Hollywood, anos 1980: por um cinema corrompido

Por: PAULA MERMELSTEIN

Se a década de 1970 em Hollywood é marcada por produções ousadas, experimentais nos mais diversos sentidos, e pelo que se convencionou chamar de “cinema de autor”, a década de 1980 encontra, a princípio, uma generalização mais desanimadora: é a era dos blockbusters, da nostalgia, de um “retorno à ordem”, do estabelecimento do cinema enquanto produto. Não temos mais, aqui, um cinema de riscos, após os fracassos comerciais de filmes como Heaven’s Gate (1980) ou One From the Heart (1981) e os sucessos de Star Wars (1977) ou Jaws (1975), que tornaram bem claro para a indústria o caminho a ser seguido: filmes “high concept”, cuja trama possa ser resumida em uma frase (por vezes em uma palavra, “Jaws”, ou duas, “Star” + “Wars”), que atraiam o público logo nas primeiras semanas em cartaz e “arrebentem quarteirões”. O retorno financeiro não pode mais ser uma aposta, e com o investimento pesado na publicidade para tais filmes, que prometem altas emoções para toda a família, ele passa a ser controlado e previsto pelos estúdios.

De modo algum, no entanto, isto significa que o cinema hollywoodiano da década de 1980 não produziu filmes interessantes. Diante de um sistema cada vez mais controlado, e de uma sociedade mais conservadora (com Ronald Reagan como presidente dos Estados Unidos), destacam-se os filmes que, de algum modo, conseguem driblar este sistema e operar dentro dele: “subversivos”, mas disfarçados. Se a caótica produção de Apocalipse Now (1979) já era um prelúdio para o final iminente da chamada Nova Hollywood, o final do filme Blow Out (1981) já nos sugere metaforicamente o que está por vir: fogos de artifício abafando os gritos de uma mulher sendo assassinada, seus gritos de desespero genuínos sendo reciclados para a dublagem de um filme de terror B. Também a trama do polêmico Cruising (1980), na qual um policial infiltrado (Al Pacino) adentra cada vez mais nas profundezas do BDSM gay nova-iorquino, meio onde acontecem repetidos assassinatos, pode servir de metáfora: será necessário se infiltrar neste meio obscuro do cinema comercial, vestir a sua pele, correndo o risco de ser “pervertido” por ele, para subvertê-lo.

Os filmes aqui (brevemente) comentados visam corromper o cinema “blockbuster” e seu high concept de dentro de suas entranhas, metáfora constantemente retomada através de suas personagens monstruosas e seu uso de efeitos especiais. Como faz a mosca que entra na máquina de teletransporte do cientista em The Fly (1986) – filme de David Cronenberg baseado no filme de mesmo nome de 1958 –, arruinando o experimento e transformando o homem, aos poucos, em um monstro simultaneamente forte, sexualmente vigoroso, e nojento. A materialidade pulsante que marca o cinema da década de 1970, no gore, no sexo e na própria fisicalidade da película, com frequência suja, retorna aqui, mas contida. É resumida, na releitura de Cronenberg, a uma só figura, que gradualmente irá se deteriorar em matéria. Junto com a figura, caminha a trama do filme, que a princípio acompanha o desabrochar do romance entre o cientista e uma jornalista de modo relativamente clássico-narrativo, mas logo concentra-se inteiramente na transformação monstruosa e asquerosa do primeiro. Aquilo que parecia contido, controlado, enfim, estava na verdade apenas esperando o catalizador certo para sua erupção, para contaminar o filme como um todo.

É o caso, também, de um filme como An American Werewolf in London (1981), escrito e dirigido por John Landis. A princípio, sua proposta pode não parecer muito distinta do resgate das aventuras seriadas e do cinema espetaculoso do início do século XX, tal como feito por Steven Spielberg e George Lucas, realizadores dos filmes que de fato dominaram as bilheterias da época –  o primeiro com E.T. (1982) e a franquia de Indiana Jones (1981, 1984, 1989, etc.), o segundo com a franquia de Star Wars (1977, 1980, 1983, etc.). Começando com a nostálgica música “Blue Moon”, da década de 60, An American Werewolf in London faz, à sua maneira, uma releitura do cinema de horror clássico. No entanto, Landis leva este cinema, assim como seu lobisomem, não para o espaço sideral ou para as florestas tropicais, mas para o pacato interior da Inglaterra, onde o filme irá se moldar em algo absolutamente híbrido e heterogêneo –  parecendo mesmo, neste sentido, zombar da lógica do “high concept”, pois o título aqui também revela o essencial da trama, “Um lobisomem americano em Londres”, sem que isto de forma alguma nos prepare para o que está por vir. Oitenta por cento cômico, o “terror” em American Werewolf in London, como em The Fly, mesclado com drama e romance, se concentrará sobretudo na parte final do filme, com a famosa cena de transformação do protagonista em lobisomem. O que Cronenberg prolongou por quase um filme inteiro, Landis resume a alguns agonizantes minutos.

