Homenagem a Paul Vecchiali

por Luiz Fernando Coutinho

Requiem para uma mulher (Corps à coeur, 1979).

Os créditos iniciais de Mulheres, mulheres (1974) são compostos por retratos de Greta Garbo, Edwige Feuillère, Katharine Hepburn, Joan Crawford, Simone Simon, Norma Shearer, entre outras. Na primeira sequência do filme, Hélène Surgère e Sonia Saviange figuram em um inusitado jogo de cena: no apartamento em que vivem, em Paris, performam uma série de personagens e situações e “dirigem” uma à outra no processo. Enquanto isso, a câmera realiza um longo plano-sequência (aproximadamente 10 minutos) que lança mão de travellings laterais e zooms para percorrer o espaço exíguo dos cômodos e reeenquadrar as personagens.

Mulheres, mulheres é um filme cuja única verdade é o teatro. Teatro, entretanto, transposto ao cinema: o palco como um apartamento, a coxia como o fora de campo, o corpo das atrizes como matéria fílmica (percebam como, neste filme em preto-e-branco, uma sempre veste branco quando a outra veste preto). Como escreveu Pier Paolo Pasolini, um dos grandes admiradores do filme¹, trata-se “de duas atrizes de teatro cujo mito é cinematográfico”. As fotografias dos créditos iniciais estampam as paredes brancas do apartamento em Montparnasse e ocasionalmente surgem como inserts no decorrer das cenas. Hélène Surgère e Sonia Saviange falam de Claude Chabrol, Jacques Demy, Robert Bresson; sonham em tornar-se atrizes de cinema e ascender ao estrelismo.

Os primeiros minutos do filme de Paul Vecchiali nos instalam vertiginosamente no dispositivo cênico e cinematográfico das próximas duas horas: duas atrizes, cujos nomes são emprestados às personagens, performam esse jogo teatral que modula constantemente as emoções e os regimes de interpretação da cena, saltando da euforia à melancolia, da felicidade à tristeza, da comédia ao trágico, do burlesco ao melodrama. Em alguns casos, conversas casuais (sobre o aluguel, por exemplo) tornam-se pretexto para uma nova encenação. Em outros, o ato de ensaiar para um papel (como o de Andrômaca) restitui às personagens uma vivência passada. Por vezes, ainda, o decurso dramático de uma cena é interrompido por uma canção que as atrizes, em modo épico, cantam para os espectadores.

Ambas personagens, no fundo, podem ser lidas como uma única: Hélène responde por Sonia, por exemplo, aos anúncios de relacionamento; o alcoolismo de uma é “permutado” à outra; as roupas da segunda vestem a primeira e vice-versa; o ex-marido é o mesmo para as duas. No plano-sequência que melhor expressa essa identidade, as atrizes sentam-se uma de frente para a outra e se pintam os lábios. O movimento da câmera e o jogo óptico produzem um efeito de espelhamento: de um close-up no rosto de Sonia, a câmera performa um zoom-out, desliza lentamente em travelling para enquadrar Hèlène e, finalmente, realiza um zoom-in que enquadra o rosto desta em primeiro plano.

Em Imitação da vida (1959), de Douglas Sirk (um dos cineastas de cabeceira de Vecchiali), Lana Turner interpreta uma atriz de teatro em busca do estrelato. Em um dos momentos-chave do filme, a protagonista discute com sua filha (Terry Burnham) e esta, diante das lágrimas da mãe, pede-lhe que “pare de atuar”, que “pare de agir como se estivesse atuando em um palco”. É neste intervalo entre a vida e a interpretação que Vecchiali instala suas personagens. O filme situa-se incansavelmente entre a vida e o teatro, o teatro e o cinema, o cinema e a vida. Mesmo a fatalidade final não é desprovida de ambiguidade: lembremos, por exemplo, que quando o médico interpretado por Michel Delahaye explica a cirrose à personagem de Sonia, ele fornece menos os sintomas da doença do que as indicações de uma atuação (“gestos de dor e crispação, uma maquiagem adaptada, o rosto se modifica, os olhos giram ou tornam-se fixos…”).

Mulheres, mulheres é um filme que busca elevar suas vedetes à dimensão mítica das grandes estrelas, lançando-as à eternidade, enquanto lhes restitui algo da dignidade permanentemente ameaçada pelo desemprego. Aos seis anos de idade, Vecchiali descobriu a paixão pelas atrizes. Diante de Danièle Darrieux no filme Mayerling (Anatole Litvak, 1936), tornou-se obcecado por esses seres insondáveis cujo mistério nunca deixou de habitá-lo. O que nos revela Mulheres, mulheres. E o que nos conta, afinal, Requiem para uma mulher (1979).

Realizado pela Diagonale – coletivo de produção cujas atividades têm início em 1976 e encerram em 1999, do qual participam Jean-Claude Biette, Gérard Frot-Coutaz, Marie-Claude Treilhou, Jean-Claude Guiguet, entre outros –, Requiem para uma mulher narra a obsessão de Pierrot (Nicolas Silberg) por Jeanne/Michèle (Hélène Surgère). Ele, um mecânico; ela, farmacêutica. Ele, admirador de Gabriel Fauré (a quem o filme é dedicado); ela, Debussy. Ele, pertencente às classes mais baixas; ela, proprietária de um apartamento de classe média. Além de Fauré, a outra figura para quem se dedica a obra é o cineasta francês Jean Grémillon². Filmado durante um período de nove meses – duração inabitual para os padrões de Vecchiali, que sempre trabalhou de forma econômica e rápida –, trata-se de um dos filmes preferidos de seu autor.

