Faroeste no feminino

Joan Crawford em Johnny Guitar (1954)

Sumário

A mulher da fronteira: Barbara Stanwyck e a conquista do Oeste, por Leticia Weber Jarek

O poder da mulher (Westward the Women, William Wellman, 1951), por Igor Nolasco
O diabo feito mulher (Rancho Notorious, Fritz Lang, 1952), por Paula Mermelstein
Bela e bandida (Montana Belle, Allan Dwan, 1952), por Lucas Bueno
A renegada (Woman They Almost Lynched, Allan Dwan, 1953), por Paulo Martins Filho
Johnny Guitar (Johnny Guitar, Nicholas Ray, 1954), por Pedro Serpa
Montana, terra do ódio (Cattle Queen of Montana, Allan Dwan, 1954), por Tomás Farias
Dragões da violência (Forty Guns, Samuel Fuller, 1957), por João Pedro Faro
A pistoleira de Virginia (Il mio corpo per un poker, Lina Wertmüller e Piero Cristofani, 1968), por Gabriel Carvalho
Hannie Caulder – Desejo de vingança (Hannie Caulder, Burt Kennedy, 1971), por Ruy Gardnier
Rápida e mortal (The Quick and the Dead, Sam Raimi, 1995), por Beatriz Saldanha
O atalho (Meek’s Cutoff, Kelly Reichardt, 2010), por Anita Gonçalves


A mulher da fronteira: Barbara Stanwyck e a conquista do Oeste
por Leticia Weber Jarek

Gênero voltado ao passado, o faroeste desponta no cinema quando as míticas excursões no Oeste deixam de existir na realidade histórica, passando para os terrenos da ficção, numa arte ainda recém-nascida, que recupera dessas terras já descobertas algo de uma aura perdida e intocável. Revestidos por um véu de melancolia, é raro encontrar nesses filmes personagens que simplesmente não possuem um passado ou uma história para contar em balcões de bar. Entre desencontros amorosos e embates mortais, apenas Mac (J. Farrell MacDonald), personagem de Paixão dos fortes, poderá dizer que nunca esteve apaixonado – “fui um bartender por toda minha vida”.

Nestes filmes de poucas mulheres, o passado tem outro peso do lado de personagens femininas que, frequentemente reduzidas aos papéis de “saloon girl”, prostitutas com corações de ouro, jovens professoras (“schoolmarm”) e pretendentes inocentes, existem apenas, como indica Budd Boetticher¹, em função do que provocam e representam na trajetória do herói. Ainda que esse comentário possa parecer injusto com personagens memoráveis interpretadas por Maureen O’Hara, Rhonda Fleming, Jane Darwell e Angie Dickinson, ele denuncia na sua crueza o modus operandi do western, ao mesmo tempo que põe a nu a tática de cena dessas intérpretes – isto é, compensar um tempo de tela muitas vezes breve com olhares eloquentes e gestos precisos. Que essas personagens abandonem uma cidade por outra na busca de uma nova vida, como Dallas (Claire Trevor) em No Tempo das diligências, ou que permaneçam imóveis no limiar da ação, como testemunhas de uma história que ainda está sendo escrita, elas surgem antes de tudo como bússolas morais para homens imersos no caos de um universo primitivo. Ora representantes da civilização, ora expoentes de um mundo pulsional, seus gestos cansados e solenes dão a ver tanto o peso dos clichês, quanto as rachaduras humanas que trincam esses moldes ideais.

Se faroestes femininos como Johnny Guitar, O diabo feito mulher, Céu amarelo impactaram tanto o cânone cinéfilo, criando quase um capítulo à parte feito de digressões românticas em torno da melodia das atrizes, é porque eles acrescentam a esse quebra-cabeça peças antes perdidas. Dar às mulheres o que lhe é de direito, pois não só de cowboys foi feito o Velho Oeste, mas também de Calamity Jane, Annie Oakley, Belle Starr e tantas outras pioneiras e proprietárias indomáveis. O que é a sequência inesquecível de Johnny Guitar, “minta para mim, diga que você me esperou por todos esses anos”, senão uma bela tentativa de reverter o curso implacável do tempo, de superar de uma só vez a ausência de um drama feminino na geografia árida do gênero? De dar imagem a uma “mulher com passado”, mas que, ao mesmo tempo, acaba de nascer como protagonista? Tentativa à qual responde tanto Vienna no mundo diegético, quanto Joan Crawford nos quadros mais livres da série B: “por que você demorou tanto?

Com calças compridas, armas na cintura e lenços no pescoço, essas estrelas vêm complexificar os códigos do gênero, adicionando variações e hibridações à matriz bem masculina do faroeste, ao passo que este entra na sua fase mais reflexiva e prolífica no decorrer dos anos 1950. A indústria americana produzindo em torno de cinquenta faroestes por ano², é nesse momento que atrizes como Marlene Dietrich, Jane Russell, Anne Baxter vão de encontro ao cenário simplório das cidades de madeira, sujam as mãos com enredos em que elas são, enfim, soberanas, as personagens principais. Aos traços maduros de seus rostos, reponde também um gênero de longa data que, como suas personagens, possui muitas vidas passadas. Dessa conquista feminina em terrenos outrora inóspitos, é importante sublinhar o papel da série B e de pequenas produtoras como Republic, cuja economia dos meios de produção possibilitava maior experimentação e ousadia na concepção dos filmes, daí a liberdade de faroestes protagonizados por estrelas consagradas, como Crawford, Shelley Winters, Betty Hutton, ou por atrizes menos conhecidas como Vera Ralston. Ainda que a nuvem do casamento paire sempre no horizonte dessas heroínas, como demonstra sinteticamente o final por detrás das grades de Anjo de vingança (dir. Louis King, 1950), essa abertura estética insufla um ar fresco às atrizes e ao gênero, de forma que ambos se revigoram ao entrar em contato com ecossistemas antes desconhecidos – misturam-se assim nesses filmes outras convenções vindas do melodrama, dos woman’s pictures e da comédia.

Contudo, há uma atriz que fez do Oeste sua terra de predileção. Condecorada no set de Montana, terra do ódio por índios blackfoot pela sua coragem ao banhar-se nas águas límpidas e gélidas do Glacier National Park, segundo eles, “ela monta, atira, faz um trabalho muito difícil – raro para uma mulher branca”³. Trata-se de Barbara Stanwyck, ou Princesa Muitas Vitórias como foi nomeada pela comunidade blackfoot: atriz que construiu um vínculo íntimo e duradouro com o gênero, encontrando nele um espaço à altura de suas ambições. Para além de um simples flerte de um ou dois filmes, Stanwyck atuou em mais de dez faroestes durante toda sua carreira em Hollywood, sendo conquistada já nos anos 1930, em Aliança de Aço, pela liberdade desafiadora das cenas de ação típicas do gênero, nas quais ela pôde provar continuamente sua versatilidade e destreza física. Não só a estrela fazia questão de realizar o maior número de sequências sem dublês, mas era ela que, como atriz freelance, escolhia a dedo seus roteiros. Admiradora de Pearl White, segundo ela, o que lhe interessava eram personagens ousadas, corajosas, nada de mulheres imobilizadas em grandes vestidos de crinolina que permanecem aos pés da escada – “Eu gosto de papéis durões. […] Prefiro não atuar a fazer uma Poliana. Eu tenho que interpretar seres humanos”⁴.

Nutrindo também uma profunda admiração pelos pioneiros (“homens bons, homens maus, todos eles fizeram este país”⁵), a disponibilidade física de Stanwyck para as cenas externas acaba arejando seus faroestes, uma vez que seu campo de ação não é reduzido aos cenários restritos do saloon ou das grandes haciendas das quais suas personagens são as proprietárias. Pelo contrário, esses filmes são atravessados pela presença telúrica e magnânima da natureza que se associa harmonicamente à vitalidade de suas heroínas, como prenunciam os títulos originais de filmes como The Maverick Queen, Blowing Wild e The Furies. Ao abdicar dos dublês, ela sela então um acordo com a geografia selvagem do faroeste, conquistando sua plena integração ao gênero. Indo da Hollywood clássica aos faroestes televisivos, essa aliança é marcada, contudo, por alguns filmes excepcionais que iluminam não só as virtudes ambivalentes de sua performance (transparente e reflexiva), mas a própria situação do gênero em meados dos anos 1950. Leve como o vento em Montana, terra do ódio, dura como o ferro em Dragões da violência: colocados lado a lado, esses dois filmes fazem passar pelo corpo de Stanwyck a limpidez dos faroestes clássicos aos primeiros tiros do cinema moderno.


A rainha dos independentes

Ambos veteranos na altura da produção de Montana, terra do ódio, atriz e realizador compartilham um princípio básico do classicismo hollywoodiano: o seu interesse por qualquer história humana. Trate-se de ação, aventura ou paixão, segundo Allan Dwan, “o espetáculo não funciona se ele não fizer parte de uma bela história íntima”⁶. Cineasta de uma discrição singela, ele atravessa a história do cinema americano por vias menos grandiosas, como um artista que permanece nos bastidores do espetáculo, favorecendo todos aqueles que trabalham ao seu lado. Como dois artesãos exemplares, estrela e autor expandem sua generosidade a todo grupo, fazendo não à toa um western sobre um trio que se forma no improviso. Sob a luz cristalina de John Alton, assistimos o percurso de Sierra Nevada Jones (Stanwyck) que, destituída de suas terras, procura ajuda ao lado de duas figuras a princípio opostas – um amigo blackfoot (Lance Fuller) e um pistoleiro em vias de redenção (Ronald Reagan). Enquanto qualquer diretor mediano tenderia à oposição maniqueísta desses personagens, Dwan mira na lenta aproximação desses seres que, tal qual o equilíbrio calmo da natureza que os cerca, conseguem restituir a ordem entre seus pares.

De fato, Jacques Lourcelles não exagera quando escreve que Dwan sempre buscou em seus filmes “uma visão plástica da mulher realizada”⁷, pois, se alguma vez o diretor conseguiu avistar esse paraíso feminino, certamente ele se assemelhou ao mundo de Sierra Nevada. Já nas primeiras cenas do filme partimos da voz off de Stanwyck que, grave e determinada, conta o caminho que a levou até as terras verdes de Montana. Após sete meses de peregrinação, ela banha-se então nas águas desse novo território, descobrindo, alguns minutos depois, que é observada por outro personagem. Sem rodeios, deparamo-nos nesse momento inicial com imagens inéditas que simplesmente ignoram sua excepcionalidade e que, assim, impressionam. Não só reconhecemos o rosto da atriz no plano geral, no meio do rio, com as montanhas ao fundo, como também ela não demonstra nenhuma insegurança e reserva em relação ao seu entorno – apesar da presença masculina, ela está à vontade, nua entre as pedras e as árvores. Isso se repete por todo o filme: se Sierra aparece de repente com um terrível vestido rosa-bebê, é para que possamos vê-la voltar, naturalmente, à sua calça de couro e camisa habituais; se ela decide beijar o mocinho ou parar um incêndio numa comunidade indígena, Stanwyck o faz com uma normalidade cotidiana. Vale atentar também à postura cristalina de diretor e atriz que ousam conceber essa heroína para além dos moldes de “garçon manqué”, que fariam dela uma aberração a ser convertida à normalidade nos momentos finais do filme. Ao contrário, em momento algum o enredo se ocupa com sua sexualidade ou feminilidade: o que ela é, ela permanece sendo até o fim.

Quando questionada por Colorado sobre seu nome incomum, a personagem responde que foi batizada em homenagem às montanhas brancas da região, essas que, na época, nunca tinham sido avistadas pelo seu pai. É assim que Sierra nos aparece tanto como uma utopia feminina, quanto como uma personagem que prova sua materialidade durante o percurso. Não à toa Dwan se dedica a registrar, através de panorâmicas e lentos movimentos de câmera, a marcha desses personagens no espaço: há um prazer em traçar caminhos por meio da natureza, em deixar escorrer o fluxo narrativo, parar por breves momentos em retratos de pequenas comunidades, como os índios blackfoot. Sempre com um riacho ao fundo ou com o som das folhas ao vento, Montana, terra do ódio é um trunfo das pequenas parcerias que fizeram a história da série B no cinema hollywoodiano.

