Apresentação de A região central: o filme da máquina e o lugar do humano

por Gabriel Linhares Falcão

O aparato de A região central (1971), de Michael Snow.

Em meio ao romantismo imperante na Vanguarda Americana, do final dos anos 1950 ao início dos anos 1970, em que o princípio conceptivo na imaginação e a essencialidade da superfície se colocavam como interseções de uma variedade de proposições fílmicas, Andy Warhol se aventurou realizando um cinema paródico, desleixado, simplíssimo e contra romântico, assumindo a posição de ponto cego de uma geração. Em Empire, por exemplo, acompanha por 8 horas, do entardecer ao amanhecer, em um plano estático, o Empire State Building ao longo de uma noite. A filmagem foi realizada por Jonas Mekas e não por Warhol, resumindo o papel do diretor ao de uma assinatura, mas também transpondo uma ideia crítica similar às que apresentou nas artes plásticas, submetendo a figura do artista à maquinização e à reprodutibilidade de figuras mercadológicas e cotidianas, esvaziando a arte de toda possível sacralidade.

Segundo o crítico e historiador estadunidense P. Adams Sitney, o cinema estrutural surge dentro da Vanguarda Americana naturalmente como reação romântica que incorpora as propostas de Warhol em um novo rumo: filmes em que apreendemos já nos primeiros minutos como será até o final, que se restringem a uma operação simples pautada na repetição, em que padrões e configurações são levados ao esgotamento dentro de um período de tempo determinado. Michael Snow foi um dos grandes nomes desta linha, sendo o que mais se aproximou, no cinema, com sua obra A região central (1971), do ideal inalcançável de certos artistas vanguardistas e modernistas de realizar uma arte feita totalmente pela máquina, utopicamente livre da ação humana.

Na cronologia do cinema experimental americano, é notável a passagem não linear do filme de transe em terceira pessoa para o filme lírico em primeira pessoa, impulsionada pela minimização gradual dos aparatos cinematográficos, ocorrendo um câmbio dos fortes valores surrealistas e simbólicos dos primeiros a uma mediação modernista entre olhar e tela dos segundos (vide os filmes realizados por Stan Brakhage nos anos 1950 como exemplo dessa transição). Dentre os vários tipos de filmes realizados neste período, é evidente na grande maioria o acentuamento da figura do Eu. O cinema estrutural, seguindo relativamente a guisa de Warhol, visava obscurecer ou se afastar da centralidade subjetiva, propondo a partir das operações o distanciamento da parcela humana na criação. Por outro lado, o fator romântico ainda era latente, com aspirações opostas ao cinema de Andy Warhol; por exemplo, sobre seu filme Comprimento de onda (1967), Michael Snow afirma o seguinte: “Eu queria fazer um resumo do meu sistema nervoso, minhas intuições religiosas e minhas ideias estéticas. Eu estava pensando, planejando, um monumento no qual a beleza e tristeza da equivalência seriam celebradas, pensando em tentar fazer uma afirmação definitiva de espaço e tempo cinematográficos puros, um equilíbrio entre ‘ilusão’ e ‘fato’, tudo em torno da visão.” (SNOW, 1967)

Neste filme de 1967, a câmera realiza um lento zoom de 40 minutos no interior de um loft, indo de um enquadramento geral ao detalhe de uma fotografia presa na parede à frente da lente contendo o registro de pequenas ondas na superfície do mar. Após 8 minutos de filme, uma frequência toma conta da malha sonora, realizando um crescendo em paralelo ao zoom até o fim dos 40 minutos. Alguns eventos ocorrem no cômodo, às margens do movimento da câmera: no primeiro, uma mulher de casaco de pele entra na sala acompanhada por dois homens carregando um móvel; no segundo, a mesma mulher retorna com uma amiga, elas tomam as bebidas que trouxeram e ligam o rádio, que toca “Strawberry Fields Forever” dos Beatles; no terceiro, um som de vidro quebrando é ouvido, um homem (Hollis Frampton) entra e inexplicavelmente desmorona no chão como morto; por fim, a mulher reaparece e faz um telefonema de emergência, falando com uma calma suspeita, sobre o homem morto em seu apartamento que ela nunca viu antes.

A tensão transbordante da superficialidade do suspense e o domínio sugestivo sobre o espectador lembram os filmes coloridos de Hitchcock dos anos 1950 como Ladrão de casaca (1955) e Intriga internacional (1959). O pouco de mise-en-scène existente nas margens do zoom conduz o público unicamente à percepção do movimento central, subordinando as intrigas surgentes à operação pré-programada. As cores se alternam por filtros com uma arbitrariedade tangente à narrativa e à proposição, mas são assistentes na estimulação do drama e do suspense cômico; os atores estão ali simplesmente para realizar as ações reduzindo suas contribuições criativas ao mínimo; todos os elementos fílmicos que circundam o movimento principal retornam a atenção ao mesmo. O zoom é estudado em sua essência, vemos cada vez menos uma imagem e cada vez mais uma nova no interior da primeira.