Na primeira cena, vemos um concerto da peça Réquiem, de Fauré. Pierrot, sentado nas fileiras de trás, vislumbra o rosto de Jeanne/Michèle nas primeiras cadeiras e, sem desviar os olhos, comenta com a amiga ao lado que “precisa saber tudo sobre essa mulher”. Vecchiali conta que quando viu Surgère pela primeira vez, sua reação foi a mesma de Pierrot, o que não deve ser menosprezado: embora descreva uma narrativa de amor com personagens definidas, Requiem para uma mulher é também um filme sobre a obsessão de Vecchiali pelas atrizes de cinema. A personagem de Surgère, como toda atriz que leva consigo o nome de sua personagem, é ao mesmo tempo Jeanne e Michèle. Na primeira tentativa de se aproximar da farmacêutica, Pierrot lhe escreve uma carta tal como um fã escreveria para uma atriz. Não coincidentemente, a primeira cena – que dispara a obsessão do protagonista – transcorre em uma sala com plateia, cadeiras, luzes e música – espaço que se assemelha a uma sala de cinema onde o espectador descobre seu amor pela atriz diante de si.

Enquanto Mulheres, mulheres inseria fugazmente os retratos das atrizes de cinema no interior de uma cena ou de um plano, aqui os inserts consistem em visões de Hélène produzidas pela memória de Pierrot. Em outras palavras, se lá fazia-se das imagens de cinema uma memória, aqui as memórias de Pierrot se convertem em imagens de cinema. Como em La Jetée (Chris Marker, 1962), “essa é a história de um homem marcado por uma imagem de infância”: Darrieux para Vecchiali, Jeanne/Michèle para Pierrot – que, ao longo da narrativa, regressa a estados psicológicos cada vez mais infantis. É o que nos mostra, por exemplo, a cena da vigília na frente da farmácia (a personagem de Silberg comportando-se como uma criança mimada de quem tiraram o brinquedo preferido).

Essa cena, aliás, nos faz recordar uma das sequências finais de Mulheres, mulheres. Neste, Surgère e Saviange saíam à rua para beber e se prostituir, convocando a atenção de pedestres curiosos. O reflexo de uma vitrine nos mostrava os rostos interessados dos figurantes, que eram incorporados à dramaturgia. Em Requiem para uma mulher, a vigília de Pierrot desperta a intromissão de uma mesma massa de figurantes. Aqui, Vecchiali novamente os incorpora à cena: o aspecto insólito da situação dramática convida a presença da vida real e, assim, a ficção se alimenta do cotidiano. Já era o que acontecia, de forma menos explícita, com a presença do cemitério de Montparnasse em Mulheres, mulheres, o qual entrevíamos pela janela do apartamento e acercava as personagens da morte.

Três são os espaços fundamentais de Requiem para uma mulher: a garagem onde trabalha Pierrot, o complexo residencial onde habita e a farmácia. Costurando esses espaços – aos quais se soma, eventualmente, o apartamento de Jeanne/Michèle ou o litoral –, Vecchiali constrói uma rede na qual seus personagens transitam. A descrição da vida comunitária no bairro onde vive Pierrot é especialmente rica – Michel Delahaye, Marie-Claude Treilhou, Liza Braconnier e a própria Sonia Saviange figuram como coadjuvantes que conferem densidade à classe social do protagonista (a cena da feira sendo a sequência paradigmática). Pois, para além da diferença de idade entre os dois amantes, o filme descreve um incontornável abismo social que os separa.

Entre os filmes de Vecchiali, Requiem para uma mulher é um dos mais dialéticos. De forma alucinante, quase toda cena estabelece uma relação oblíqua com a anterior. Jeanne/Michèle é a figura por excelência dessa dialética em que cada ação guarda a possibilidade de seu contrário: declina o convite para jantar e depois o aceita; recusa o avanço de Pierrot e depois parte em um idílio amoroso em sua companhia; diz que sofre de um “mal incurável” e depois afirma ter mentido.

A dinâmica encontra seu paroxismo nos instantes finais do filme, em que a própria morte é tensionada pela vida: mesmo depois de morrer envenenada, a personagem de Surgère ressurge na imagem, andando na rua em direção à câmera. Sua presença no plano – os cabelos loiros, a pele leitosa e a camisola branca – encontram estranha ressonância com uma imagem anterior, aquela de sua morte, em que uma fresta da cortina permitia o vislumbre de uma luz radiosa e imortal. Nessa inusitada ressurreição, o destino de Jeanne/Michèle se confunde com o de Hélène Surgère, de quem o cinema guardará para sempre a memória. “Ninguém morre”, diz uma das personagens. À eternidade, enfim.

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1 No ano seguinte, 1975, o cineasta italiano retomará Surgère e Saviange, bem como suas respectivas personagens, em Salò ou os 120 dias de sodoma.
2 Vecchiali, na contracorrente de alguns de seus contemporâneos, sempre foi um grande defensor do cinema francês dos anos 1930. A geração da Nouvelle Vague, por exemplo, mostrou-se, em geral, intransigente a essa “tradição de qualidade do cinema francês” (expressão de Truffaut). Em 2010, Vecchiali chegou a lançar uma enciclopédia de cineastas franceses desse período, chamada “L’encinéclopédie”.

Mulheres, mulheres (1974).

Mulheres, mulheres (1974).

Este artigo faz parte da Homenagem a Paul Vecchiali que a Cinemateca do MAM promove em abril de 2023.






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