À imagem dessa “incrível trabalhadora, amiga de todos os técnicos”⁸, “uma estrela dedicada”⁹, Cattle Queen possui um brilho discreto, mas que perdurou por muito tempo na mente dos cinéfilos. Reconhecer as belezas desse filme, lavar os olhos com essas imagens límpidas, gera o mesmo prazer secreto quando conseguimos reconhecer, num grande faroeste canônico, o rosto de algum coadjuvante genial, como Olive Carey e Walter Brennan. Passando por todos os degraus da grande escada hollywoodiana, se atriz e realizador terminam suas carreiras em Hollywood nas prateleiras mais simples da série B, eles certamente tinham suas razões. Onde mais Stanwyck poderia gozar de tal liberdade na concepção de seus personagens? Porque ela não é apenas a rainha de Montana, ela é sobretudo a “rainha dos independentes”¹⁰.


Jessica Drummond, a mulher que matou Ward Bond

Mesmo antes de seu encontro com Samuel Fuller, Barbara Stanwyck já havia encarnado Jessica Drummond. Ao passo que Fuller retoma o nome de uma antiga personagem da atriz (de um woman’s picture de Curtis Bernhardt, Minha reputação, de 1946), Stanwyck já demonstrava há muito tempo uma profunda afinidade com o universo do cineasta. Nos anos 1930, ela tinha sido a mulher que bateu e levou alguns golpes de um Clark Gable brutal, em Triunfos de mulher, que flertou descaradamente com um inocente John Wayne, em Serpente de luxo; nos anos 1940, ela é a femme fatale que tortura o iniciante Kirk Douglas e, em 1953, ela mata nada mais, nada menos que o maior vilão de faroestes, Ward Bond, num tiroteio de No reino das sombras. Logo, quando Fuller inicia as filmagens de Dragões da violência, a atriz conhece muito bem a dureza e a frontalidade de um verbo “conjugado no presente, na urgência da ação – e da reação – cotidiana”¹¹, esse que constitui o núcleo duro do cinema de Fuller. Para interpretar essa “mulher com um chicote”, título original do filme, ela apenas conjura seus fantasmas do pre-code, infunde-se de toda bile negra de seus filmes noir.

Jamais outro faroeste se entregou tão despudoradamente à imagem de uma atriz cavalgando, como na primeira cena de Dragões da violência. Não se trata aqui de uma ambivalência água-com-açúcar, mas sim de um filme explícito, como prevê Fuller no seu primeiro rascunho, “um grande western sexual em Cinemascope”¹². Quando Stanwyck surge na dianteira de seus quarenta cavaleiros, “como uma rainha e seus concubinos” ¹³, ela aparece tal qual uma dominatrix, toda em preto, com luvas de couro e em contra-plongée. Impossível não pensar nessa sequência inicial como a consagração de uma atriz que sempre fez questão de sublinhar o desejo de suas personagens – que ela encare fixamente suas presas ou as rodeie com um andar rijo e certeiro, as mãos sempre nos quadris, esse desejo torna-se mesmo o motor da mise en scène de seus filmes. É essa mesma energia imperial que Fuller infunde à montagem do filme, por meio de planos desiguais que vão da terra até ao céu, esposando assim nas suas fusões o olhar obcecado e inabalável dessa proprietária de terras.

Inspirando-se em casos de delinquência juvenil e nas aberrações da cultura armamentista norte-americana, Fuller, como um bom jornalista aguerrido, aponta nesse filme para a “fascinação perversa que a América tem pelas armas”¹⁴. Já nas suas cenas iniciais, anuncia-se então a ruína do império de Jessica que, como todo cowboy, tem um ponto fraco – no seu caso, Brockie (John Ericson), seu irmão inconsequente que “não consegue controlar sua própria arma”. Em vez de se entregar a um fetichismo viril, em planos que se debruçariam sobre as armas do pistoleiro, Dragões da violência destaca, ao contrário, o caminhar tranquilo e firme de Griff (Barry Sullivan) e Jessica, que agem como meros profissionais do Oeste. Se os dois se apaixonam, é porque eles se reconhecem como pares. Eis o segredo da cena de jantar que, mais do que qualquer outra sequência de duplos-sentidos, impacta pela maneira com que os atores sustentam suas réplicas. Sóbrios e trocando olhares duradouros, numa lentidão em si prazerosa, eles se provocam numa espécie de transa verbal que é, antes de tudo, um jogo intelectual. Jessica ri e morde os lábios, mede a arma de Griff, enquanto ele bebe de seu whisky. Para ganhar essa partida, é preciso sustentar o olhar por mais tempo possível, sem ceder aos avanços do inimigo. Tarefa difícil quando os próprios rostos de Sullivan e Stanwyck parecem pertencer a uma ordem mineral, velhos atores de um eterno preto-e-branco.

A graça de Jessica reside então na sua segurança despreocupada, nos momentos em que seus gestos dão a ver um gozo feminino, “um prazer de ser ela mesma, que está além do gozo fálico”¹⁵. Dragões da violência mina sistematicamente os atributos clássicos da virilidade, sem ao menos pestanejar, como indica Nathalie Dray¹⁶. Montada em seu cavalo branco ou aos pés do piano, de calças ou vestido, Jessica continua sendo “uma mulher com o chicote”. Pois se Griff se apaixona por ela, segundo Fuller, ele se fascina antes de tudo por uma mulher forte. Dentre as maiores provas de poder da atriz, a cena da tempestade de areia, na qual ela é arrastada por seu cavalo durante alguns minutos, indica até onde Stanwyck era capaz de ir pela sua arte: repetindo três tomadas da mesma cena, ela se expõe em plano geral, presa ao cavalo, ao lado dos trilhos do travelling, enquanto grandes ventiladores lançam cimento no ar para os efeitos desse furacão simbólico ¹⁷. Esse último, uma intervenção natural que desarma finalmente Griff e Jessica, rendendo-os aos seus desejos, deitados lado a lado, ocupando assim toda extensão do Cinemascope.

Depois de todas essas cenas, é inevitável não se ressentir com o final de Dragões da violência, em que Jessica corre com um belo (e limitante) vestido branco atrás da charrete de Griff. Porém, como uma inversão simetricamente perfeita do início do filme, essa conclusão parece formular um comentário sintético sobre os mecanismos de censura aplicados aos woman’s pictures, gênero que não deixa de se imiscuir nesse faroeste. Por mais de três décadas, Stanwyck interpretou heroínas destemidas que, nos minutos finais, deveriam sempre retornar à norma, em suma, ao mundo doméstico representado pela instituição do casamento. Na sua forma abrupta e desacreditada, Fuller traça uma caricatura desse sistema pueril e conservador, que é incapaz de conceber uma mulher emancipada, muito menos o horror de um pistoleiro que mata sua própria amante – “Meu Deus, meu atirador devia pensar nas receitas do box-office antes de puxar o gatilho!”¹⁸. Deixando-a viver de acordo com esses moldes femininos insípidos, ele representa justamente a morte simbólica de sua heroína. Bem que Jessica já dizia a Griff, como se estivesse falando também ao próprio Sullivan, que “essa é a parada final, a fronteira já não existe mais, não há mais cidades para tomar ou homens para domar”. Stanwyck acrescentará à fala de Jessica, quatro anos depois da estreia de Dragões da violência, quando questionada sobre as razões de seu desaparecimento das telas: “Porque ninguém me chamou. Eles normalmente não escrevem papéis para mulheres da minha idade, porque a América é agora uma terra da juventude”¹⁹.

Gênero obcecado pela noção de fronteira, lugar mítico no qual se termina a civilização e começam as paisagens intocadas de um paraíso selvagem, o faroeste criou ficções sempre sobre a linha tênue do real e da ilusão, da destruição e do sonho. Como protagonista dessas ficções, Stanwyck revela-se enfim como um dos pioneiros que ela tanto admirou, visto que, ao estender gradualmente os limites impostos às suas personagens, ela avança um pouco mais no que seria seu Oeste sonhado. Ao lado de estrelas como Dietrich, Crawford, Darwell, Russell, ela depõe seu distintivo para que outras atrizes retomem sua missão. Nas linhas de sua filmografia, podemos “ler uma história do cinema americano”²⁰ e avistamos, ao mesmo tempo, a imagem perene de uma mulher da fronteira, sempre na beira de portais e janelas. Não à toa, nesse limiar, ela alerta as jovens atrizes de um perigo comum, mas que fez muitas vítimas: “toda vez que você dá um passo à frente em sua carreira, alguém sempre lhe dirá, ‘bem, você chegou’. Isso é particularmente verdade em Hollywood. E é fatal acreditar nisso. Você nunca vai chegar lá. Se você tentar, você sempre poderá dar mais um passo à frente. E é melhor você tentar, porque, se não o fizer, alguém o fará.”²¹ Lição de uma pioneira para quem o cinema, até mesmo os melhores faroestes, ainda serão inventados.

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1 “Entretien transocéanique avec Budd Boetticher”, Cahiers du Cinéma, n° 157, julho de 1964, p. 11.
2 VIVIANI Christian, “Vers le crépuscule… Femmes au cœur du western classique”, Positif, n° 509-510, agosto de 2003, p. 17.
3 SMITH Ella, Starring Miss Barbara Stanwyck, New York, Crown Publishers, 1974, p. 255.
4 Ibid., p. 241
5 SCHACKEL Sandra, “Barbara Stanwyck: Uncommon Heroine”, California History, vol. 72, n° 1, 1993, p. 42.
6 Allan Dwan: La legende de l’homme aux mille films (dir. G. Gosetti), Paris, Cahiers du Cinéma, 2002, p. 12.
7 LOURCELLES Jacques, “Les tragédies optimistes d’Allan Dwan”, in Allan Dwan: La legende de l’homme aux mille films (dir. G. Gosetti), op. cit., p. 188.
8 BOGDANOVICH Peter, « Le dernier des pionniers », ibid., p. 85.
9 SMITH Ella, Starring Miss Barbara Stanwyck, op. cit., p. 259.
10Com humor, Al DiOrio sintetiza a interação das estrelas femininas com os estúdios: “Se Crawford era a rainha da Metro, Davis a futura rainha da Warner, e Claudette Colbert a rainha da Paramount, Stanwyck era sem dúvida a rainha dos independentes”. In DiORIO Al, Barbara Stanwyck, Coward-McCann, New York, 1983, p. 200.
11 LAFOND Frank, Samuel Fuller – jusqu’à l’épuisement, Aix-en-Provence, Rouge Profond, 2017, p. 17.
12 Ibid., p. 21.
13 FULLER Samuel, Il était une fois, Samuel Fuller (histoires d’Amérique racontées à Jean Narboni et Noël Simsolo), Paris, Ramsay, 1990, p. 220.
14 FULLER Samuel, Un troisième visage : le récit de ma vie d’écrivain, de combattant et de réalisateur, Paris, Éditions Allia, 2011, p. 422.
15 ROLLET Patrice, “L’autre visage de la fureur – érotique de Fuller”, in Samuel Fuller : le choc et la caresse, Crisnée, Yellow Now, 2017, p. 82.
16 DRAY Nathalie, “Déposer les armes (Forty Guns)”, ibid., p. 230.
17 No início dos anos 1960, quando confrontada com a preguiça dos produtores frente aos programas televisivos protagonizados por mulheres, Stanwyck lança: “O fato é que sou a melhor atriz de ação do mundo. Eu posso ser arrastada por cavalos e pular de prédios, e eu tenho as cicatrizes para provar.” A atriz certamente estava pensando nessa sequência.
18 FULLER Samuel, Un troisième visage : le récit de ma vie d’écrivain, de combattant et de réalisateur, op. cit., p. 422.
19 SMITH Ella, Starring Miss Barbara Stanwyck, op. cit., p. 265.
20 VIVIANI Christian, “Stany”, Positif, n° 349, maio de 1990, p. 39.