Após um longo período trabalhando e morando em Nova York, Snow retorna ao Canadá, sua terra natal. Para realizar A região central (1971), necessitou de um aparato robótico como suporte para a câmera 16mm, formado por um braço na vertical apoiado ao chão com alguns eixos no topo que permitiam que a câmera realizasse todos os movimentos possíveis dentro de 360º. Pierre Abbeloos, engenheiro da National Film Board of Canada, foi o encarregado de construir o braço robótico orientado por controle remoto denominado “Camera Activating Machine” (Máquina de Ativação de Câmera), processo que demorou cerca de um ano. O local de filmagem foi uma montanha em Sept-Îles, no Quebec (Canadá), selecionado por não apresentar nenhum traço humano em sua paisagem (escolha que já revela os inevitáveis traços humanos da concepção pelas decisões do autor).

Ao longo das três horas de duração de A região central, acompanhamos a câmera, posicionada no topo da montanha, realizar uma série de movimentos pré-programados em um total de 17 planos que mapeiam a paisagem em todas as perspectivas possíveis, desconsiderando até mesmo a ação gravitacional na imagem por meio do aparato. Os movimentos seguem um lento crescendo ao longo da duração que alcança, por fim, uma velocidade frenética que desfigura a paisagem como uma matéria etérea lançada ao espaço. O que antes era evidentemente pré-programado, parece agora liberto, como conduzido desorientadamente por uma forte ventania ou solto em um ambiente sem gravidade.

O mapeamento gradualmente esculpe uma contra-imagem, aquela atrás da câmera, um ponto cego que se forma esfericamente; a região central, análoga à localização do espectador que, sentado em sua cadeira, realiza apenas movimentos em seu eixo. O filme “feito pela máquina” localiza o humano como centro perceptivo. Se em Comprimento de onda, o domínio sobre o espectador já se apresentava pela irrupção dos elementos fílmicos e narrativos, em A região central, o domínio chega a nos imobilizar e isolar, nos subordinando totalmente à orientação ditada pelo controle remoto e nos indicando nossa posição por aquilo que não é visto; a participação ativa do espectador é ao mesmo tempo anulada pelo procedimento da imagem e imprescindível para a assimilação da contra-imagem. Snow gostaria que “o espectador fosse o único centro de todos esses círculos. Tinha que ser um lugar onde você pudesse ver uma longa distância e não pudesse ver nada feito pelo homem. Isso tem algo a ver com um certo tipo de solidão ou distanciamento que cada espectador pode ter ao ver o filme.” (SNOW, 1972).

Como apontou a crítica estadunidense Annette Michelson em About Snow, A região central é filmado em um período intenso de programas espaciais realizados pelos Estados Unidos que culminou no cumprimento do Programa Apollo, que foi extensamente televisionado. O filme apreende e transmite a então corrente euforia da prolongação visual por meio da máquina que irrompe com o senso de espaço intrinsicamente ligado à gravidade.

Em contraposição à recorrente comicidade modernista das obras de Snow, este é possivelmente seu grande filme trágico, em que a descoberta paulatina do espaço nos revela a imobilidade humana no processo e até mesmo o horror do isolamento, assim como um herói é cercado cada vez mais pelas circunstâncias maiores reveladas em suas jornadas narrativas. Por outro lado, paradoxalmente, essa tragédia é fruto da euforia aventuresca pelo desconhecido, movida pelo desejo coletivo por evidências fotográficas e cinematográficas do espaço. Nesse momento histórico, a ampliação filosófica e perceptiva pelo conhecimento do espaço sideral era essencialmente imobilizadora pois só ocorria por meio da atividade da máquina. Para um grupo seleto, por meio de espaçonaves; para o grande público, por meio da televisão. Resta a questão se essa tragédia apresentada não passa de uma grande piada monótona de Snow com a própria situação do espectador frente a tela em A região central se descobrindo a própria região central, tal qual o bebê envolto esfericamente no final de 2001: Uma odisseia no espaço (Stanley Kubrick, 1968).

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BIBLIOGRAFIA

MICHELSON, Annette. About Snow (1979) In: MICHELSON, Annette (org.) Michael Snow (October Files) Massachusetts: MIT Press. 2019 (pp. 71-92).

SITNEY, P. Adams. The Idea of Morphology, Film Culture,n.º 53-54-55, primavera de 1972, pp. 1-24. (Disponível em português em: http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO8-9/sitneymorfologiadv.htm ; traduzido por Clarice Dantas).

SITNEY, P. Adams. Visionary Film. Nova York: Oxford University Press, 1979.

SNOW, Michael. “A Statement”, Film Culture n.º 46, outono de 1967.

SNOW, Michael, “Interview with Michael Snow on The Central Region” por Jonas Mekas gravado em 2 de janeiro de 1972; tape depositado na Anthology Film Archives, New York.

Texto sobre o filme A região central, da mostra Homenagem a Michael Snow, que integra a programação do mês de maio.





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