PEDRO CARNEIRO
“Coração do mar
É terra que ninguém conhece
Permanece ao largo
E contém o próprio mundo
Como hospedeiro(…)”¹
Funk até o caroço.
Às vezes, alguns trabalhos parecem impossíveis de serem realizados. BNegão canta: “se você tem muitas ideias na cabeça e pouco dinheiro no bolso, pode crê compadre, tu é funk até o caroço”². Foi assim, com tantas ideias presas, que resolvi me libertar, como um ato de carinho comigo mesmo.
Há em mim um aceno silencioso.
Ao caminhar pelo centro da cidade do Rio de Janeiro, em silêncio, vou de encontro ao mar. Paro em frente àquela imensidão e o silêncio se desfazendo, fico apenas olhando. Posso escutar os tambores vindos do outro lado do mar; ou seriam os grooves intensos do afrobeat? Não, o som está perto, tem um pouco de samba, acho que é Jazz. Cantos chegam aos meus ouvidos, como rios, desaguam no meu corpo dando nó nas minhas orelhas³. Consigo sentir na minha barriga o grave, o corpo pulsa em mais de 150 BPM. Dá para escutar, tô ouvindo alguém me chamar.4
¹ Trecho da música Coração do Mar, gravada por Elza Soares. no disco A Mulher do Fim do Mundo. (2015)
² Trecho da música “Funk até o caroço” de BNegão e os Seletores de Frequência, do disco “Enxugando o Gelo” (2003). Esse é um álbum que eu considero muito marcante na minha vida, me fazendo pesquisar diversas referências da música negra que eu não conhecia. Junto com A procura da batida perfeita (2003), do Marcelo D2; e Babylon by Gus Vol I: Ano do Macaco (2004), do Black Alien. Juntos, formam o trio de álbuns que me abriram os olhos e os ouvidos descobrindo todas as nuances da música preta mundial.
³ Saúdo o disco Nó na Orelha (2012), do Criolo, são essas misturas de ritmos dançantes que eu escutei escrevendo esse trecho.
4 Referência à música “Tô ouvindo alguém me chamar” do Racionais MCs. Essa música faz parte do álbum icônico “Sobrevivendo no Inferno” (1997), outro disco que eu considero muito importante na minha vida. Eu lembro até hoje da primeira vez que vi o clipe “Diário de um Detento”, e fiquei muito impressionado.
Levanto minha mão como quem diz: “olá”. Do outro lado do mar, no continente em que também tenho raízes, olho para frente, contemplando os sons que escuto, vindos de todos os lugares. Vibrando do outro lado do mesmo oceano, respondo aquele gesto. “Oi”. Intenção e ação se unem em uma linha invisível que atravessa o globo como um grande pedaço de papel. Passado e presente são ligados a uma frase nessa linha…
Depois de Madureira. 5
Os desenhos são como minhas escritas, mas não só. São extensões do meu corpo. Os traços não são firmes, vão encontrando o seu lugar na folha em branco, quase como o trem, deixando a marca na superfície do papel e do lugar onde ele está apoiado. Assim são as palavras, mesmo quando elas são faladas e cantadas, elas deixam marcas. Meu corpo ficou assim, marcado por palavras, que foram ditas e cantadas a mim, e me deixaram marcas profundas. Trilhos invisíveis a olhos cegos.
Foi em uma conversa comigo mesmo naquela mesa6, que veio a saudade de mim. Entendi que me ver era como me enxergar além de um espelho7. Talvez nada que eu pense ou imagine possa dar conta desse encontro, quem sabe seja a limitação deste desenhista-escritor ou pintor-griot8 . Como eu poderia descrever com palavras o sentimento de me encontrar?
Me abraço, colo testa com testa, e olhando nos fundos dos meus próprios olhos, vejo as lágrimas escorrerem devagar. Um sorriso vai surgindo tímido no meu rosto. Ali, não precisávamos de palavras para dizer o quanto estávamos com raiva, tristes e felizes.
5 Música de Mauro Diniz e gravada por Beth Carvalho e outros grandes sambistas. A música fala de Oswaldo Cruz, um bairro na cidade do Rio de Janeiro, onde a maior parte da minha família ainda mora. Lá nascem signos e identidades muito fortes na minha vida e na minha produção. Viva Oswaldo Cruz! Viva Portela! Viva o trem do samba!
6 Música de Sérgio Bittencourt. Me faz lembrar do meu pai e das conversas que tínhamos.
7 Música de Paulo César Pinheiro e João Nogueira.
8 Os griots são contadores de história, cantores, poetas e musicistas da África Ocidental. São muito importantes para a transmissão dos conhecimentos dentro das culturas de diferentes países africanos, sendo também referidos como jali (em mandês), guewel (em wolof), iggawen (em hassania) ou arokin (em iorubá).