O poder da mulher (Westward the Women, William Wellman, 1951)
por Igor Nolasco

Lançado pela Metro Goldwyn-Mayer em 1951, O poder da mulher é um bom exemplo de como um filme pode estar atrelado às convenções e às fórmulas comumente associadas a seu gênero e ser, ao mesmo tempo, surpreendente e inovador. Não faltam exemplos, no cinema de faroeste, de obras cuja narrativa gira em torno da travessia de um comboio do ponto A ao ponto B – um dos filmes mais amplamente conhecidos de John Ford, No tempo das diligências (1939), talvez possa receber o crédito por aperfeiçoar essa estrutura e se impor enquanto seu maior expoente. Claro que esse formato para a jornada, a princípio, não diz nada. O que realmente interessa, em termos de história, é como o filme se propõe a trabalhar a evolução de suas personagens ao longo do trajeto, a maneira com a qual elas superam as adversidades que (obrigatoriamente) surgem durante o caminho, os laços que se formam entre elas, suas motivações e ambições em atingir o(s) objetivo(s) finais da jornada. Em termos de imagem, é claro, o que interessa é o olhar do cineasta quando captura as paisagens brutalizadas e brutalizantes que são mister de um bom faroeste, seu timing para a ação e para a aventura, para a construção da tensão em meio às privações e aos conflitos, sua engenhosidade em subverter expectativas (e às vezes até mesmo em atendê-las), e sua inteligência clínica em fazer, através de sua obra, um comentário sobre a América. É a engenhosidade de Ford nisso tudo, por exemplo, que faz de No tempo das diligências um filme essencial (e é a última vez que lançamos mão de comparações com Ford, meramente instrumentais nesta introdução). William A. Wellman, responsável por dirigir O poder da mulher com base num argumento de Frank Capra, também é bem sucedido em compreender e levar a cabo tudo o que é necessário para fazer de seu filme um western digno de nota, que deve ser destacado pelo papel central que ocupa, nele, a figura da mulher. Ou melhor, das mulheres.

Wellman e Capra partem de uma premissa que a princípio pode parecer fantasiosa e até lúdica: desolado com a perspectiva da debandada da população masculina de um vale em meio à Califórnia pela flagrante ausência de mulheres, o figurão da região trata de arranjar um vaqueiro (Robert Taylor, fisicamente imponente, o cenho sempre franzido sobre os olhos claros, é o mocinho perfeito para o trabalho) para capitanear uma missão ambiciosa: ir com ele até Chicago e recrutar uma quantidade suficiente de mulheres dispostas a se mudarem de estado – e de vida – para satisfazer as angustiosas preces dos homens californianos. No papel, a ideia pode sugerir um filme onde essas “esposas sob encomenda” assumem um papel passivo, sendo não mais que macguffins, objetos a serem transportados pelo herói durante o caminho enquanto a narrativa se desenrola, servindo de recompensa aos homens no final. Nada mais distante, no entanto, do que O poder da mulher se propõe a fazer, como fica claro a partir do primeiro momento em que as titulares mulheres entram em cena, quando os homens da Califórnia, já em Chicago, realizam uma espécie de audição para arrebanhar voluntárias. Na parede do salão, um quadro onde estão pregadas fotografias de todos os “pretendentes”. Analisando-as, as mulheres como que escolhem seus futuros maridos, colocam-se como sujeitos ativos da jornada. Elas não são o prêmio a ser resgatado: os homens são. Nisso, por si só, já há uma mudança de paradigma, que segue sendo descortinada diante do espectador na medida em que vamos, desde já, conhecendo essas personagens, que pouco são pensadas para se encaixarem na donzela arquetípica: entre elas, temos mães solteiras, viúvas com histórias trágicas buscando um novo capítulo em suas vidas, dançarinas que querem abandonar os saloons, grávidas abandonadas pelos progenitores de seus futuros bebês. Mulheres de carne e osso, tridimensionais, que de certa forma assumem o protagonismo do filme (e da caravana propriamente dita) em par de igualdade com Robert Taylor.

A princípio, a resistência delas à aventura é questionada pelos homens – a expectativa é que muitas não sobrevivam. De fato, ocorrem algumas baixas ao longo das duas horas de projeção, e no entanto, através das virtudes individuais de cada integrante do bando e da força de sua coletividade, a caravana de mulheres (título português do filme, transplantado ao Brasil para o lançamento em DVD) atravessa a distância entre Chicago e a Califórnia não apenas seguindo passivamente a liderança do vaqueiro que a conduz, mas agindo em prol da própria sobrevivência do grupo. Poucas começam o filme já sabendo andar a cavalo; uma ou outra sabe atirar. Ao final do longa, quando chegam próximas ao vale onde os solteirões californianos as esperam, estão endurecidas pelo tortuoso caminho, povoado por toda a sorte de perigos que um faroeste pode oferecer, e com um enfoque refinado para como esses perigos poderiam pesar, em maior ou menor grau, para personagens femininas.

No fim das contas, muito mais do que a resolução da aventura ou o encontro das mulheres com os homens mediada pelo caminho sofrido, O poder da mulher de Wellman é um filme sobre a força dessas mulheres, sobre suas trajetórias enquanto indivíduos, sobre como reagem em meio ao batismo de fogo de ambientes árduos e cruéis como as trilhas de um western, e sobre como seu valor não está em serem apenas “material para casamento”. Quando efetivamente chega o inevitável momento em que as sobreviventes adentram o vale, são elas quem ditam as regras. Há toda uma tensão no ar; o espectador e os habitantes daquele lugar sabem que, para chegar ali, aquele grupo comeu o pão que o Diabo amassou, e que se havia alguma inocência entre aquelas mulheres, ela foi destruída em algum ponto entre Chicago e Califórnia. Fotografias em mão, escolhem os homens, criticam os que não se parecem com os retratos posados e são, novamente, os agentes ativos daquela negociação, como haviam sido durante a convocação, lá atrás. Como já aqui frisado, os maridos são a recompensa para aquelas mulheres, e não o contrário: em O poder da mulher, ainda que Robert Taylor chame para si o star power, são elas que estão, a todo momento, em primeiro plano – literal e figurativamente.

A lenda de Chuck-a-Luck
O diabo feito mulher (Rancho Notorious, Fritz Lang, 1952)
por Paula Mermelstein

Dirigido por Fritz Lang a partir de uma história escrita por Silvia Richards – que escreveu o roteiro de O segredo da porta fechada (1947) – e estrelado por Marlene Dietrich, Rancho Notorious¹ é um western musical em Technicolor, gênero um tanto atípico para tais nomes. Os créditos iniciais, com fontes estilizadas sobre um fundo de madeira adornada, acompanhados pelo canto de um homem, apenas reforçam essa estranheza para o espectador; isto é, até a letra da música chegar às suas palavras finais: “a velha história de raiva, assassinato e vingança”.

O plano inicial que segue é de um beijo do casal de noivos formado por Vern (Arthur Kennedy) e Beth Forbes (Gloria Henry), após o qual trocam promessas e juras de amor, uma cena clichê, suspeita por vir cedo demais no filme. Enquanto Beth sonha com um rancho chamado “Lost Cloud Ranch”, Vern a presenteia com um broche em formato de flor, vindo de “Paris, na França”, e assim vamos sendo introduzidos nesta máscara rococó em que se esconde um filme de Lang e Dietrich. E não precisaremos esperar muito pela “raiva, assassinato e vingança” prometidos pela canção inicial, pois já nos primeiros cinco minutos de filme o conflito chegará: Vern vai trabalhar e deixa Beth sozinha em sua loja, onde é assaltada, ao que tudo indica estuprada, e morta pelo bandido Baldy Gunder (William Frawley).

Não vemos o crime em si, apenas ouvimos de fora da loja Beth gritar duas vezes, como que demarcando as duas violências distintas perpetuadas contra ela, o estupro e o assassinato. Quando Vern chega e encontra sua noiva morta, o médico lhe revela: “Nada lhe foi poupado”. A câmera passeia, então, em primeiro plano, do rosto da falecida até sua mão contraída e ensanguentada, como se até o último segundo de vida tivesse tentado reter aquilo que o bandido queria lhe tomar; isto poderia ser tanto o broche que ganhou poucos minutos antes (vemos que este foi arrancado de seu vestido, rasgado no local), ou sua “virtude”.

A primeira parte de Rancho Notorious será toda composta por cenas sintéticas como essa, como se o filme já reconhecesse nesse casal idílico, nesse bandido malvado, nessa trama de vingança, todos os clichês do western, e ao assim condensá-los os reforçasse ainda mais. A própria música, afinal, já revela a trama desde o princípio, e continuará a fazê-lo ao longo do filme. Trata-se de um western plenamente consciente de seus próprios códigos, que filma essa jornada inicial do herói como se conta um romance de cavalaria; uma história cuja estrutura já nos é mais do que familiar, que encontra seu charme tanto nos detalhes, nas pequenas diferenças que a distinguem, quanto na própria repetição.

É justamente por trabalhar assim com seus próprios clichês que esse não se trata de um western “puro”, não estamos diante de paisagens reais de horizontes extensos, longas jornadas e homens corajosos de atitudes heroicas. Trata-se de um western de estúdio, de saloons, de cassinos, de vestidos coloridos, de cenários pintados, que servem sobretudo de palco e adorno para as personagens coléricas e lascivas colocarem em ação “a raiva, o assassinato e a vingança”. As cores vibrantes do Technicolor, saturadas demais, já sinalizavam que isto tudo se trata de um idílio artificial: partimos da imagem clichê em tons pasteis do casal ingênuo, e caminhamos rumo a um mundo de depravados, onde a imagem de tons escuros e aveludados adquire um aspecto kitsch, vulgar.

Vern só tem uma informação que diz respeito ao paradeiro do homem que matou sua noiva: que ele ia para “Chuck-a-luck”. Acompanharemos, então, sua jornada elíptica em busca desse lugar que ninguém parece conhecer. Logo, descobre outra informação, um nome: Altar Keane. Aos poucos colhe histórias sobre a dona do nome, uma cantora de cabaré, interpretada por Marlene Dietrich. Essas histórias são apresentadas em breves flashbacks, situados em bares e cassinos coloridos, que compõem a imagem de Keane enquanto uma lenda, sobreposta, é claro, àquela da própria atriz.

De acordo com o último relato que se tem da personagem, ela caía numa decadência até ganhar muito dinheiro em um jogo de roleta, chamado Chuck-a-luck, e a decadência da personagem parece se referir, também, ao envelhecimento de Dietrich. Se o filme é consciente dos mitos do western, também o é de sua estrela em seus tempos de glória, e trabalha em conjunto este olhar retrospectivo para ambos; não era apenas Dietrich que envelhecia, afinal, mas o próprio gênero e, não muito tempo depois, o star system e todo o sistema de estúdios de Hollywood também entrariam em decadência. Esse tema subjacente do filme, no entanto, acaba por tornar-se um tanto difuso pelo fato de Dietrich, então com 51 anos, não aparentar ter envelhecido muito. Quando ela se refere ao personagem de Vern como um jovem, por exemplo, a impressão que temos é de estar trabalhando com um fato tão artificial quanto os cenários pintados no fundo, visto que o ator já tinha 38 anos e parecia ter a mesma idade dela. Essa incongruência condiz, de certa forma, com a artificialidade do filme, e acaba por acrescentar ao seu charme: o fato de que essa atriz, esse diretor e até mesmo essa trama (originária do texto de Silvia Richards), parecem grandes demais para este filme de orçamento limitado da RKO.

Apesar desse cenário decadente, Rancho Notorious está vivo e pulsa a todo momento com cenas de briga, tiroteios, fugas de prisões e linchamentos. Vern finalmente chega em Chuck-a-luck, um refúgio para bandidos dirigido por Altar Keane, uma espécie de paraíso proibido e financiado pelo crime – o alojamento é sempre pago com 10% do valor roubado pelos homens que chegam. Há uma sensação ambígua quando chegamos no rancho, lugar de aconchego e tranquilidade em meio à jornada turbulenta de Vern, provavelmente o mais próximo que chegará a um “Lost Cloud Ranch” como o que Beth sonhou. E essa casa isolada que abriga criminosos de carreira, é de fato, afinal, um território familiar para Fritz Lang, uma vez que seu cinema costuma ser centrado tanto na arquitetura dos espaços quanto em personagens do gênero noir. Em meio a esse antro de bandidos, nesta casa onde a principal regra é não fazer perguntas, Vern deverá descobrir qual deles violou e matou sua noiva.

