo isso; embalar-vos-heis com uma ficção que já tem sido e será mil vezes uma verdade. Sentemos-nos nestes bancos de mármore e de azulejos: voltemos as costas para o mar; 5

…ganharia com a utilização da valiosa área a ser aplainada e criada, e ainda, nas próprias palavras de Carlos Sampaio: “Mostrar ao mundo civilizado que o brasileiro também sabe trabalhar…” 6

Plano fechado

sou a terra desse lugar. somos os chãos, os subterrâneos, o topo, o dentro, a água
abaixo, o céu acima. o que se esconde e o que se exibe. no castigo, na fuga, no tiro, na remoção, no grito, na boca, na quebra, mar.

Quis tocar o céu, mas terminou no chão7

O que carrega essa terra? Quem carrega essa terra? Essa terra que se esparrama em
esquecimento.

A hora do crepúsculo é suave, melancólica, e propicia aos sonhos do futuro e ás
recordações do passado. Deixemos o futuro a Deos no céo e aos poetas na terra.8

nós
que ainda lembra do que
esquece

100 anos antes, 100 anos depois. às luzes de corpo denso, luz noite, ofuscante,
fantasmagorias de um passado, de um futuro, de um agora sempre. claridades turvas de uma cegueira branca que nos quer em silêncio, longe. ali não há escolha se não olhar de baixo pra cima. não olhamos. nunca é uma questão de perspectiva. não recebemos o convite pr’aquele espetáculo, centenário, independência. não que fosse um desejo nosso. aquele show era pra eles, e só eles. mas ainda assim, aqui estamos presentes, excluídes, nas margem e nas infiltrações. 100 anos antes, 100 anos depois.

182219222022

A partir de que ponto definimos o início do passado a ser recuperado?

As celebrações purificam ainda mais a história confusa vivida pelos atores. Elas
contribuem com o contínuo processo de mistificação que reveste a história com formas mais definidas: elas ajudam a criar, modificar ou sancionar os significados públicos associados aos eventos históricos considerados merecedores de uma celebração em massa. Assim como rituais que enlatam a história para o consumo público, as celebrações fazem o jogo dos números para criar um passado que pareça ao mesmo tempo mais real e mais elementar.9

Sem contar com Calabouço, Flamengo, Botafogo, Urca, Praia Vermelha.10

Corta o plano sequência

A praia do Calabouço e todas as relações com um passado não quisto, está soterrada, tudo. A região onde se encontra o Aeroporto Santos Dumont e o MAM Rio para o qual escrevemos este texto, se chamava ponta do Calabouço e foi enterrada, assim como o seu nome.

O espalhamento e a ressignificação da terra do morro do Castelo fez da montanha plano. Achatou questões fazendo delas desenhos feitos por grandes paisagistas no solo, e, que podem ser vistos através das lentes do google maps. Fotos em sequência, que formam filmes. Filmes com pessoas congeladas, onde você clica com o mouse e arrasta todos para os lados.

A história da terra dessa região é uma história de ressignificação, de tira daqui e põe ali, muda de cor, muda de nome, planifica e corre pro bar mais tarde. pois tá tudo certo agora, passa o pano, porque lavou tá novo. gera distância e recurva a reta.

Farei apparecer dinheiro e gente: fica isso a meu cuidado : vá mestre, multiplique-se e saiba que é minha vontade ver prompto esse jardim antes que eu seja substituído no governo do Brazil. 11

Além deste dinheiro recolhião-se também no mesmo cofre as quantias que pelos açoutes dos escravos pagavão os senhores no calabouço; e assim ia o vice-rei ajuntando boas sommas, que applícava ás diversas obras publicas, e especialmente ás do Passeio Publico.12

O Passeio Público, inaugurado em 1783, foi concebido e executado nos moldes de “um autêntico jardim da ilusão”, conforme a convenção europeia.13

O arquiteto dessa praça teve mais tarde parte de sua identidade roubada em um
processo muito similar ao, já citado, desejo de “querer se fazer Europa”.

Calabouço e os arrasamentos
quando morro

Mang
ueiraCastel
oProvidên
ciaSantoAn
tônioSãoBent
oConceiçã
oSantaTer
esaSe
nad
o

Existe a lenda que dizia que, ao subirembaixo da Ladeira da Misercórdia, havia um portal que levaria a outro espaço e tempo.

Na mudez de catacumbas seculares, os subterrâneos do Castelo bem serviram para
guardar os tesouros da Ordem mais rica do mundo e ainda os guardam certamente.14

almejavam as nossas entranhas, antes penetradas e apropriadas por outros iguais aqueles que, assim como os anteriores, nos querem como propriedade. restituição de posse daquilo que não era deles, assim como não foi dos outros, e que, apesar de ser nosso, também não era.

