Qualé da estética do bicho-papão?

Um texto inacabado diante das atualizações da barbárie. 

PAULINHO SACRAMENTO

Este texto não é uma resenha sobre os filmes de que falarei a seguir. É, antes de tudo, uma provocação sobre a percepção, sobre o fetiche que existe pelo declínio dos personagens pretos, pela degradação da história e pela aceleração do gozo quando o corpo preto caminha para a morte. 

O querido escritor Ronilso Pacheco, que é teólogo contemporâneo e pastor auxiliar na Comunidade Batista em São Gonçalo, em seu livro O sopro antirracista do espírito, acertou quando escreveu que: “O povo negro conta os corpos. A escravização, os açoites, as árvores de linchamento, o tronco, a marginalização, as condições precárias, a falta de alternativas nas periferias criminalizadas, a pobreza extrema, as fronteiras fechadas para a imigração, o racismo” (2019, p. 87). 

Todos esses apontamentos estão explicitamente nos roteiros de filmes de terror, desde o seu surgimento. 

1915 foi o ano de estreia, nos Estados Unidos da América, do filme O nascimento de uma nação, dirigido por D. W. Griffith, um dos cineastas, até hoje, mais aclamados na história do cinema pela elitizada burguesia branca do audiovisual. 

O filme é asqueroso, com uma narrativa que glorifica um Kmovimento Kcriminoso Ksupremacista e apresenta a população negra afro-estadunidense como povo ignorante, perigoso, submisso e selvagem. 

O capitalismo audiovisual financiado por Kassassinos de Kroupas Kbrancas surge vendendo, usurpando, queimando e expondo corpos negros à barbárie em tela grande. O nascimento de uma nação é podre, é lixão, é bosta decadente, racista e abjeta, assim como seu diretor, um racista escroto. 

É o anúncio do Knascimento do Kcinema de Kterror. Esse filme nojento impulsiona, grotescamente, a criação de estereótipos depreciativos, através da normatização da idiotização dos personagens negros nos filmes de terror. Visão que foi se estendendo às demais pessoas negras no mundo. 

São inúmeros casos, capitaneados por roteiristas, diretores e produtores racistas.

Se o roteiro é racista, o roteirista também é. Se a direção é racista, o diretor também é. Se o produtor é racista, a produção também é. 

E, aqui, utilizo e intensifico o uso do gênero masculino porque o cinema, além de ser um ambiente racista, também é heteronormativo, elitista e branco. 

Este mesmo perfil histórico e socioeconômico se vê no Brasil. E sempre foi assim por aqui, como aponta o resultado do estudo da falecida e necrosada ANCINE, que 100% dos filmes incentivados foram dirigidos por brancos e 98% também foram roteirizados por brancos. A exclusão é terror também. 

Relembro o papo de um cineasta veterano no domínio do setor audiovisual colonialista nacional, que afirmou ser o cinema no Brasil uma atividade de “família”. 

Por que de famílias? Quais famílias dominam o cinema brasileiro? 

Que porra é essa? 

Talvez ele tenha razão, mas, mesmo diante de tal realidade, nós estamos aqui disputando o espaço cinematográfico e nossas narrativas. Mas isso é desabafo e fica pra um outro papo. 

No filme Les magiciens de Wanzerbe (1948), (Os mágicos de Wanzerbe), de Jean Rouche, o diretor acompanha ritos e costumes dos habitantes do vilarejo de Wanzerbé, no Níger. As práticas divinatórias do “velho mágico” Mossi; danças ditas “exóticas”, sacrifício de animais na montanha sob o olhar das crianças, que precisam estar sempre presentes nas matanças dos animais para manter a proteção do vilarejo, mostram a força do medo que mais uma vez é utilizado como potência de educação, dominação e memória em um documentário histórico que se apropria da tradição para propor terror e agonia, captando manifestações do invisível que a ciência não consegue explicar.

A reivindicação por igualdade começa na percepção do racismo como parte integrada do gênero terror, o que faz com que o imaginário a respeito das pessoas negras divida espaços com “monstros”, “espíritos malignos”, “zumbis”, “gatos pretos”, “macacos que destroem uma cidade por amor a uma mulher branca e loira”, o “velho do saco”, o “mendigo” que mata, o “vodu” que causa espanto, entre tantos estapafúrdios argumentos que colocam a pessoa negra como apreciadora de bebidas e comidas presentes nas religiosidades de matrizes africanas, e as colocam como associadas a ações ruins, ao que chamam cinicamente de “magia negra”. 