Ainda que sua vingança seja o motivo condutor da trama do filme, ela parece perder um pouco o ímpeto quando entra no território de Keane. A personagem de Dietrich o recebe na casa com roupas masculinas, suja de graxa, e deixa bem claro para ele e outros que chegam no local que é ela quem manda ali. Desde sua última aparição no flashback em que ganha dinheiro no jogo, torna-se evidente que Keane ascendeu socialmente a alguma posição de poder, ainda que dentro do âmbito do crime. A iniciativa é apoiada por seu companheiro Frenchy (Mel Ferrer), um velho pistoleiro – ainda que o ator fosse mais novo do que Arthur Kennedy, com 32 anos na época – que, na verdade, foi o responsável pelo dinheiro ganho por Keane no jogo: havia um pedal no piso que determinava onde a roleta iria parar. Todo o rancho que a mulher pensa comandar, portanto, para Frenchy, não passa de uma casinha de bonecas, um presente que lhe deu para ela poder brincar, assim como um perfume que arrisca a vida para lhe presentear em dado momento. No final do filme, quando Keane ameaça ir embora, abandonar o rancho, Frenchy ameaça matá-la, dando a entender que se não pode tê-la, ninguém terá – ela pode até ser dona do rancho, mas ele é seu dono.

Há um paralelo interessante entre as relações de Vern e Beth e de Frenchy e Keane. Ambos os homens compram presentes para suas companheiras, mas enquanto o broche presenteado por Vern é quase um signo do recato de sua noiva, o perfume que Frenchy roubou para presentear Keane sinaliza o oposto, trata-se de um item que atrai outros homens, que participa do jogo de sedução. Mas ambos os homens, afinal, acreditam obter alguma forma de posse sobre suas mulheres: da mesma forma que Frenchy irá cobrar Keane por isso quando sente ciúmes, toda a jornada de Vern é motivada por lhe haverem tirado aquilo que era seu – ou que estava prestes a ser, uma vez que ainda não tinham de fato se casado, o broche também assegurava esse comprometimento.

Na noite seguinte a que Vern chega no rancho, vemos a outra faceta de Keane, sua “versão feminina”, cantando como em seus dias de cabaré, com um vestido luxuoso e joias; inclusive, como é revelado no meio de sua apresentação, quando retira a echarpe que encobria seu ombro, com o broche que Vern presenteou Beth no início do filme. A cena que até então parecia inocente, até mesmo sedutora para Vern, cada vez mais absorvido pela performance de Keane, é maculada. É provavelmente neste momento que o protagonista decide ser moralmente aceitável enganar Keane e seduzi-la para conseguir respostas. Esta é, talvez, a maior inversão na política de gênero do filme, mais do que a diferença de idade entre os dois, que não é aparente senão pelos diálogos, o fato de ser Vern que engana e seduz Keane. Também esta inversão, no entanto, cai por terra; é estranho, pouco crível, que uma personagem interpretada por Dietrich se apaixonaria por um interpretado por Arthur Kennedy, um ator de papéis secundários, pouco memorável.

Em sua jornada por vingança, a bússola moral de Vern se torna instável. Ainda que sua motivação inicial pareça justa, ou no mínimo compreensível, aquilo que faz para obtê-la é no mínimo questionável: mata um homem no caminho, destrói um bar, foge da cadeia, confraterniza com bandidos da pior estirpe, seduz e engana Keane, aprende a atirar com Frenchy, participa de um roubo de banco e pretende matar Baldy Gunder. É até mesmo curioso que após tudo isso o protagonista continue julgando Keane pela administração do rancho Chuck-a-luck e se recuse a atirar em Gunder sem uma reação por parte do homem, mas afinal qualquer tipo de moral parece sujeita a questionamento no Velho Oeste, especialmente neste de Rancho Notorious.

Como resultado, nossa empatia está com Altar Keane. A personagem de Dietrich se destaca do resto não apenas pelo seu estrelato, mas ela é, ao fim, a única personagem humana do filme, a única que parece refletir, ponderar, hesitar sobre sua índole, sobre suas próprias ações, enquanto os homens – pois são todos homens, à exceção de Beth Forbes, assassinada antes de ser qualquer coisa além da noiva prometida – simplesmente agem por instinto, são movidos por raiva e desejo. Como tal, em meio a essa história de “raiva, assassinato e vingança”, é evidente que Keane morreria no final, sacrificando-se por Frenchy tragicamente – ela leva um tiro no mesmo lugar onde o broche de Beth havia sido arrancado de seu vestido, em mais um paralelo entre as duas. Vern, então, perde uma segunda mulher, menos pura, menos inocente, que talvez nem tenha amado, mas ainda assim ela morre em seus braços.

Esse é o resultado final de sua vingança, não tanto a morte de seu inimigo, que se encontra caído em meio aos outros cadáveres após o tiroteio final. Resta de toda a sua jornada não a sensação de dever cumprido do herói, mas o amargor característico que nos lembra de termos assistido um filme de Fritz Lang. O plano final mostra brevemente Vern e Frenchy, os dois homens sobreviventes, em seus cavalos indo em direção à paisagem no fundo, mas a música encerra qualquer perspectiva de continuidade desta jornada: “Os dois homens deixaram Chuck-a-luck / E a morte os seguiu no caminho / Pois eles morreram aquele dia, assim as lendas contam / Com armas vazias lutaram e caíram / E assim termina o conto de raiva, assassinato e vingança”.

1 O título do filme originalmente seria The Legend of Chuck-a-Luck, como é o título da música principal, mas Howard Hughes, que na época controlava a RKO, achou que o nome não seria compreendido pelo público estrangeiro e alteraram para Rancho Notorious. Em sua crítica do filme, João Bénard da Costa comenta o caso e acrescenta que “Lang comentou, depois, ironicamente, se estes perceberiam melhor Rancho Notorious.” Disponível na coletânea “As folhas da cinemateca – Fritz Lang” e transcrito aqui: https://letterboxd.com/notbenard/film/rancho-notorious/.

Bela e bandida
(Montana Belle, Allan Dwan, 1952)
por Lucas Bueno

Montana Belle, filme tardio do prolífico Allan Dwan, diretor desde os anos 1910 (como André Bazin disse a respeito do western, “suas origens não se confundem com as do próprio cinema?”), coloca na ribalta Jane Russell – ela é a força motriz absoluta do filme, mas entre um Sternberg (Macao, 1952) e um Hawks (Gentlemen Prefer Blondes, 1953), essa performance acabou por não receber a devida atenção.

Belle Starr, livremente inspirada em uma bandida real e nas ficções que surgiram a seu respeito, é introduzida no início do filme de maneira muito simples – a câmera não busca enaltecê-la. Não há um travelling expressivo como em Stagecoach (John Ford, 1939), na apresentação icônica de John Wayne. No lugar, há planos conjuntos e médios de Belle ao lado dos foras da lei que a salvaram de uma morte certa. É uma personagem subestimada em seu meio, uma mulher de passado duvidoso e sombrio, e pela qual os bandidos que a resgataram podem brigar violentamente, enciumados.

Ao longo do filme, porém, sua influência sobre os demais personagens da trama vai se revelando mais forte e decisiva, e sua presença passa a ser a cada cena maior e mais central. Se nos westerns há o conflito permanente entre a lei e o crime (e as diferenças entre os bandidos e os agentes da ordem vão ficando cada vez mais turvas e os lugares comuns dos atores sociais do oeste vão sendo subvertidos), a Belle Starr de Jane Russell chega para desestabilizar por completo os grupos sociais que compõem o clássico universo do gênero. A caterva de bandidos liderada pelos irmãos Dalton é rachada ao meio e a própria Belle, recém-acolhida na gangue, emerge como líder da facção dissidente. Ao tentar chegar primeiro a um tesouro de milhares de dólares, o bando de Belle Starr acaba se infiltrando em um saloon mantido por um inexpressivo e cansado George Brent, por sua vez decidido a capturar os irmãos Dalton. A beleza estonteante de Jane Russell faz com que o coração dele amoleça – sua prioridade agora é a bela bandida, pouco importam os crimes passados e futuros.

Uma característica marcante da Belle Starr de Russell é sua versatilidade dentro da lógica do mundo no qual habita. No início ela se disfarça de homem durante um roubo, com o já estabelecido e icônico visual andrógino de paletó e calças já prenunciando Joan Crawford em Johnny Guitar, de Nicholas Ray. Depois, quando se torna sócia (sob um pseudônimo) do saloon de George Brent com o objetivo de roubá-lo, ela se transforma subitamente em uma encantadora vedete de cabelo louro e vestes azuis como que entre elegantes e extravagantes, com direito a dois números musicais (!) que solidificam a personagem como figura que controla os rumos do próprio filme. Ela rouba a atenção para si, e isso se manifesta na própria estrutura de Montana Belle, digna de nota.

Aos vinte minutos, há uma grande e impressionante cena de perseguição a cavalo envolvendo Belle, a única no filme. Tendo superado esse perigo mortal e comum aos heróis e vilões do western desde sua concepção, Belle parte para sua aventura infiltrada no saloon. As mudanças de cenário, ritmo e foco narrativo indicam que o que importa aqui não é mais a ação, mas o jogo de relações entre cada personagem e Belle (sempre no centro de tudo). Ao final, o confronto armado tem muito menos destaque do que a redenção de Belle Starr junto de seu par nada à altura. Bob Dalton, o irmão mais obcecado por Belle, e Mac, dissidente da gangue e aliado da moça na maior parte do filme (e obviamente também apaixonado por ela), têm seu trágico fim resolvido da maneira mais seca e pouco lisonjeira possível – eles estão de costas para a câmera e longe dela quando caem no chão durante o rápido clímax. O mesmo ocorre com o desconfiado índigena Ringo, cujo rosto quase não se vê durante o tiroteio. Belle começa subestimada e ao longo do tempo toma controle completo do filme, fazendo com que nada mais importe a não ser sua redenção melancólica.

A mise en scène de Dwan, mais sutil, utiliza closes de maneira econômica e em momentos cirúrgicos, como na cena em que George Brent descobre, por meio de uma troca de olhares, que a mocinha que está jogando em seu saloon é a mesma figura que roubou o estabelecimento anteriormente. Esse momento de troca de olhares, no qual uma compenetrada Belle Starr cobre seu rosto com as mãos à semelhança de sua bandana de bandida, fica marcado como sendo o mais próximo que Allan Dwan chega de seus personagens com a câmera no filme. Um momento significativo e memorável. Outros elementos do filme chamam a atenção, como o cômico mas importante papel de Andy Devine, figura conhecida dos westerns, que traz uma leveza bem-vinda. O processo de cor pelo qual a película passou, que confere às imagens um tom desbotado já descrito por muitos outros, também auxilia na identidade visual distinta do filme. Completamente subestimado e muito feliz na exaltação gradual de uma Jane Russell versátil, no seu auge, Montana Belle utiliza de sutilezas na linguagem e de liberdade na estrutura para criar um western notável, muitas vezes por motivos inesperados.

A renegada
(Woman They Almost Lynched, Allan Dwan, 1953)
por Paulo Martins Filho

Allan Dwan é conhecido por ter sido um dos mais prolíficos cineastas da história. Segundo a lenda, realizou mais de mil filmes: isso somente foi possível pela maior parte da produção de Allan Dwan ser composta de one-reelers, filmes de somente um rolo e rodados em uma semana durante os primórdios de Hollywood. O gênero que o iniciou no cinema e o acompanhou até o fim de sua carreira é, justamente, o faroeste. Além desses primeiros filmes de ação (eram compostos majoritariamente em torno das cenas de perseguição), Dwan compôs uma série de faroestes de baixo orçamento, mantendo a mesma lógica de efetividade e rapidez que tinha quando começou a fazer os tais one-reelers. Dwan, através da prática, desenvolveu seu método de trabalho baseado numa economia extrema: utilizava a menor quantidade de dinheiro possível e fazia tudo da maneira mais rápida (assim como John Ford, que chegou a trabalhar para Dwan na Universal, Dwan tentava liquidar os planos em somente um take). A postura de Dwan interferiu diretamente na estética de seus filmes, como é óbvio. Assim como muitos dos diretores do início de Hollywood, Dwan se colocava como um “fazedor de filmes”, em que o papel do diretor seria equivalente ao papel de um operário. Por conta disso, aceitava a maior parte dos projetos que lhe eram oferecidos, o que faz com que sua obra seja uma das mais diversas e heterogêneas do cinema. Porém, como já dito, o faroeste manteve-se constante até os anos finais da carreira do diretor. Dwan era um profundo conhecedor do gênero e, em 1953, decidiu comentar o faroeste através de um filme. Criou uma “paródia” (é assim que classifica o filme na entrevista concedida a Peter Bogdanovich) chamada Woman They Almost Lynched (no Brasil conhecida como A renegada).