– Sr. vice-rei – observou o artista – a cidade tem montes demais, como V. Exa diz; creio, porém, que ela ainda precisa mais de aterros do que de arrasamentos.
– E por que não faremos aterros à custa do outeiro que arrasarmos?…15

Era filho de Joana, da nação saburu, que, quando alforriada, passou a se chamar
Amatilde da Fonseca Silva.16

Roubado por três ladrões, que invadiram o Passeio na madrugada de oito de janeiro de 2004, e o arrancaram a marretadas, o busto de Mestre Valentim, foi trazido de volta ao parque. Não trata-se da peça original, de autoria Joaquim Rodrigues Moreira Júnior, e instalada no Passeio na ocasião do centenário da morte do artista, a 1º de março de 1913, mas de uma réplica.17

O mestre Valentim queixava-se de que Luiz de Vasconcellos, que se dizia tão seu amigo, e que tantos tributos pedia á sua capacidade artística, desse-lhe sempre mais elogios do que dinheiro.18

Anos mais tarde, da vontade de roubar-lhe a identidade, de moldá-lo às narrativas da época, e deixá-lo cada vez mais parecido com o que se queria que fosse. Ele virou uma representação daquilo que representava. Sumiram com suas imagens, roubaram seu busto da praça e, quando voltou, voltou outro. O processo de embranquecimento do Mestre foi, e tem sido feito, sistematicamente, e para além do próprio Mestre.

deslocamento
dos altares da Igreja São Pedro dos Clérigos
da terra do morro do Castelo
da terra onde existia um Calabouço
de populações precarizadas para a construção de avenidas e museus
de populações precarizadas para a exposição internacional em 22
de populações precarizadas para a busca do padrão FIFA
de populações precarizadas para abertura do MAR e do AMANHÃ
deslocamento de

Mais tarde um restaurante com o mesmo nome nasce, desta vez o nome é usado para o progresso. O Restaurante do Calabouço era um lugar onde pessoas que lutavam contra a ditadura se encontravam para se articularem e se organizarem contra o regime.

DEVOLVAM O CALABOUÇO!19

Em Maio de 68, Edson Luis, um jovem racializado, de 18 anos, é morto pelo regime
militar, dentro do Calabouço. Era como se, naquele momento, um ciclo de quase 300
anos continuasse a apoiar-se sobre as mesmas nomenclaturas, com os mesmos
resultados. porém, com novas tecnologias.

O nome Calabouço é o que junta. Tudo amalgamado. Tudo.

O golpe que levaria ao fim do Calabouço foi desfechado em 1967, por ocasião de um
encontro que reuniria gente do FMI no Museu de Arte Moderna (MAM). A pretexto de urbanizar a região, melhorando o acesso ao Centro de quem vinha do Aterro, o governo anunciou a demolição do restaurante do Calabouço.20

Plano americano

A mortificação nas trevas da prisão, de outra morte na penitência, outra nas redenções, às custas de braços gastos, na lida dedicada aos outros, na iminência dessa que segue assombrando todes que ainda escapam até hoje.

¹ Clóvis Moura, Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. 2004, p. 79.
² Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas. 18-?, p. 155.

³ Carlos Sampaio, 1928, p. 7, apud Carlos Kessel, 2000, p. 62
4 Carlos Kessel. A Vitrine e o Espelho – O Rio de Janeiro de Carlos Sampaio. Coleção Memória Carioca, Vol. 2, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2001.

5 Joaquim Manuel de Macedo, Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro (Tomo I). 18-?, p. 79
6 Paulo Cezar de Barros, Onde nasceu a cidade do Rio de Janeiro? (um pouco da história do Morro do Castelo). Revista geo-paisagem (on line), Vol. 1, número 2, 2002.
7 Emicida part. Larissa Luz & Fernanda Montenegro, Ismália, 2019.
8 Joaquim Manuel de Macedo, Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro (Tomo I). 18-?, p. 79

9 Michel-Rolph Trouillot – Silenciando o Passado – Poder e a Produção da História
10 Tim maia, Do Leme ao Pontal, 1986

11 Joaquim Manuel de Macedo, Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro (Tomo I). 18-?, p. 104
12 Joaquim Manuel de Macedo, Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro (Tomo I). 18-?, p. 106. apud Revista do Instituto Histórico, tomo 4º, 1ª série, p. 25.
13 Livro por Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Schwarcz, Enciclopédia negra: Biografias afro-brasileiras, 2021, verbete Mestre Valentim, p. 437.

14 Lima Barreto, O Subterrâneo do Morro do Castelo e Outras Histórias, 2017, p. 20
15 Joaquim Manuel de Macedo, Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro (Tomo I). 18-?, p. 87-88
16 Livro por Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Schwarcz, Enciclopédia negra: Biografias afro-brasileiras, 2021, verbete Mestre Valentim, p. 436
17 Passeio Público – Diário da Restauração – Matéria publicada Mais Passeio – Ano 3 – Nº32 – janeiro/fevereiro de 2005 – http://www.passeiopublico.com/htm/sec21-03restauro8.asp
18 Joaquim Manuel de Macedo, Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro (Tomo I). 18-?, p. 85.

19 Imagem do Fundo Correio da Manhã. Arquivo Nacional. Manifestação estudantil contra a Ditadura Militar, 1968
20 Jornal Extra. Palco de resistência em 68, restaurante do Calabouço foi palco de manifestações históricas contra a ditadura Disponível em:
https://extra.globo.com/noticias/brasil/palco-de-resistencia-em-68-restaurante-do-calabouco-foi-palco-de-manifestacoeshistoricas-contra-ditadura-479327.html Acesso em: 24 de jun. 2021



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