Esse ponto, me fez lembrar do sonho que tive com o Nego D’água, mitológico personagem negro, careca e com mãos e pés de pato, indicado por minha mentora Luciara, que segundo a dita “lenda” costuma aparecer para pescadores e outras pessoas junto aos rios. Nego D’água manifesta-se com suas gargalhadas e costuma derrubar a canoa dos pescadores que se recusam a lhe dar um peixe. Em alguns locais do Brasil ainda existem pescadores que, ao sair para pescar, levam uma garrafa de cachaça e a jogam para dentro do rio, para que não tenham sua embarcação virada. Mais uma vez, o medo do homem preto careca segue em voga também nos costumes locais que servem de inspiração para os filmes de terror da branquitude. 

Pelo menos no meu sonho o Nego D’água estava bem, mas fiquei preocupado, pois ele não quis beber cachaça. Fiquei espantado em ver de perto como ele nada rápido, suas braçadas são velozes e dos seus pés de pato saíam faíscas. Em pouquíssimo tempo, ele sumiu pelas águas do rio e não voltou mais. Não me olhou nos olhos também, não gargalhou e me pareceu tímido ou talvez preocupado. Normal nos tempos de hoje. Acordei e tomei um gole de água.

Quando traçamos linhas imaginárias do tempo olhando pra dentro das narrativas dos filmes de terror com negros, percebe-se que “zumbis” passam a não ser mais suficientes, pois a narrativa da submissão também é importante nesse sistema capitalista, sempre na precariedade, turbinando o discurso colonial da branquitude cínica e hierárquica, que segue com sua paranoia racial intimamente envenenada em suas ações cotidianas. 

Esse apontamento caminha para diversas obras que impunham um corpo preto subserviente e domesticado e que ultrapassam os limites do gênero terror, indicando que o racismo estrutural transita por todas as salas de roteiro, independentemente do gênero, pois centenas de filmes apontam para o mesmo olhar: o de colocar o corpo preto em situações duvidosas, medonhas, esdrúxulas e acusatórias. 

sexo com gorila foi invenção da branquitude. _ $soiráto 

#humano monstro não é possível.

Filmes como o Cão Branco (1982), em que o cachorro era treinado para atacar pessoas negras. Ou em E o vento levou (1939) que marca a presença da boa vida da família branca e seus escravos animados. The Black Cat (O gato preto), inspirado no conto de Edgar Allan Poe, que narra um ódio mortal a um gato preto, ou a era “Blaxploitation” que impulsionou o olhar para o homem preto cafetão e “dono” de prostitutas negras, e que muitas das vezes eram agredidas brutalmente. 

Essas obras são apenas a visão burguesa que retrata os personagens negros, imigrantes e indígenas, com visões distorcidas propositalmente, que não encorpam como arquétipos, e sim como caricaturas malfadadas e mal-intencionadas, que escorrem propositalmente pelo deboche assumido de uma parte significativa do cinema racista mundial, trabalhando em prol da manutenção da estereotipia histérica e imaginária como identidade de cor da pele. Essas narrativas, porém, já nascem insuficientes, sem musculatura social e discurso sólido. 

Todos esses exemplos significam apenas o Horror, Horror com H maiúsculo mesmo, assim como no cinema colonial brasileiro, que o filme Tropa de Elite (2007), além de racista e violento, exalta cenas de tortura e sufocamento. Com sacos plásticos, jovens pretos periféricos são expostos à barbárie, assim como a queima de pessoas vivas dentro de pneus, execuções e crânios torrados. 

As narrativas que instigam o espectador ao silêncio durante um espancamento invadem telas e mentes dia após dia, seja no cinema, na tv ou no celular. 

O caos social alimenta narrativas racistas que geram os estereótipos intencionais.

“Mammy”, por exemplo, é como um negro do século 19 pronunciaria a palavra “Mommy” nos estados sulistas americanos. Como bem observou a historiadora Suzane Jardim em seu artigo para o site Media Corporation, em que “a descrição básica da ‘Mammy’ gira em torno de uma empregada doméstica, mulher negra gorda, com seios enormes, capazes de amamentar todas as crianças brancas do mundo, um lenço para esconder o cabelo crespo ‘horroroso’ e uma personalidade forte, cheia de garra, mas que só serve pra lutar pela família branca ‘que ela tanto ama’”. 

Estereótipo de 

submissão não é drama. 

É racismo. É terror!