A paródia é, por si só, um gênero próprio, se apropriando da forma daquilo que comenta. Há paródias que acabam ocupando o lugar das obras mais “elevadas”, tornando-se mais famosas do que aquilo que comentavam: é o caso, por exemplo, de Dom Quixote, uma paródia dos livros de cavalaria que é, nos dias de hoje, o livro do gênero mais conhecido de todos os tempos. Apesar de Woman They Almost Lynched não ser o faroeste mais conhecido (muito pelo contrário), nesse filme Dwan organiza um comentário afiadíssimo aos faroestes, principalmente por alternar constantemente os papéis de gênero do filme: quem domina a ação do filme são as mulheres, coisa aparentemente estranha aos faroestes.

A história do filme ocorre em Border City, uma cidade localizada na fronteira do Missouri (yankee) e do Arkansas (sulista); Por conta disso, a atual prefeita Delilah Courtney (interpretada pela fantástica Nina Varela), para evitar conflitos, decide instaurar na cidade a neutralidade absoluta na guerra: quem declarar-se como sendo de algum lado nas cercanias da cidade sofrerá a punição máxima, ou seja, será enforcado. Acompanhamos uma jovem chamada Sally Maris (Joan Leslie) chegando na cidade em busca do seu irmão, e no meio do caminho ela é feita refém pelo bando de foras-da-lei de Charles Quantrill (Brian Donlevy) e sua esposa, Kate Quantrill (Audrey Totter). Ao chegar na cidade, Sally descobre que seu irmão Bill Maris (Reed Hadley) é dono de um saloon e isso a frustra, pois acreditava piamente em sua decência. Além disso, descobrimos que Kate Quantrill trabalhava no saloon e era a antiga noiva de Bill, tendo fugido com Charles e tornado-se sua esposa. Após Kate provocar Bill dedicando-lhe uma canção, o homem é morto pelo seu próprio amigo, Lance Horton (John Lund), pois ameaçava tirar a vida da mulher. Inicialmente reticente, Sally decide tomar conta do saloon após a morte de seu irmão, abandonando a vida de menina e tornando-se a proprietária “do único bar da cidade que presta”. Sally acredita que Kate fora a responsável pela morte do irmão ao provocá-lo, e por isso a tensão entre as duas mulheres é gigante. O filme gira em torno desse conflito: a mulher boa (Sally, que deixou a decência de lado para se tornar dona do saloon) contra a mulher má (Kate, que deixou a decência de lado para se tornar uma fora-da-lei). Ao longo do filme, Kate acaba por se apaixonar por Lance, o homem que matou o seu irmão, deixando tudo ainda mais confuso. Após brigarem no saloon depois de Kate ameaçar cantar uma canção sulista (e, dessa maneira, acabar com a paz do lugar), o estopim da disputa entre Sally e Kate se dá num tiroteio. Quem ganha é Sally, que acaba ferindo a mão de Kate. Num determinado momento do filme, por algum motivo que é misterioso até mesmo para as próprias personagens, Sally acaba por impedir a execução de Kate, escondendo-a dos militares yankees em seu bar. Para não ser identificada, Kate abandona sua arma, seu coldre e seu chapéu de cowboy e veste-se como uma das mulheres que trabalham no saloon. Ou seja: Kate fantasia-se usando a roupa de seu passado, e para escapar do enforcamento deve voltar a ser a mulher que era antes. Mais tarde, para salvar a vida de seu amado Lance (um sulista) das mãos dos militares yankees, Sally arrisca sua vida e fica à beira da morte. Porém, dessa vez, é salva por Kate, que revela sua identidade e impede o enforcamento de Sally. Com o fim desse conflito entre as duas, é a Guerra Civil que acaba: finalmente todo o território dos Estados Unidos é neutro, e não só Border City.

Como ficou claro nesse passeio pela história do filme, temos uma série de conflitos, confusões, trocas de identidade… Até mesmo os papéis de protagonismo e antagonismo são confundidos: tanto Sally quanto Kate quase são mortas ao longo do filme pela lei de enforcamento de Border City, tanto Kate quanto Sally são a “woman they almost lynched”. O conflito entre as duas termina com uma salvando a vida da outra, deixando de lado qualquer orgulho ou vingança. Essa salvação se dá, inicialmente, através da atitude de Sally de esconder Kate em seu saloon, sem motivo nenhum, e esse mistério continua até o fim do filme. Quando a mulher “do bem” decide salvar a mulher “do mau”, esses papéis são obliterados, ao ponto de no final do filme não sabermos a qual das duas mulheres o título se referencia. O filme poderia chamar-se Women They Almost Lynched, mas isso acabaria com toda a graça dessa confusão de papéis: tanto Sally quanto Kate acabam, dessa maneira, tornando-se os dois lados da mesma moeda, o conflito inicial se dissipa para dar lugar a uma parceria incrível entre duas mulheres que passaram o filme todo uma contra a outra. Se isso ficasse claro a partir de um endereçamento mútuo no título do filme, essa confusão não existiria. Dwan, na mesma entrevista a Bogdanovich, afirma que “a audiência deve trabalhar. Devemos dá-la a sugestão de uma emoção e deixar que a interpretem por ela mesma (…)”. É a partir dessa sugestão do título que as personagens principais do filme, inicialmente antagonistas, passam a se colocar como parceiras, como a mesma mulher que quase lincharam.

Em conjunto a essa maravilhosa confusão na caracterização das duas personagens principais, podemos pensar também no fato da história do filme ocorrer em Border City, no limite entre dois lugares inimigos. O filme se situa tanto ao norte quanto ao sul, na linha tênue que separa os malvados dos bonzinhos.

A neutralidade da cidade é o que faz com que haja espiões sulistas e yankees, é o que ameaça as duas mulheres e também é aquilo que acaba por salvá-las, de certa maneira. Border City, por se tratar do limite entre dois estados, serve como uma imagem impecável da própria postura das personagens ao longo do filme: as pessoas são o que parecem ser mas também não o são, como bem podemos ver na personagem de Kate: fica muito bem de fora-da-lei (na verdade, cumpre esse papel como ninguém), mas é impossível não nos encantarmos por sua voz e sua presença nos dois esplendorosos números musicais do filme. Kate é uma cantora sedutora e uma assassina implacável ao mesmo tempo, fica no limite entre as duas coisas, na fronteira entre uma e outra. Sally, por sua vez, é de início uma inocente e ingênua e, mesmo após ser “corrompida” por Border City e tornar-se dona do saloon, permanece com a mesma integridade com a qual chega na cidade. Tanto Kate quanto Sally parecem, ao mesmo tempo, abandonar o seu passado e retomá-lo constantemente, criando uma consonância absurda entre aquilo que são, aquilo que eram e aquilo que aparentam ser.

Johnny Guitar
(Johnny Guitar, Nicholas Ray, 1954)

por Pedro Serpa 

Nicholas Ray faz parte da geração que surgiu no cinema americano após a Segunda Guerra Mundial. Junto dele, estão nomes como Samuel Fuller e Joseph Losey. Pode-se pensar essa geração como sendo aquela que, simultaneamente, manteve viva a chama da primeira Hollywood clássica de Hitchcock, Ford e Hawks e trouxe um ar de modernidade com influências do teatro brechtiano (Ray estudou teatro na Europa na década de 1930). É possível até mesmo dizer que foi essa geração que fez a ponte entre o cinema clássico e o moderno, sendo uma espécie de embrião dos novos cinemas que surgiram na Europa na virada da década de 1950 para 1960, em especial a nouvelle vague francesa, que também buscava conciliar o cinema clássico ao moderno, sendo Acossado o principal marco dessa ideia.

Ray inicia sua trajetória como diretor com filmes que podem ser rotulados como noir (quando, na verdade, vão muito além), com destaque para Amarga esperança (1948), uma das maiores estreias de um diretor da história do cinema, e No silêncio da noite (1950), melhor performance de Humphrey Bogart e um dos mais dolorosos filmes já feitos. Nesse primeiro movimento do cinema de Ray, que perfaz os anos de 1948 até 1952, há uma primazia da realidade. Com isso, busca-se dizer que os filmes recusam algumas convenções do cinema hollywoodiano que buscavam sempre manter os filmes no campo do espetáculo e do entretenimento. Pois bem, o espectador de Amarga esperança muito possivelmente deixou a sala de cinema mais deprimido do que entrou, porque no cinema feito por Ray inexiste a mão que afaga a cabeça do espectador nos momentos de desconforto. Pelo contrário, Nicholas Ray faz dos momentos de desconforto um dos pontos essenciais do seu cinema e mergulha neles de cabeça.

Com Cinzas que queimam (1951), Ray abre um portal para encontrar uma outra faceta do seu cinema. No filme, um policial violento (Robert Ryan) é transferido, como forma de punição pelo seu descontrole, para uma pequena cidade nas montanhas onde deve resolver um crime. Lá, encontra uma mulher cega interpretada por Ida Lupino, por quem passa a sentir afeto, e o resto é história. O primeiro momento do filme engloba justamente a fase 1948-1952 de Ray: filme policial urbano de personagens violentos cuja raiva os corrói internamente e, em razão disso, desejam conter sua fúria. A partir do momento em que vai para as montanhas, o filme, de certo modo, se transforma. A realidade não é mais tão bruta, sua representação torna-se mais plástica. É nesse segundo movimento do cinema de Nicholas Ray que se encontra Johnny Guitar (1954).

Em um primeiro momento, as diferenças entre Johnny Guitar e os filmes anteriores parecem gritantes, a começar pela evidente saturada coloração. Contudo, em uma análise mais profunda, percebe-se que não há uma ruptura de fato entre aquilo que foi chamado de primeiro e segundo movimento. O essencial a Ray permanece o mesmo. A força irreprimível da paixão, um dos pontos centrais do filme, também o é em Amarga esperança. O que ocorreu não foi de qualquer modo uma mudança de curso, mas sim de forma.

Johnny Guitar, para começar, não possui qualquer compromisso com a realidade. A cor – que, em tese, aproximaria os filmes do mundo real – é evidentemente utilizada para afastar o filme da veracidade. Não só a cor, mas as vestimentas e os cenários também não nos permitem esquecer que se trata de um filme. Caso isso possa parecer um desapreço é porque onde outros enxergam vulgaridade, Nicholas Ray encontra a justa medida entre o absurdo e o sutil.

Há uma cena, em particular, que ilustra tanto uma certa mudança no cinema de Ray – de mais para menos contido – quanto o absurdismo do filme. Johnny (Sterling Hayden) é intimidado por Dancin’ Kid e seus comparsas a mostrar seus dotes com o violão. Começa, então, a tocar uma música de ritmo rápido. Ao som da música, Dancin’ Kid puxa Emma (Mercedes McCambridge), mulher que rejeita sua feminilidade, e dança com ela. A cena, que para alguns pode parecer ridícula e fora de lugar, na verdade traz para o primeiro plano algo que estava implícito – a saber, o desconforto de Emma por sentir-se atraída por Dancin’ Kid – e o mostra, não explica. Essa espécie de não-naturalismo nas ações dos personagens também estará presente em Juventude transviada (1955) e Delírio de loucura (1956).

Ainda que jamais rejeite a forma do cinema, é notável que a experiência teatral de Ray muito o auxilia aqui. A primeira metade do filme passa-se quase que inteiramente no saloon de Vienna (Joan Crawford) num ritmo impressionante, ainda que estejamos confinados em um espaço limitado, situação incomum para um western, em que justamente brilham mais as paisagens infinitas do oeste americano. Nessa longa sequência, estabelece-se de maneira brilhante as relações entre os personagens, bem como são reveladas parcelas de seus passados. Quem nos guia até esse saloon é Johnny Logan/Guitar e é por vermos a história sob sua ótica (ele, assim como nós, não sabe o que houve entre Emma, Vienna e Dancin’ Kid) que o título carrega o seu nome. Ele não é o protagonista. Esta é, sem dúvida, Vienna. Johnny – e nós, por conseguinte – entra na história in media res.

