LINGA ACÁCIO
Tenho um mar inteiro na garganta, turvo e agitado. Na boca do estômago, um incêndio em alto-mar. Um alarme, o superaquecimento que anuncia a destruição. Estado febril que nunca nos larga e nos arremessa ao cansaço e ao desânimo. Os anúncios se fazem e movem as palavras e as águas aqui presentes rumo a uma rede onde eu possa descansar, fechar os olhos e respirar.
Escrever junto à febre é confiar caminhos na escuta ao sintoma enquanto uma manifestação de modificações orgânicas ou funcionais. Um mecanismo de defesa: ao aquecer, dificultamos o alastramento de agentes patógenos que ameaçam a nossa existência. Apesar de um sintoma clínico comum, não se trata de fazer um diagnóstico patológico, mas acompanhar a febre enquanto uma ferramenta ontoepistemológica homeostática, aguçar a percepção a partir da singularidade de um corpo que superaquece e da trama de poder que a hipertermia manifesta.
Como tratar este incêndio sob uma perspectiva de transmutação?
Em 2013, atravessei uma grande febre, específica e inserida em um contexto. Foi uma imersão febril de quase um mês, entre 37,5 ºC e 39 ºC. Naquela época, fiz diversos exames e os linfócitos atípicos já estavam presentes, ainda sem nome. Foi perto do vigésimo dia que tive a confirmação de que estava vivendo com HIV. A febre ali presente já anunciava a complexidade (e simultaneidade) do que estava por vir: a presença virótica e o rojão sorofóbico construído durante décadas ao associar e estigmatizar a contaminação pelo HIV a populações LGBTQIA+. O preconceito homo-trans-soro-fóbico inviabilizou (e inviabiliza até os dias de hoje) o acesso a informações sobre acolhimento, contracondutas da AIDS, uso de métodos contraceptivos e outros cuidados para uma parcela ampla da sociedade.
Ao escutar o medo que a febre me trouxe, pude localizar a sorofobia enquanto uma construção eugenista (ideário de pureza) que formula um conjunto de práticas preconceituosas em relação a pessoas em condição sorológica positiva, como pessoas que estão vivendo com HIV.
Você não está sozinhe, assim como eu também sigo em companhia… este texto é sobre conviver e andar junto, os desafios e os desejos que acompanham esse deslocamento na ficção espaço-tempo. Uma viagem que começa antes da febre e se prolonga através dela, um delírio. O que criamos no movimento é o que importa: nossas mãos a se tocar, nossos abraços, nossos beijos. Reciprocidade. Temos construído nossos viveres assim, na temporalidade do vento, que sopra a duna, rearranja a areia e faz crescer raízes, finas e longas, por entre os grãos do tempo. Falo pela língua do deserto, temos cruzado o espaço com milênios nas mãos. Se é tempo de escassez e queimadas em nome do agromonocultivo, também é tempo de plantio e prosperidade. O movimento atravessa a coexistência entre seres, espaços e tempos.
Estar na companhia de um vírus é lidar com um processo de invasão, parasitagem e simultaneidade; é pensar na convivência radical e na separabilidade em diferentes camadas.
Conviver apesar da contaminação/Separar o vírus da condição sorofóbica.
Positivar a convivência com o vírus é declarar a violência sorofóbica que acomete a relação de contaminação. Minha luta não é mais contra o vírus apenas, mas sobretudo contra aquilo que me mata pela crueldade: a sorofobia, pois contra o medo não há vacina. Lidar com a convivência tem sido então me deslocar na companhia de um vírus, é entender o que se passa na convivência com uma doença crônica.
Em que espaço-tempo estou doente?
Uma forma de contabilizar minha permanência de deslocamento no espaço-tempo é contada pelos comprimidos que eu tenho em mãos. Por exemplo, se eu tiver 20 comprimidos, eu tenho 20 dias para chegar ao próximo posto de saúde ou hospital e pegar mais 30, 60 ou 90 comprimidos que prolonguem minha experiência no deslocamento. São oito anos convivendo com o HIV. Nesse tempo me deslocando, posso calcular que percorri até aqui uma distância de aproximadamente 4746 comprimidos. Entre tratamentos que variavam entre 3 comprimidos (Efavirenz 600 mg + Lamivudina 300 mg + Tenofovir 300 mg), 2 comprimidos (Dolutegravir sódico 50 mg e um só de Fumarato de tenofovir desoproxila 300 mg + Lamivudina 300 mg) e 1 comprimido (3 em 1 de Efavirenz 600 mg + Lamivudina 300 mg + Tenofovir 300 mg). A forma como a indústria farmacêutica lida com pessoas posithivas é sob o ponto de vista do lucro: ao criar tratamentos que dependem de remédios diários, restringem o deslocamento e garantem o amplo consumo. Instigo uma conduta ética que proporcione autonomia sob a forma de se deslocar.