Há no contexto hollywoodiano da década de 80, enfim, os filmes que se utilizam de certas convenções do cinema de gênero e do espetáculo da Hollywood clássica para constituir este “novo” cinema imersivo e tecnológico – e, neste caso, os filmes de Spielberg, que oscilam entre a lógica do cinema de atrações e o sentimentalismo, são aqueles mais emblemáticos – e aqueles que colocam estas convenções e mecanismos em questão, como um enxerto, evidenciando-os enquanto tal (o que não significa, necessariamente, que um caso seja melhor do que o outro). É o que parecem fazer certos filmes de cineastas que ganham proeminência apenas no final da década anterior, como Cronenberg e Landis, mas também John Carpenter, Paul Verhoeven e, por vezes, James Cameron, ainda que seu cinema em muitos sentidos esteja mais próximo do caso de Spielberg e Lucas.

É interessante, enfim, observar as diferentes facetas que este “retorno à ordem” assumiu no cinema dos anos 80. Há um retorno não apenas ao cinema de gênero, ao espetáculo, aos musicais, mas uma nostalgia de modo geral, direcionada particularmente em relação à década de 50, em filmes como Dirty Dancing (1987), Footloose (1984), Stand By Me (1986), Back to the Future (1985) e Hairspray (1988). E, afinal, se Indiana Jones e Star Wars resgatam as aventuras seriadas do início do século, “atualizando-as” com novas tecnologias, os exemplos aqui comentados de The Fly e An American Werewolf in London também fazem referência a um cinema do passado utilizando-se de novas modalidades de efeitos especiais. A diferença é que nos dois últimos casos, como comentado, estes efeitos, de teor muito mais material e grosseiro do que os primeiros, se fazem evidentes; as transformações, tanto da mosca quanto do lobisomem, fazem parte da trama, ou ao menos do desmantelamento desta.

Os filmes de John Carpenter da década são interessantes neste sentido. Se em The Fog (1980) há uma evidente referência ao cinema de horror de décadas anteriores – mais particularmente de The Birds (1963), de Alfred Hitchcock –, em Christine (1983) a alusão específica à década de 1950 é declarada. Adaptado de um romance de Stephen King, o filme acompanha um carro possesso – na falta de melhor palavra – oriundo da década, que irá contagiar seu dono atual nos anos 80.

Mas o melhor exemplo, aqui, é provavelmente The Thing (1982). Um remake de The thing From Another World (1951) – dirigido por Christian Nyby mas com uma significativa marca de Howard Hawks, seu produtor, cuja filmografia é uma referência evidente para Carpenter –, o filme de 1982 se passa em um centro de pesquisa isolado na paisagem branca e gélida da Antártida. Aqueles que trabalham no centro convivem em certa harmonia, apesar do desconforto do isolamento. Um cenário límpido e equilibrado o suficiente para ser manchado com a criatura invisível que adentrará o espaço, a princípio disfarçada. Sua invisibilidade aqui é crucial, pois será por conta desta que o monstro só se manifesta através dos próprios habitantes deste espaço contido, infiltrando-se em seus corpos discretamente, até ser notado e então irromper em diferentes formas, rasgando e moldando os corpos humanos (e animais) que habita. A “coisa”, aqui, diferentemente do monstro humanoide do filme de 1951, não existe enquanto corpo – ela é tão invisível quanto era Michael Myers pela maior parte de Halloween (1978) –, mas sua manifestação é absolutamente material. Os efeitos especias em The Thing não se ocuparam em fabricar uma nova criatura, em conceber um novo monstro, e sim em extraí-la dos corpos previamente existentes dos atores. A “tecnologia” empregada no filme, aqui, não cria, mas transforma.

É por este ângulo que James Cameron, apesar de seus projetos megalomaníacos, de orçamentos exorbitantes, se aproxima deste “outro” grupo de cineastas, como Carpenter: a tecnologia não é simplesmente utilizada nos sets de seus filmes, como um elemento à parte, servindo apenas à construção do espetáculo: ela é um tema central de grande parte de sua filmografia. Em Terminator (1984), um robô criado pelos seres humanos no futuro, interpretado por Arnold Schwarzenegger, figura em si sobre-humana, retorna ao passado para ganhar a guerra travada entre os dois. No filme seguinte da franquia (de 1991), a trama se complica quando o robô sólido e pesado interpretado por Schwarzenegger tem que lutar contra um novo robô, interpretado por Robert Patrick, mas em constante transformação através de efeitos especiais computadorizados, feito de uma matéria líquida e maleável, como um “CGI em pessoa”.

Nos momentos de transformação deste robô, quando está neste estado líquido, ele remete aos alienígenas de outro filme de Cameron, The Abyss (1989), feitos de uma espécie de água moldável. Mas enquanto The Abyss mostra apenas maravilhamento diante das capacidades plásticas dos efeitos especiais, a dupla dos filmes Terminator incorpora um aspecto mais ameaçador destes. Neste sentido, a filmografia de Cameron é no mínimo didática em relação à trajetória recente dos efeitos visuais no cinema, combinando um maquinário analógico massivo (diegeticamente e na produção dos filmes) com o CGI. Ao menos na década de 80, os efeitos visuais artificialmente fabricados de seus filmes não dominam a imagem como um todo, são restritos a certos elementos, cuja presença é conflitante com o resto da trama e cenário.