O filme é todo construído em cima de elipses que jamais são completamente explicadas. Muito de Johnny Guitar é somente sugerido e é daí que surge sua grandiosidade. Houve um passado feliz entre Johnny e Vienna e, ao invés de um flashback explicativo, devemos assistir com os olhos marejados a conversa entre os dois na madrugada sobre aquilo que poderia ter sido e não foi. O que ocorrerá durante o resto da projeção é justamente a luta dos dois contra todos para viver esse sonho há tanto tempo prometido. Nessa luta, o cinema encontra o ápice da representação do pathos, seja no sentido positivo ou negativo da palavra, posto que a antagonista Emma é, do começo ao fim, carregada pelas emoções, enquanto Vienna, a princípio racional, precisa aprender a novamente aceitar o mergulho nas emoções sem, contudo, contaminar-se com o ódio direcionado a ela por Emma e seu bando. E é através do amor reavivado por Johnny que ela o faz. Essa jornada emocional culmina na valente caminhada final de Johnny e Vienna através do bando de Emma, o olhar de arrependimento que o personagem de Ward Bond dirige ao casal e o banho redentor na queda d’água seguido do beijo nupcial. Diante de algumas belezas ficamos atônitos e devemos nos contentar em admirar. Johnny Guitar é uma delas.

Montana, terra do ódio
(Cattle Queen of Montana, Allan Dwan, 1954)

por Tomás Farias

Em seu prefácio ao livro O western ou o cinema americano por excelência, de Jean Louis Rieupeyrout, André Bazin diz ser “…fácil dizer que o western ‘é o cinema por excelência’, porque o cinema é movimento. É verdade que a cavalgada e o tiroteio são os atributos normais dele. Mas, então, o western seria tão-somente uma variedade entre outras do filme de aventura.” As primeiras imagens de Cattle Queen of Montana, que mostram um rebanho sendo conduzido pela cavalgada, portanto, já o designam enquanto western, enquanto cinema. Já estabelecem aquilo que define um filme enquanto filme em sua lógica própria. Sim, estas, como as outras que se seguem, são imagens cuja descrição simplesmente do que elas apresentam poderiam remeter a inúmeros outros filmes do gênero. A singularidade está na dinâmica imposta a elas, em como Allan Dwan as organiza criando ritmo: na estabilidade trágica alcançada por uma calmaria postural diante de um mundo frágil, efêmero.

Menciono os planos de condução do gado que abrem o filme porque o estilo da epopeia submisso ao rigor formal de Dwan encontra sua força expressiva em sequências dessa natureza, introduzidas nos momentos explosivos da narrativa e nos momentos que se interpõem entre eles, nos momentos de união, de conexão e de estranhamento entre os personagens. Há nesse rigor uma recusa por planos impositivos, a escolha pela abrangência, espacial, sim, mas de sentido, ao enquadrar os atores, pela ambiguidade. O que faz com que esses momentos se misturem, se dissolvam entre si e formem nessa dissolução uma unidade, jamais pasteurizada, arbitrária.

A naturalidade em que a narrativa vai se descobrindo a cada cena revela algo muito particular em seu ritmo, uma relação dialética de continuidade e intermitência. Cada plano soa perfeitamente localizado no espaço e tempo diegéticos em um efeito de absorção destes, detido, não completamente, por outro plano, uma outra presença, uma ameaça, o perigo de qualquer natureza, criando clima, acrescentando camadas de sentido, sobretudo produzindo o efeito rítmico que permite ao filme respirar: sua fluência implica a imersão no tempo presente, assaltado, interrompido, penetrado por um novo tempo presente. O absoluto controle dramático de Dwan naturalmente se vale dessa dinâmica para criar espaços, nuances, sugerir a presença dos tantos elementos que naturalmente estão ali.

Elementos que naturalmente estão ali escondidos, que se manifestam nas entrelinhas de outros elementos, outras presenças. Há uma serenidade que atravessa as disputas, a violência, a busca por um lar, por se estabelecer e pertencer a algum lugar, e se esconde nos rios, nas árvores, no movimento do gado, no som do rio e do vento chacoalhando as árvores e dos cascos dos cavalos e do gado, e das pessoas, nesses sons que se escondem na trilha sonora. É nesse esconder, reduzir, que Cattle Queen of Montana manifesta toda a sua pulsão de vida, na beleza do que não se revela, e justamente por isso se manifesta continuamente, o tempo todo.

O protagonismo feminino não poderia se impor de outra forma. A presença de Barbara Stanwyck e toda sua expressividade é reduzida a um mínimo, se isso significa concentração, concisão, se isso significa também se esconder e nunca se revelar completamente, se isso significa dizer que o filme, centrando-se nela, não se atreve a desvelar certa opacidade e mistério. É exatamente onde se faz a elegância de Allan Dwan, em um filme que tanto esconde, reduz, dissimula. O tom das atuações é contido e concêntrico, e de forma alguma menos expressivo. A leve instabilidade dos tons em Technicolor. A presentificação que mascara com ternura toda a vulnerabilidade e precariedade do estado das coisas naquele mundo.

Dragões da violência
(Forty Guns, Samuel Fuller, 1957)
por João Pedro Faro

O primeiro enfrentamento que cruza a projeção de Dragões da violência é de natureza rítmica: a lenta sombra de uma nuvem é atravessada por quarenta pistoleiros em marcha furiosa. Seus quarenta cavalos e quarenta armas estão subordinados à liderança mítica de Jessica Drummond (ou Barbara Stanwyck), uma das criaturas mais conformes de Fuller, mas ainda incapaz de permanecer sobre uma única égide interpretativa. Em sua jornada de deposição política causada pela sempre amaldiçoada paixão, o Cinemascope servirá as angulações necessárias para que os embates constantes entre os elementos de cena organizem a emoção, e para suportar que essa emoção esteja invariavelmente efervescente.

Na minoria de cineastas americanos capazes de vencer a batalha da autoria contra as formulações de estúdio, Fuller filma Dragões da violência com pouco tempo e pouco dinheiro, apoiado na vitória de sua subjetividade e suas obsessões. Seu ponto de partida é a delinquência juvenil, que cruza sua filmografia no final dos anos 50 dado o alcance de Nicholas Ray no pântano temático fulleriano (aqui em dose dupla, botando um tipo Vienna como irmã mais velha de um Jim Stark pistoleiro), mas o protagonismo de Barbara Stanwyck devora a subtrama de Brockie (John Ericson). O caçula encrenqueiro em pulsão de morte, mesmo decisivo nas violentas chaves narrativas, está condenado como um dos reflexos tortos do conflito central do longa: a disputa de poderes em similar estado de falência, na aurora de um período histórico que, não por acaso, reflete o descenso do gênero fílmico em que se insere.

Fuller, cineasta desestruturalista, se interessa por uma coesão que se dê no encontro das irreverências temáticas e narrativas com seu fluxo estilístico permanentemente imprevisível. São constantes flexões imaginativas que determinam sequências quase autocentradas em seu poder cênico, devotas a invenções moldadas pelas suas particulares necessidades sensoriais e semânticas, sendo o posicionamento do quadro o definidor radical do nível de deslocamento emotivo vivido pelos personagens em cena. Tudo vale à emoção desde que consiga alcançar a velocidade de sua jornada, e nisso temos tanto um plano sequência como o de Griff (Berry Sullivan) e seus irmãos atravessando toda a cidade para chegar ao correio (o maior dolly montado pela 20th Century Fox até então) quanto os entrecortes da cena de emboscada, onde um plano/contraplano de plongée/contraplongée parece pertencer a uma normalidade expressionista que só encontra um lugar ordinário em um filme irrefreavelmente experimental como os de Fuller.

Os quarenta bandidos do clã de Jessica Drummond podem ser percebidos como outra invenção narrativa de implicações formais. O Cinemascope, ferramenta de múltiplas possibilidades expansionistas, parece ideal para ser preenchido por esse bloco de dezenas de personagens que caminham em bando. Na abertura do filme, aparecem como esse rastro, biblicamente dividido ao meio, que atravessa a centralizada carroça de Sullivan, ocupando as extremidades do quadro extenso. Quando filmados à distância, como na primeira cena entre Jessica e seu irmão, formam essa grande fileira vivente que, ao mesmo tempo, demonstra a profundidade do quadro e desalinha sua geometria retangular. Na cena do jantar na casa de Jessica, mesmo que sirvam uma comicidade imediata pelo alinhamento de suas posturas nas cadeiras que cercam a enorme mesa da pistoleira, algo mais profundo se esclarece nos planos: Fuller filma seus rostos, a presença dos quarenta atores é sentida em um registro mais táctil, porém nunca individual. Eles existem como uma mesma força de trabalho (consequentemente, de subordinação) que está para servir à sua matriarca, e ocupam a tela em seu amontoado físico graças às proporções absurdas da ferramenta Cinemascope que, próxima ou distante, tende à expansão permanente. É só perceber como o volume humano dos moradores da cidade nunca se compara aos enquadramentos superpopulados pelos quarenta bandidos.

Claro que, para além da genialidade de sua performance, o poder de Barbara Stanwyck (ou Jessica Drummond) está na centralidade que opera dentro desses quadros expansivos. Seu uniforme preto e seu chicote, um figurino igualmente elegante e funesto, formulam sua silhueta inesquecível. Há uma qualidade literária no personagem que é bancada pelas diversas fisicalidades efervescidas em Stanwyck. Seu rosto é experiente, de rugas que aprofundam a expressão e localizam sua capacidade de permanecer soberana (a observar a inacreditável sequência do tornado, em que Stanwyck não usou dublê para repetir os diversos planos em que é arrastada pelo cavalo). Seu monólogo no celeiro, um momento de canalhices e sentimentalismos típicos, revela uma self-made woman da fronteira que, mesmo diante da derrocada de seu arquétipo e ciente da passagem do tempo que castiga a todos igualmente, é uma ideóloga de seu modelo imperial: “Never let go on anything”.

O romance com Griff, pistoleiro culpado e arrependido que deseja sepultar seus dias de matança, acaba sendo a complicação principal para Jessica por lhe servir como espelho, o mais terrível objeto de castigo. Não é que a paixão floresça pela inevitabilidade do amor, o inevitável é o reflexo que esclarece as complicações do presente. Nesse encontro de ritmos conflitantes, entre a pistoleira que não abre mão de poder de suas armas e o pistoleiro incapaz de se render aos velhos hábitos, o reflexo entre os dois inverte suas imagens, consequentemente invertendo suas posições. É só quando ele precisa matar que ela é capaz de aceitar o fim de seu reinado, nas desarticulações que acabam por conectar todas as irreverências do filme em resoluções suficientemente complicadas pela insaciável busca por conflitos.

Alguns outros romances mediam a relação entre os dois. Temos o relacionamento de Brockie com uma mexicana, resumido a uma cena em que o jovem esbofeteia o rosto da garota, e dois outros casos fatais: o subordinado de Jessica que se enforca logo após ser deposto e o casamento do irmão de Griff com uma gunsmith, rapidamente interrompido por uma bala. Essas duas sequências acontecem uma depois da outra, brevemente cortadas por uma cena bem-humorada na casa de banho e sucedidas por uma performance musical fúnebre. Nesses causos, temos tanto a intensificação do conflito central, expandido às bordas daqueles sentimentos, quanto exemplos operacionais de Fuller, onde abruptas variações tonais radicalizam estilisticamente efeitos simbólicos. A brusca mudança de tom é decisiva para os sentidos dramáticos e temáticos da projeção, é a trilha da imprevisibilidade que coloca os personagens em estado de ebulição.

Sendo a delinquência juvenil mediadora do romance entre velhos assassinos, nada mais literal do que o último confronto do filme colocar o caçula fazendo a irmã de refém contra seu amante. Em fins inevitáveis, os dois levam tiro de Griff, atendendo às suas necessidades: para Jessica, fica comprovado que ela conseguiu fazer o matador aposentado voltar a atirar; para o irmãozinho Brockie, Griff oferece o tão desejado sossego da morte. Ela sobrevive ao ataque, estrategicamente não-fatal, e a deposição da bala em seu corpo forma uma aliança que sugere o matrimônio.