COMO FUNCIONA a equação sorofóbica de compressão (opressão/violência) do deslocamento espaço-tempo (movimento/corpo) imposta pela indústria farmacêutica (branco/cisht)?
Nossa respiração diz um tanto sobre nós, de quando estamos juntas a destrinchar a equação e a desenvolver as matemáticas além do mundo estruturado para que nunca estejamos aqui de fato.
Volto à febre e a sua característica de comunicação e anunciação. Entender o efeito que o HIV produz ao corpo infectado: o vírus se aloja em nossos linfócitos T, células mensageiras de nosso sistema imunológico, que alertam sobre a presença de vírus, bactérias e micróbios. Quando algo não vai bem, temos esse recurso de mobilização de nossas defesas e ativamento dos anticorpos. O vírus cria uma interferência no aparelho imunológico, especificamente na comunicação desse sistema, e ao se reproduzir destrói os linfócitos T, baixando as taxas CD4. A febre surge na lida com a infecção. Fortalecer a comunicação me chega enquanto uma necessidade de sobrevivência, lugar de fragilidade onde estou sendo atingida pela força virótica, agora suprimida pelos antirretrovirais, que criam uma dimensão farmacotóxica e aprisionam o vírus dentro das células T. Aprendi com o vírus a importância de interromper o sistema e burlar a comunicação normativa.
Observo de dentro da colônia o processo de alastramento virótico intencional da COVID-19 que avança como planejado pelo genocídio e perpetua a precarização e a marginalização de vidas racializadas e dissidentes. Apesar de efeitos viróticos distintos, aproximo essas experiências, pois a violência sorofóbica atrapalha, em ambos os casos, a lida com o tratamento da infecção e cria outros problemas, como ansiedade, negação e alienação da realidade que vivemos. Em meio à desinformação e às fake news, temos o desafio de entender nossas reais demandas: como o vírus age e se movimenta, acesso a higiene básica (água e sabão), alimentação, moradia e métodos de redução de danos. Nunca há uma boa oportunidade em meio à opressão.
Sintoma-febre
Febre do ouro, febre climática, febre pandêmica. O capitalismo está nos arrastando para mais uma crise, em outro século e milênio: nas contínuas invasões em terras indígenas e quilombolas, no derretimento das calotas polares, na desertificação dos solos – biodiversidades em risco em nome de um sistema que propaga a opressão, o saque e a hierarquia. A fumaça da Amazônia a cobrir um continente. Há de se ter atenção aos sintomas de uma terra febril, nossa casa, nosso corpo coletivo. Acreditar na simultaneidade, nas cinzas que irão fortalecer o solo.
A vida se faz em um delicado equilíbrio, nossa construção segue apesar do barulho que a destruição provoca. Em meio às chamas e aos ecos, também estão as vozes de nossas mais velhas a reverberar pensamentos que estruturam metodologias de acolhimento em meio à violência do apocalipse colonial. Elas estavam a formar nosso amanhã, uma cápsula do tempo, algo do agora se alastra através da existência. Orgulho-me do trabalho duradouro que pessoas trans têm desenvolvido, jamais da opressão que nos agrupou como “outros”. Referenciar essas vozes é fortalecer intelectualidades que afirmam que a relação com o deslocamento no espaço-tempo (movimento/corpo) é singular e diversa, operam em diferentes áreas e linguagens e escapam aos limites da normatividade.
Estou a escutá-las nesse instante: afino os ouvidos, é importante que eu envolva meu diafragma enquanto respiro. Estou viva. Travestis me ensinaram a ler o mundo, a partilha e a comunicação de nossas existências seguem através de nós. Não esqueço de vocês nenhum minuto, escrevi o nome de cada uma em uma constelação. Inspiro pelo nariz. Expiro pela boca. Desejo envelhecer. As águas superaquecem enquanto escrevo.
Repito a respiração e me preparo para o mergulho.
Transmuto: renascer sempre que preciso.
Fortaleço minha crença no movimento, me afasto da mornidão daqueles que vivem sob a paralisia do medo. Evaporo, o calor transforma o mar em chuva a cair lentamente sobre meu rosto, agora salobro. Mergulharei com o fôlego dos pulmões, às fossas, na mais profunda areia
é onde ali desovarei minha cápsula: cheio de sussurros, nossa comunicação ali condensada, milênios de memórias a fio, no risco fino da navalha a cortar as águas marinhas. O futuro nascerá ali.