Uma analogia pode novamente ser feita, então, a partir das recorrentes tramas do cinema da década: enquanto os alienígenas de E.T. e Star Wars estão integrados ao nosso mundo ou até mesmo o dominam, assim como o extensivo uso de tecnologia de ambos os seus diretores, os monstros e alienígenas de The Fly, American Werewolf, The Thing, ou Terminator se apresentam enquanto enxertos, ora produzidos pelo próprio ser humano, ora infiltrando-se em seus corpos. Como uma espécie de Frankenstein, são experimentos que deram errado, híbridos monstruosos, ressuscitados de partes “mortas” do cinema.

Dentre os filmes da década, talvez aquele que melhor exemplifique este argumento seja  Robocop (1987), dirigido por Paul Verhoeven. O monstro, aqui, um ciborgue como em Terminator, é de fato um híbrido entre homem e tecnologia, mas não apenas isso: ele é, mais especificamente, um híbrido entre policial e robô, entre um produto terceirizado vendido para a polícia privatizada e um agente duplo, subversivo, o único capaz de destruir os empreendedores que o criaram. Robocop mergulha a fundo no blockbuster, no high concept (“Robo” + “cop”) e no cinema de ação, mas também no mundo empresarial, na cultura yuppie e na televisão, pois, como seu protagonista, está sujeito a estas condições. O ciborgue só consegue matar o diretor da empresa que o concebeu quando é demitido por este, anulando automaticamente seu contrato, impregnado em sua programação. O “contrato” hollywoodiano também está impregnado na programação do filme, onde infiltram-se propagandas que interrompem a trama como pausas televisivas, e é quebrado pelo exagero, pela comicidade, pela paródia, pela violência material; Verhoeven joga Hollywood contra Hollywood, de modo que, na verdade, seu filme inteiro é um enxerto.

O ciborgue é regido por contratos virtuais, por lógicas capitalistas, mas sua presença, assim como aquela dos humanos que o cercam, é enfaticamente concreta. Quando ainda era humano, seu corpo frágil é mutilado violentamente, e quando robô sua lataria é rígida e pesada. O próprio filme assume esta materialidade: as inserções televisivas na trama não são sutis, mas interrompem o fluxo narrativo bruscamente. Como o ciborgue, trata-se de um filme que veste o traje metálico do cinema comercial, mas por dentro é feito de carne e sangue –  título, aliás, de seu filme anterior Flesh + Blood (1985), sua estréia em Hollywood, cujo aspecto visceral é muito mais explícito, ainda não “revestido” como Robocop.

Robocop, assim como todos os filmes de Verhoeven em Hollywood, não foge do espetáculo ou dos efeitos especiais, mas tampouco ignora os fundamentos materiais do cinema – em especial, o corpo do ator. É, também, a partir deste corpo, que se dão as transformações em todos os outros filmes mencionados aqui. Se os filmes de Spielberg e Lucas da década de 80 abriram caminho para um cinema cada vez mais apartado da realidade, estes apontam para outra possibilidade, que não desconsidera o estado atual das coisas, o legado simbólico e material implicado em fazer cinema em Hollywood, mas utiliza tudo isso a seu favor.

1 Fenômeno geralmente associado a um momento mais conservador nas artes visuais do período entre guerras na Europa do séc.XX, logo após as vanguardas históricas.

2. Importante lembrar, também, que foi a década de ascensão da indústria de cinema pornô.

3. Rebel Without a Cause (1955) de Nicholas Ray, em particular, com suas corridas de carro, brigas de faca, romance escolar e cores vibrantes, parece ser uma referência significativa neste resgate.

4.  Footloose não se passa na década de 50, mas em uma cidade que parece ainda viver nesta época.

5. Curiosamente, uma corrente de nostalgia semelhante parece estar em curso hoje em dia justamente em relação aos anos 80, com as séries Stranger Things (2016-), Dark (2017-2020, que retorna aos anos 80 e 50), ou o episódio “San Junipero” (2016) de Black Mirror, e os remakes de filmes da década, como Footloose (2011), Dirty Dancing (2017), Blade Runner 2049 (2017) e Top Gun: Maverick (2022).

6. É interessante destacar, também, seu filme Prince of Darkness (1987), onde as personagens buscam compreender o “monstro”, novamente invisível, contagiante daqueles ao seu redor, através da ciência e da religião simultaneamente.

7.  Nota-se uma “inversão” depois, com Titanic (1997) e, principalmente, Avatar (2009), quando os efeitos visuais fabricam mundos inteiros, onde aquilo que há de analógico e humano é minoria; ainda assim, a tecnologia em si é parte essencial de ambas as tramas, e ainda há um contraste em jogo.

8. Evidentemente que o mundo em Star Wars não é o “nosso mundo”, e sim uma “galáxia muito, muito distante”, mas sua proximidade com o nosso mundo é manifesta, a começar pelos protagonistas humanos.

9. Em “Jaws” ainda havia algo disso, a ameaça do tubarão (também quase “invisível” na maior parte do filme) mistura-se com aquela do prefeito que não quer fechar as praias para os turistas.

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