No plano final, quando Stanwyck corre atrás da carroça de Griff (seu uniforme preto substituído pelo vestido branco), a rua deserta da cidade enquadrada pelo Cinemascope deixa seus protagonistas diminuírem em cena, fugindo do rastro que o clã de Jessica projetou em seus últimos dias de existência. Ainda somos lembrados dessa passagem para a eternidade quando o título do filme surge espectralmente para assombrar o vazio com o que não está mais ali. Ao invés de “THE END”, lemos na tela: “FORTY GUNS”.

Sorriso ao fim dos tiros
A pistoleira da Virginia (Il mio corpo per un poker, Lina Wertmüller e Piero Cristofani, 1968)
por Gabriel Carvalho

Ele tinha duas crianças”, comenta Belle Starr (Elsa Martinelli) em relação ao primeiro homem que matou, ao passo que narra a história de sua vida pregressa para Larry Blackie (George Eastman). Em conversa com o seu parceiro e também arquirrival de pôquer, a protagonista de A pistoleira de Virginia recorda-se do nome da primeira de suas vítimas: John Caster, que a fora-da-lei já conhecia há algum tempo, a ponto de saber que, além dos filhos que tinha, era xerife e era casado com uma pequena mulher loira de nariz arrebitado. “Mas eu precisei atirar nele”, conclui Belle Starr, argumentando que, senão, ele a teria capturado. Então, John Caster cai do cavalo, morre, enquanto a sua assassina galopa heroicamente em direção à paisagem florestada na qual, depois do corte para a cena seguinte, cuida da sua amiga indígena que conseguiu resgatar de um enforcamento. Não apenas, durante o flashback, Belle Starr ainda conta a Blackie de quando, mais tarde nessa cadeia de fatalidades, Jessica (Francesca Righini) precisou sujar as suas mãos para, do mesmo modo como a personagem de Martinelli a protegeu, impedir que a violência dos homens fosse aplicada sobre ela.

No entanto, por que, logo após ser enganada por Cole Harvey (Robert Woods), a protagonista de A pistoleira de Virginia se obriga a rastejar sorrateiramente ao seu encontro para reaver a arma que lhe foi surrupiada? Ora, a fim de impedir que a sua amiga fosse executada pelo tio da personagem de Elsa Martinelli, que queria casar a sobrinha à força, Belle Starr roubara antes de ser roubada. Porém, não há como eles escaparem da espiral que culmina nos dois rolando ladeira abaixo, em especial quando o contragolpe da protagonista, depois do de Cole, é respondido pela ameaça do estupro que também espreitara Jessica. Em suma, na obra de Lina Wertmüller e Piero Cristofani, creditados como Nathan Winch, as engrenagens do faroeste não são somente causa e consequência, e sim condição de existência para personagens que respondem à violência dos homens mediante à de mulheres tão castigadas quanto empoderadas pelos revólveres nos coldres, as disputas de olhares penetrantes, as frequentes enganações, os tiros iminentes e as retribuições em prol da honra contestada. Ou seja, se qualquer pessoa em face de Belle Starr é um potencial inimigo, a personagem transforma esse mesmo cinismo em armadura.

Assim sendo, desde o começo do longa-metragem, a protagonista de A pistoleira de Virginia encena com Larry Blackie a premissa de tensão constante do faroeste spaghetti, seja pelos close-ups no jogo de pôquer, seja pelo espelho no quarto que subentende o esquema malicioso da ladra. Contudo, embora Belle Starr não conheça o personagem de George Eastman de antemão, a fora-da-lei não age com menos desconfiança diante dele, em contrapartida à origem da mulher, na qual respondia com hostilidade apenas àqueles que estampavam alguns dos episódios mais traumáticos do seu passado. No fim das contas, Cole Harvey não só ensinou a pistoleira a cavalgar e a atirar, mas a roubar, da mesma maneira como, para não ser capturada, ela aprendeu a matar. Por isso, ao passo que Belle Starr ludibria o seu antigo tutor com o intuito de libertar sua amiga, posteriormente, a sucessão de traições assume uma automação pela qual pouco importa a Lina Wertmüller e Piero Cristofani a mesma fundamentação dramática do flashback. Pelo contrário, enquanto a personagem cuida de Jessica com ternura no passado, no presente a morte da amiga é uma nota de rodapé que nem convém ser destacada pela obra.

Por outro lado, não é por Belle Starr e Larry Blackie serem enquadrados por Lina Wertmüller e Piero Cristofani sempre da forma mais propícia para a construção de um duelo de caubói derradeiro entre eles, mas que nunca se consolida, que A pistoleira de Virginia se contente com a retroalimentação do gênero. “Se você não fosse você, e eu não fosse eu, talvez poderíamos ter tido uma vida diferente, juntos”, lamenta o homem interpretado por George Eastman à mulher com quem, no universo do faroeste spaghetti, ele não pode acompanhar sem uma pistola para se defender. Ainda assim, mesmo com um revólver apontado para o peito do seu oponente, a personagem de Elsa Martinelli cede sua boca a um beijo, assim como, mesmo que flashes de suas conturbadas relações anteriores com outros despontem nos planos e nos pensamentos, ela cede o restante do seu corpo ao toque masculino que nunca sentira antes. Entretanto, como uma pessoa que havia se dado o nome Belle, a despeito do seu de nascença, concilia sua declaração de individualidade com o fato de que o complemento Starr não foi dado por ela, mas por um de seus agressores, senão abraçando o fardo como indissociável do eu?

Pelo visto, por mais que, enquanto protagonista feminina de faroeste, a pistoleira de Virginia não represente revolução dentro do gênero, ao passo que não desmonta os códigos do spaghetti, o longa-metragem de Lina Wertmüller e Piero Cristofani não consente por inteiro à inércia determinista. Pelo contrário, os cineastas exigem tanto que a mulher traia Larry Blackie porque sim, pois é anti-heroína, quanto resgate-o porque sim, pois é heroína, com pouca ou nenhuma elaboração entre as cenas ao invés do encadeamento preciso de motivações no flashback. Ou seja, se a jornada da protagonista de A pistoleira de Virginia começa com ela assumindo-se mocinha de cinema de caubói, embora um homem tenha morrido para isso, a resolução do filme garante-lhe reencontrar as suas origens. Não à toa, em contrapartida às consequências hediondas das interações com Cole Harvey, que só cessam com sangue jorrado, o personagem de George Eastman permite que Belle Starr desfira nele o tapa no rosto que ela recebeu no início da obra. Se, novamente, um chapéu há de ser açoitado de uma cabeça pela fúria de um projétil, que o eco do tiro se encerre para que a imagem se transforme não em vingança, e sim em um sorriso.

Hannie Caulder – Desejo de vingança
(Hannie Caulder, Burt Kennedy, 1971)

por Ruy Gardnier

Hannie Caulder – Desejo de vingança não é um filme nascido de um processo natural de uma indústria consolidada. Muito pelo contrário: trata-se do primeiro western de uma companhia independente britânica especializada em cinema de horror, em sociedade com o produtor americano Patrick Curtis, à época casado com Raquel Welch. Um filme da Tigon querendo diversificar seu negócio a ponto de bancar 100% do orçamento, e o donos da Curtwel (Curt = Curtis e Wel = Welch) abdicando de qualquer salário para dar um papel de estatura à atriz e desassociá-la da imagem de gostosa de biquíni adquirida com Mil séculos antes de Cristo, de 1964. E aí vão e contratam um elenco principal inteiramente americano, Welch, o ídolo dos faroestes televisivos Robert Culp, e três character actors veteraníssimos do gênero, entre os quais os lendários Ernest Borgnine e Jack Elam. E, para completar, assinam com Burt Kennedy para dirigir.

Kennedy tem uma importância crucial para o faroeste como roteirista principal do ciclo Ranown de filmes dirigidos por Budd Boetticher e estrelados por Randolph Scott (1956-1960). Na década de 60, ele passa à direção e faz carreira no faroeste, tanto no cinema quanto na televisão, deixando ao menos um marcante: Uma cidade contra o xerife (Support Your Local Sheriff, 1969). Kennedy vai até Almeria, na Espanha, para filmar atores americanos em paisagens desérticas europeias que tentam parecer a zona fronteiriça entre os Estados Unidos e o México. Só por isso, o Hannie Caulder já tem seu interesse: um representante do faroeste clássico americano se aventurando a brincar de Sergio Corbucci ou Sergio Leone, tendo que lidar com os excessos do código e a intensificação da violência gráfica que o gênero pedia à época.

E pode-se dizer que o diretor foi bem sucedido em dosar esses dois mundos. A música é alta, mas ela só aparece em momentos selecionados. As cenas de câmera lenta – trata´se de um western pós-Peckinpah, naturalmente – têm estilo próprio, ritmo ralentado e efetivamente ajudam a detalhar as cenas em que estão contidas. E mesmo quando o grotesco e o humor vulgar parecem querer irromper, está lá a mão de Kennedy para mantê-los no cabresto. O resultado é um faroeste de fatura clássica em que volta e meia pululam alguns elementos do gênero em sua atualização 60s-70s. Salvo um elemento, inescapável porque é o centro do filme: Raquel Welch em sua beleza siderante zanzando de lá pra cá com um poncho, talhada como um ícone pop que não está nem além nem aquém do western.

Hannie Caulder começa com três bandidos atabalhoados. Depois de um primeiro assalto a banco sanguinolento e de um segundo estupidamente fracassado, eles fogem dos federais e vão parar no curral dos Caulder. Matam o proprietário a sangue frio, e quando adentram a casa, descobrem uma mulher linda. Um a um, os três estupram e espancam a esposa Caulder, e por fim atam fogo à casa. Da vida de algumas horas atrás, só restará o poncho, com o qual ela cobre sua nudez. O poncho, a partir daí, será a marca da mácula feita a ela, e a lembrança do que ela deve fazer: procurar os três e matá-los um a um.

Mas para isso é preciso um professor. Aí aparece Robert Culp, o caçador de recompensas sereno e filosófico que tenta convencê-la a desistir da ideia. Só depois de vê-la urrar num pesadelo em que ela rememora os três homens em cima dela, ele a aceita como pupila, e vai ao México visitar um amigo armeiro para que faça um revólver adequado para Hannie (aliás, Christopher Lee). Nesse processo de transmissão do saber, surge uma paixão, mas aparentemente os dois não sabem o que fazer com ela. A vida doméstica, espelhada na felicidade conjugal do armeiro com sua esposa e sua multidão de filhos, não é para nenhum dos dois: para ele por convicção, para ela talvez por fidelidade ao marido. Depois dos alvos imóveis, chegam os móveis, na pele de um bando que, sem muitas explicações, aparece para tomar a casa do armeiro. A iniciação se dá quando um bandido jovem chega por trás dela. Ela gira e atinge o inimigo com um tiro não fatal, e quando o revide está prestes a se consolidar, o mestre dá a última lição à aluna, enquanto transforma o inimigo em defunto: sempre dê o segundo tiro. A lição será útil no clímax do filme, em três duelos climáticos e verdadeiramente criados com a mise en scène de Hannie: é ela que está com o poder.

Ainda que tenha passagens formulaicas e uma ou outra bobagem narrativa, Hannie Caulder tem seu charme pela atmosfera criada pelo trio de homens bonançosos – Culp, Lee e Stephen Boyd, vivendo uma espécie de figura do destino, ou o anjo da guarda de Hannie, ou um fantasma-guia dos caçadores de recompensas – e pela construção da protagonista vivendo seu apocalipse de vingança, dez anos antes de Sedução e vingança (1981) de Abel Ferrara, um filme claramente aproximável desse aqui, ainda de perturbação moral bem mais complexa. Mas aqui não é o tatibitate do happy end: Hannie assume o papel que fora de seu mestre, ainda que saiba que isso a coloca definitivamente fora de qualquer outra possibilidade de universo doméstico. Mas pouco importa: ela aceita ser a pária desde que seja para poder matar assassinos de maridos e estupradores de mulheres.