Só há um lugar em que o corpo reage dessa mesma forma: uma roda de samba. Os braços se levantam como em um abraço, o sorriso ilumina o rosto e os olhos choram perdidos em lembranças. Acho que sambamos no dia desse encontro, foi possível. Dançamos sozinhos, mas foi impossível fazermos um baile separados. Pensamos muito em como fazer esta festa, o encontro destes que me habitavam, um oceano de lugares. Foi quando eu mesmo subi em uma mesa e lembrando das palavras do radialista Paulo Roberto, gritei: “Este ritmo binário, que é o alicerce principal de quase todos os ritmos da canção popular do Brasil, veio importado de longe. Das placas ardentes da África, onde o sol queimou a pele dos homens até carbonizá-la em negro. O compasso, tão simples que reproduz em tom grave as batidas do próprio coração, atravessou o Atlântico sob a bandeira dos navios negreiros, servindo para marcar o andamento de melopeias que vinham dos porões em vozes gemidas e magoadas”.9
Houve uma pequena mudança, em meio a gritos e brindes, o grito acabou saindo
meio como “(…) Esse é o ritmo binário que é o alicerce principal de quase todos os
ritmos visuais populares do Brasil(…)”. Dizem que no decorrer dessa frase uma série de batuques começou a ressoar. Pude ver minha mãe entrando e cantando alto a música que eu não conseguia escutar. Vi meu primo “Bola” entrar correndo para abraçá-la, ele gargalhava e dançava com uma alegria contagiante. Olhei em volta e o mar tinha dado lugar a uma grande rua, e no meio, uma grande roda de músicos. Vi meus primos tocando e minha família cantando, paredes de caixas de som se erguiam atrás de nós. Escutei um grito, vi todas/todos/todes/todus dançando ainda mais rápido à minha volta. “Laiás, laiás” se misturavam a “tchum, tchá”. No ar, o cheiro de feijão, suor, cerveja e churrasco.
9 O radialista Paulo Roberto narra essa passagem na introdução do disco Obulayé! de 1957 da Orquestra Afro – Brasileira, posteriormente Kl Jay e Baco Exu do Blues usam esse mesmo trecho na introdução do disco Esú. 2017.
Um grande círculo se formava à nossa volta, mais um grito, e um baque surdo. O grave das caixas ecoava por todo o lado, o tempo quase parou, me vi no meio da roda gargalhando de felicidade. Esse não foi um encontro só comigo. E com o tempo quase parando, me vi tocando o surdo. O movimento do braço descendo com a baqueta em mãos, no exato momento do encontro entre minha mão e o ferro do surdo, da baqueta com a pele do instrumento, alguém gritou da roda: “Um minuto de silêncio para o cabrito que morreu.”10
Nesse instante, o tempo parou.
É necessário voltar ao começo.11
A primeira ação se iguala à primeira fala. Ambas têm um lugar de abstracionismo e
ao mesmo tempo de imaginário. O ato de desenhar e a saudação de tocar em um
instrumento se encontram em um momento infinito, abstrato, o início da ação é um
encontro das linguagens. Esse gesto antecede a fala, até mesmo a palavra. O
encontro é presente nesse momento, neste exato tempo. Para entender melhor
sobre o tempo pedi ajuda ao meu “prirmão”12 Luiz, que me enviou o seguinte áudio aqui transcrito:
(…) Se agora você pensar em um pião rodando por um segundo, imagine um
vídeo de um pião rodando por um segundo. Você jamais poderia falar se
aquele vídeo se desenvolveu do passado, do presente ou do presente do
passado. Porque você não sabe qual é a direção inicial que começou o pião
a rodar. E isso começa a dar as primeiras ideias de como o tempo depende
de um observador (…)
O encontro acontece em um tempo que não é presente e nem passado, tampouco
futuro. Ele é presente em instantes, no meio da escrita-desenho, no tempo que a
antecede e no momento em que ela se conclui. A ação de me encontrar permanece
quando eu achei que havia algum fim, mas tudo é continuidade.
Quando eu vi estava de novo de frente ao oceano.
10 Trecho do samba Couro do falecido de Monsueto. Lembro de escutar esse samba no bar da minha mãe, “Estação Glória”, e ver a roda se levantar exatamente neste trecho.
11 Música do Emicida com participação do Projeto Nave. Introdução do disco Para quem já mordeu um cachorro por um prato de comida, até que eu cheguei longe. Foi quando eu me senti mais perdido nesse texto que eu escutei essa música e comecei a repensar os caminhos a seguir.
12 Palavra inventada por nós, para descrever que somos primos, mas somos irmãos. Eu e Luiz somos
quase “gêmeos”, fisicamente muito parecidos. E temos ainda o Roberto, que é nosso “prirmão” mais
velho.
O mar de alguma forma sempre me atraiu. Me deixava com medo, mas ao mesmo
tempo me encantava. Sempre que eu descubro mais alguma peça importante desta
história, eu me reencontro. O mesmo mar banhava todas as comunidades do
Engenho Novo13. Uma vez, quando ainda era bem pequeno meu padrasto me ensinou sobre as correntes marítimas, e eu, muito jovem, com uma imaginação
sólida – concreta – real, consegui ver no fundo do mar as correntes balançando. Era
tão real e fiquei com tanto medo que consigo lembrar de pensar: “como águas às
vezes tão claras poderiam esconder coisas tão perigosas?”. Desde então, quando
eu mergulhava no mar ficava de olhos bem abertos, para que nenhuma corrente
agarrasse meus pés. Corrente nenhuma iria me prender e me afogar. Até hoje,
mergulhar não é tão simples.