Fragmentando o mestre Abdias do Nascimento, que em seu livro O quilombismo. Documentos de uma militância pan-africanista traz a seguinte frase: “Podemos ler as páginas da história da humanidade abertas diante de nós, e a lição fundamental que nos transmitem é de uma enorme fraude teórica e ideológica articulada para permitir que a supremacia euro-norte-americana pudesse consumar sua imposição sobre nós”. 

Essa afirmação do saudoso multiartista se encaixa também no cinema de horror, produzido por empresas majoritariamente dirigidas por homens brancos que investem no gênero e insistem nos roteiros esdrúxulos e depreciativos em relação aos personagens pretos. Roteiros que apontam arquétipos caricaturais, em sua maioria, com pouco ou nenhum destaque e relevância. 

Recentemente, a Disney reforçou que alguns de seus títulos tinham conteúdos sobre racismo. Ou seja, na visão mais uma vez cínica da empresa, roteiros racistas viraram conteúdos sobre racismo. 

A mensagem alerta para a presença de estereótipos “errados” presentes nas obras: “Este programa inclui representações negativas e/ou maus-tratos de pessoas ou culturas. Esses estereótipos estavam errados na época e estão errados agora”. Para a Disney o racismo não é crime, e sim erro, afirma novamente a empresa quando diz que “reconhece seu impacto prejudicial”.

Obras como A dama e o vagabundo (1955), Dumbo (1941), Peter Pan (1953), Mogli (1968), Aristogatas (1970) são obras que têm pontos racistas em suas narrativas. São roteiros de terror também, seja em Dumbo, que o personagem Jim Corvo (em inglês, Jim Crow) é uma referência às leis de Jim Crow, que estipulavam a segregação de banheiros, restaurantes e bebedouros para brancos e negros, leis aplicadas entre 1877 a 1964, seja em Mogli, que teve a versão de 1968, apontada de apresentar uma caricatura racista do povo afro-americano ao retratar o personagem Rei Louie, um macaco, de forma tosca, preguiçosa e com dificuldade de comunicação. 

O terror, basicamente, é o nosso dia a dia e vai muito além do cinema e de seus roteiristas racistas, cúmplices e preconceituosos. Flertamos com o preconceito “narcisístico” do ser humano pelo que não pode controlar (o temor por qualquer coisa que seja estranho ou diferente dele), e o complexo de Deus – quando o homem tenta recriar, através do conhecimento, da crença, ou de um monstro com parafusos na têmpora, coisas que não seriam da sua alçada, como a vida, a morte e a fé, igualando-se aos seres divinos.  

Vivemos dentro de uma narrativa de terror. Um docficção de terror antropológico ao vivo. Morte, cinismo, doença, covardia, racismo, fome, desigualdade, intolerância, genocídio dos povos originários, não perspectiva de futuro, chacinas e diferenças hierárquicas que produzem e alimentam diariamente a violência nas narrativas de terror no audiovisual-vivo. 

Em termos físicos, o terror é o gênero que causa as reações mais intensas em nosso corpo. Em situações extremas, nosso cérebro libera a dopamina, um neurotransmissor que, em algumas pessoas, pode agir de forma a gerar uma sensação prazerosa e em outras, uma sensação bem desagradável.

É notório que as produções que utilizam o terror como um artifício político e social para explorar as problemáticas do racismo na sociedade têm ultimamente colocado o tema para ser visto em outras perspectivas. O filme Corra! (2017), de Jordan Peele, que trata da questão racial nos Estados Unidos pós-gestão de Barack Obama, insere em sua narrativa a questão de estereótipos raciais em diversas nuances, algumas absurdas e grotescas nas indicações de relacionamento sexual com o corpo preto, como na cena carregada de analogias e mensagens subliminares em que o fotógrafo negro Chris Washington (Daniel Kaluuya) é apalpado como um objeto pela tia de sua namorada, que geme ao apertar o braço do homem preto. 

Essa cena me joga novamente no colo da Suzane Jardim, mas agora em seu artigo para o site Geledés, quando ela apresenta o “Mandingo”, homem negro escravizado, colocado como perigoso e indomável, e que deve ser abatido porque seus instintos sexuais provavelmente irão perverter as filhas e as esposas dos senhores brancos. 

A guerra é de estereótipos 

não tem lado certo no terror. 

O cinema é racista porque a sociedade e o Estado também são racistas. precisamos levar as mensagens do cinema a sério. 

Saravá!

Pesquisa realizada por diversos meios e formatos durante a pandemia de covid-19 no primeiro semestre de 2021.



Acessibilidade | Fale conosco | Imprensa | Mapa do Site