Culpa, desejo de vingança e redenção no faroeste de Sam Raimi
Rápida e mortal (The Quick and the Dead, Sam Raimi, 1995)

por Beatriz Saldanha

Rápida e mortal tem lugar no velho oeste, em 1881, quando a misteriosa pistoleira Ellen, “A Dama” (Sharon Stone), chega a Redemption, uma cidade controlada por John Herod (Gene Hackman), homem opressor que constrói sua fortuna extorquindo a população local em troca de uma suposta proteção. Na estalagem, Herod anuncia um torneio com duelos diários que só terminam quando um dos competidores desistir ou for morto – regra que ele altera arbitrariamente no decorrer da competição. O prêmio final: 123 mil dólares. Logo começam a aparecer pistoleiros de todos os cantos, ostentando suas medalhas de quem matou mais – há um que coleciona ases de baralho para cada pessoa que executou, outro exibe orgulhosamente as cicatrizes conquistadas em confrontos. Ainda que assustada com a brutalidade dos competidores, Ellen acaba colocando seu nome entre os deles e, quando os embates se iniciam, a vilania de Herod fica mais evidente a cada duelo.

Tido pelos fãs de horror como referência por sua clássica e inventiva trilogia Uma noite alucinante e pelos fãs de quadrinhos por sua contribuição ao universo cinematográfico do Homem-Aranha, Sam Raimi nunca foi associado ao gênero do faroeste; na verdade, Rápida e mortal sempre foi visto como uma espécie de corpo estranho em sua filmografia. O roteiro foi escrito por Simon Moore em homenagem à trilogia dos dólares dirigida por Sergio Leone e estrelada por Clint Eastwood – evidente inspiração para a personagem de Sharon Stone – e a entrada de Raimi no projeto teria sido endossada pela atriz e coprodutora, que apreciava as habilidades técnicas e criativas de Raimi em sua trilogia de horror.

Pela proposta de repensar o papel da mulher no gênero, Rápida e mortal é um faroeste revisionista. Quando Ellen chega a Redemption e pede uma acomodação ao estalajadeiro, ele sequer olha em seu rosto e, só pela voz, deduz que ela é uma prostituta, destino incontornável de todas as mulheres e meninas que vivem ali. Ofendida com o comentário, Ellen revida e, o tempo todo, é obrigada a provar suas capacidades, e que entrou na competição de igual para igual com os homens, já que segundo Herod “as mulheres não sabem atirar”. Diferente do restante das personagens femininas ao seu redor, ela não se conforma com a dominação masculina e reage ao testemunhar as jovens locais sendo abusadas e aliciadas por homens adultos no mundo da prostituição. Ellen é discreta, observadora, crítica e justa. Sua fraqueza é a razão pela qual ela foi a Redemption: na busca por vingança e redenção, a fim de aliviar uma culpa que a assombra. John Herod foi o principal adversário de seu pai, um xerife, quando ela ainda era criança. Um desafio traiçoeiro proposto por ele acabou resultando na morte de seu pai, de quem Ellen preserva o distintivo consigo para se lembrar da razão de estar ali. Cort (Russell Crowe) é um dos únicos outros personagens com alguma complexidade em Rápida e mortal. Hoje um reverendo, teve um passado como fora-da-lei ao lado de Herod, por isso é rejeitado e desprezado pela população. Ele tenta desviar da tentação das armas, mas acaba seduzido pelo apelo delas em um momento de ambiguidade moral.

O elenco impressiona: a começar pela protagonista Sharon Stone e pelo antagonista, Gene Hackman, mas também pelos atores secundários, Russell Crowe, Leonardo DiCaprio – que estava em evidência por seu papel em Gilbert Grape: Aprendiz de sonhador, cuja atuação lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante –, Lance Henriksen, Keith David, Gary Sinise e Pat Hingle. Quem se destaca em seu papel de vilão bidimensional é Gene Hackman, a representação do puro mal, um homem que não se apieda sequer do próprio filho. No que diz respeito à proposta feminista de Rápida e mortal, digamos que atinge um resultado meio satisfatório, conseguindo tocar em alguns temas sensíveis às mulheres, mas, na primeira oportunidade, não resiste a explorar imageticamente o corpo de Sharon Stone, um dos maiores símbolos sexuais da época.

O filme segue uma estrutura pouco comum dentro do gênero, focada na sequência de duelos, o que acentua o suspense a cada novo confronto, mas também confere uma certa leveza à narrativa, que não se propõe a aprofundar o background de cada personagem – com exceção de Ellen, cuja razão do trauma de infância conhecemos através de flashbacks fragmentados. Alguns recursos estilísticos reforçam o tom vivaz do filme, como uma sequência de zooms retroativos em um dos duelos mais emocionantes da competição. O resultado disso é um filme ágil e um tanto divertido, diferente de outros faroestes revisionistas daquele período, como Os imperdoáveis (1992); essas características são uma marca do diretor Sam Raimi que se evidencia independente do gênero com o qual está trabalhando. Rápida e mortal teve uma recepção morna e por anos esteve perdido num limbo, em busca de um público-alvo. Hoje o filme passa por uma merecida reavaliação e tem potencial para encontrar um espaço cativo entre os filmes cult.

O atalho
(Meek’s Cutoff, Kelly Reichardt, 2010)

por Anita Gonçalves

As paisagens imensas de prados, desertos e rochedos (…)
estão abertas a todas as possibilidades.

(André Bazin, 1953)¹

Em texto publicado como prefácio ao livro O Western ou o cinema americano por excelência, de Jean-Louis Rieupeyrout, André Bazin ressalta a negação dos “limites da tela” e a restituição da “plenitude do espaço”, pelo travelling e pela panorâmica, nos westerns americanos². De modo quase contrário a esse, opera Kelly Reichardt em Meek’s Cutoff (O atalho, 2010), seu faroeste a contrapelo, sobre o estado de constante trânsito ao qual se veem subjugadas três famílias pioneiras, perdidas no meio da travessia do deserto do Oregon ao serem conduzidas a um atalho pelo caçador de peles Stephen Meek, em 1845.

Aqui, Reichardt privilegia objetivamente o ponto de vista feminino – ou melhor, o olhar das figuras femininas do filme, com destaque à personagem de Michelle Williams. Pode-se pensar que a opção por filmar em 4:3 é uma maneira de referenciar e dialogar formalmente com o gênero e seus elementos “clássicos”, mas Reichardt certamente vai além. Em entrevista³, a diretora afirma que o recurso à proporção quadrada – que não poderia ser aqui mais intencional, em meio ao predomínio das imagens em formato alargado – é propriamente uma escolha formal que faz jus à visão limitada que as mulheres tinham por conta de suas toucas (os chamados poke bonnets), cujo formato de aba frontal, arredondada e projetada para além do rosto, acabava por inviabilizar a visão periférica e panorâmica, restringindo o olhar daquelas que as usassem.

A centralidade do ponto de vista feminino fica ainda mais evidente quando, em momentos onde alguma decisão deve ser tomada pelo grupo – isto é, pelos maridos e por Stephen Meek –, por exemplo, vemos, através de um plano aberto, os homens confabulando, longe dos olhos das esposas e da câmera, sem tampouco conseguirmos ouvir plenamente o que dizem – escutamos, se não apenas sussurros, palavras sobrepostas e cobertas pelos sons de ventania. A informação relativa à decisão nos chega da mesma maneira que chega às mulheres – através dos seus olhos e ouvidos, como que equiparados à captação da imagem e do som –, de tal forma que os espectadores e as personagens femininas são aqui portadores de experiências visuais e auditivas análogas. Enquanto os homens deliberam ao longe sobre os rumos a serem tomados, vemos de perto as mulheres que observam, tricotam – e assim como todos ali –, trabalham e caminham. Apesar de haver um momento em que essa configuração, inesperadamente, é desafiada – quando a personagem de Williams assume, em algum grau, as rédeas da situação, ao pegar a espingarda e apontá-la a Meek – todos parecem estar fadados à eterna caminhada, perambulando contra a própria vontade, com a promessa, mas praticamente sem indício de chegada no destino almejado – esse que seria, tomando as palavras de Bazin, a “ameba primitiva de uma civilização”⁴. As personagens singulares, construídas sob pretensões realistas e historicizantes, parecem oscilar entre a experiência coletiva da adversidade comum e a vivência pessoal, sendo esta segunda avultada pelo enfoque nas suas rotinas, no aspecto “menor”, intimista e ordinário presente neste “rumar ao oeste”.

De modo ao mesmo tempo contrário – em termos técnicos – e similar – em termos de efeito – ao Cinemascope, no sentido da vazão ao imprevisível e à maior falta de controle no interior do plano, como sugeriu Rivette⁵, Reichardt utiliza o extraplano, acentuado pela proporção quadrada da imagem e pela decorrente ausência do campo periférico. Aqui, enquanto todos os planos são construídos com enorme rigor, é o que está fora dele que nos arrasta para o mistério, para a inquietação, para o risco do acaso. O “confisco das margens”, como diz Rivette⁶, não impede aqui que o ar circule, mas conduz sua circulação para fora do campo – no som, por exemplo. Esse som que irrompe nas imagens também estimula a condição misteriosa para além das dimensões do quadro, sendo composto sobretudo por barulhos monótonos (que às vezes beiram o silêncio) da fauna pouco variada e do vento, bem como dos pés, das patas e das rodas que movimentam-se sobre o terreno árido – mas também das conversas noturnas, vozes que subsistem reluzentes em meio ao quase absoluto breu das imagens. O próprio final anti-teleológico não conclui nada, mas simplesmente reitera a incerteza que desde o início do filme, e ao longo de toda sua duração, impera.

A sensação de insegurança que paira sobre Meek’s Cutoff se manifesta narrativa e dramaticamente, como no caso da suspeita acerca das intenções e da índole do guia, tal como do surgimento, e da conseguinte captura violenta pelo grupo, do personagem do indígena Cayuse; contato que amplifica a situação de dúvida dada a incompreensão da língua que impossibilita a comunicação, a desconfiança e o temor por parte dos brancos. Carentes de água e de mantimentos (tensão que vai progressivamente se intensificando), as personagens se veem desorientadas e sem expectativas, enquanto caminham infindavelmente na região imensa e desértica da trilha de Oregon.

É a forma como Reichardt ordena o espaço do mundo na mise en scène, como pensa espacialmente e filma a locação, em contato com os corpos dos atores, dos animais e dos escassos objetos em cena, que torna perceptível esse estado vago de desorientação ao qual as personagens estão sujeitas. O caráter geográfico e bem circunscrito da locação, desse espaço concreto, identificável em um mapa ou na história dos Estados Unidos, é destituído pelo filme, que atribui um teor de completa indefinição ao local: historicamente e geograficamente bem delimitado, mas filmicamente difuso, fragmentado e labiríntico, sem fronteiras nítidas, sem início e sem fim. Essa impressão parece derivar do encontro paradoxal entre a proporção de tela, mais estreita, e a frequência de planos abertos, combinados à dimensão vasta e real do objeto-paisagem-espaço filmado.

Portanto, Reichardt, ao contrário de negar os limites da tela, os reitera, pensando justamente no olhar e na experiência sensível das mulheres em meio às condições retratadas no filme, enfatizando a materialidade e a historicidade desse ponto de vista. E, diferentemente de restituir a plenitude do espaço, Reichardt o transforma em espaço fílmico e cênico por excelência; limitado e fragmentado, sem nunca filmá-lo como se fossem partes de um todo bem definido, sequenciado e linear. Em Meek’s Cutoff, esse “todo” é desconhecido, pois o deserto é tão imenso que não pode ser plenamente apreendido, visto ou filmado, que não cabe no quadro condicionado pelo olhar feminino, que por sua vez está condicionado ao contorno daquelas toucas. Ficamos com a presença, o movimento e os gestos dos corpos exauridos diante da impassibilidade hostil do espaço e do escoamento do tempo (perceptíveis pelo estado cada vez mais desgastado das roupas e pelo humor cada vez mais atormentado das personagens), com o cotidiano da caminhada, com os fragmentos da paisagem e com o que existe – ou pode existir – fora da imagem; para além dos limites do plano e daquelas abas arredondadas.

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1 BAZIN, André. O Western ou o cinema americano por excelência. In: O que é o cinema?. Ubu Editora, 2018, p. 263.
2 Ibidem, p.266.
3 https://www.npr.org/2011/04/14/135206694/going-west-the-making-of-meeks-cutoff
4 BAZIN, André. “O Western ou o cinema americano por excelência”. In: O que é o cinema?. Ubu Editora, 2018, p.263.
5 “L’âge des metteurs en scène”, Cahiers du Cinéma, n. 31, janeiro de 1954.
6 Ibidem. 

Este dossiê acompanha a mostra Faroeste no feminino que a Cinemateca do MAM promove em abril de 2023.





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