Eu errei. Sem saber eu já tinha correntes nos pés que tentavam me afogar. Todo dia, é ação de “dois V (vai e volta)”. Rachar correntes para me libertar delas e seguir em frente. Cresci e descobri que elas não se escondem no mar, não, o mar me ajuda a me libertar delas, rumo a um bom lugar14. O oceano à minha frente era o lugar que me acolhia. Da lama ao caos e rios, pontes e overdrives15, eram os caminhos que me mostravam meu lar. Nesse caminho eu fui descobrindo que não estava sozinho e fui me encontrando em cada encontro, comigo e com você.
13 Faço referência à música À Todas as Comunidades do Engenho Novo. Do álbum Lado B, Lado A da banda O Rappa. O bairro do Engenho Novo me faz lembrar de momentos muito tristes, são algumas feridas que ainda não fecharam. Mas essa música, como esse álbum, me fazem lembrar de como pela primeira vez eu me senti representado. Eles falavam de bairros que eu conhecia, de coisas que eu via. Algumas boas, outras nem tanto.
14 Referência a música Um bom lugar do Sabotage, Acho que foi o primeiro rap que eu escutei e senti minha cabeça balançando. Ficava focado para entender tanto as letras e suas referências e as batidas do instrumental.
15 Da Lama ao Caos; e Rios, pontes e overdrives título de uma música do Chico Science e Nação Zumbi. Uma das minhas maiores descobertas com 13 anos. As guitarras com o baque das alfaias. Nem posso te descrever como eu pulei na sala da minha avó, e foi graças a esse nome que eu fui procurar quem era Zumbi, pesquisar além da escola, descobrir um mundo.
Quintal do Mundo.16
Eu sempre achei que caminhava sozinho, me enganaram. Tive sorte, como dizia Wilson das Neves, “ô sorte!”, de não estar. Foi escrevendo sobre um trabalho que parecia impossível e solitário que mais encontrei tantas pessoas ao meu redor. Foi descrevendo como foi me encontrar que eu encontrei você. Nas muitas conversas que tive para desenhar esse texto, para cantar essa pintura, eu vi você e em você eu me vi. Do nosso encontro, aqui, nasceu uma encruzilhada e mais adiante vamos encontrar outra. Este é um trabalho gigante, porque nele habita milhares de milhões de corpos, um verdadeiro oceano de pessoas, e toda vez que alguém encontrar este texto, ler esta pintura e escutar este desenho, eu vou me encontrar comigo mesmo.
Eu venho de um lugar, na verdade, mais de um lugar. Dentre eles, existe um em especial, que por tradição encerramos um show ou uma festa com uma ciranda. Um amigo, que já fez a passagem, sempre cantava uma música que era o símbolo deste lugar. Mesmo com o corpo e pés cansados, tiramos forças para dançarmos juntos. Ultimamente eu tenho me sentido sem forças, com saudades desse amigo, do meu primo, do meu pai, dos meus avós. Mas esse encontro me trouxe fôlego para mais esse mergulho que se desdobrará em outros.
16 Música de Carlinho Santana, muito tocada no encerramento do forró em São Pedro da Serra. principalmente pelo Trio Catiço.
Bonus Track.
O corpo cansado boia em êxtase após tanto nadar, os olhos vão se entregando a um sono relaxante. Como uma bomba, outro corpo se joga na água. Caixas de som submergem, alguém segura a minha mão, sou eu mesmo. Com um sorriso gigante no rosto eu digo: “calma, ainda nem chegamos na saideira.” E assim vejo as bandeiras de vários coletivos dançando ao vento, o mar tomava seu lugar em tudo, risadas e batuques, rios se encontravam no mar. Do MAM, vinha um grave que fazia tudo vibrar; das matas eu vi djs discotecando sem dó com quem tinha os pés cansados; e vi todas/todos/todes/todus dançarem ainda mais quando a onda atingiu os seus corpos. Do alto dos Arcos da Lapa surgiu o Lencinho17, e me vi bebendo uma cerveja na bicicleta do Grande18, no meio de Madureira. Vi quando apontei o canhão de luz para o Lencinho e ele começou um discurso que fizeram as águas se agitarem mais, surgindo blocos de carnaval dançando a sua volta. Tudo fez silêncio quando todas/todos/todes/todus gritaram: “OCUPA TUDO!”.
E o mundo parou…
17 Lencinho é uma figura incrível, Dj, Mc, amigo e dono de um discurso sempre certeiro quando achávamos que estávamos só em uma festa ou só em um show. Ele sempre nos lembra que até quando dançamos, estamos fazendo uma revolução.
18 Grande é ambulante e sempre está nas festas e nos shows na rua. Um cara sempre pronto para ir com sua bicicleta em todo o lugar e vender cerveja.