Homenagem a Peter Bogdanovich

por Filipe Furtado

Jeff Bridges, Timothy Bottoms e Peter Bogdanovich nas filmagens de A última sessão de cinema (The Last Picture Show, 1971).

O sonhador melancólico

Se considerarmos a história da Nova Hollywood como a de uma primeira onda de filmes de contracultura suplantada posteriormente por uma contrarrevolução industrial de filmes de gênero autorais, Peter Bogdanovich é um dos poucos nomes com um pé forte em ambas as pontas. Como muitos outros colegas de geração, ele fez a passagem de filmes underground iniciais para produções caras de estúdio, mas, mesmo amando as fontes de cinema clássico que ele revisita de forma muito mais clara que um Brian De Palma ou William Friedkin (para ficarmos em cineastas para os quais as formas estavam lá para serem exploradas), mesmo realizando a melancolia que dominava seus filmes, sempre acrescentou um elemento intransigente a eles, mesmo que por este curto período de três anos ela estivesse em sincronia com os gostos de boa parte do público.

Em determinado momento no começo dos anos 70, Bogdanovich montou uma produtora independente em parceria com Francis Ford Coppola e Friedkin com um nome bastante direto: The Director’s Company. Isso diz bastante tanto sobre as ambições do então jovem realizador como sobre sua posição de destaque em meados da década. Os três filmes de ficção que Bogdanovich realizou entre 1971 e 1973 (A última sessão de cinema, Essa pequena é uma parada e Lua de papel) estão entre os de maior sucesso do período, e o próprio nome The Director’s Company popularizou a ideia do jovem autor como estrela, e o autorismo como mais uma boa peça de marketing para a indústria. De certa forma, ele era o homem certo na hora certa para combinar uma série de tendências que o cinema comercial americano cristalizaria naquele momento.

É útil lembrar que A última sessão de cinema foi produzido pela BBS, a produtora que Bob Rafelson montou graças ao sucesso dos Monkees, e que foi responsável por Cada um vive como quer e O dia dos loucos do próprio Rafelson, além de Sem destino de Dennis Hopper etc. Em suma, filmes que tinham um pé forte na contracultura e numa certa ideia de exaustão da sociedade americana no final da década de 1960. Bogdanovich estava também muito próximo de John Cassavetes (para quem posteriormente fez uma ponta em Noite de estreia), a ponto de anos mais tarde Cassavetes se fingir doente para convencê-lo que ele dirigisse uma cena de Amantes de modo a tentar tirar o amigo de uma depressão profunda. Algo bastante perceptível quando observamos os dois filmes que ele fez com Ben Gazarra, O tatuado (1979) e Muito riso e muita alegria (1981). Sem contar sua longa relação de pupilo/mestre com Orson Welles, que o segundo faz funcionar de certa forma em O outro lado do vento, um filme por vezes bastante cruel para com Bogdanovich, mas que ele passou boa parte das últimas décadas de vida lutando para ser completado. O tatuado por vezes sugere a alienação conspiratória dos filmes de exílio de Welles com a ambiência bastante concreta de Cassavetes.

Bogdanovich foi ao certo muito próximo do desejo nostálgico que tomou conta do cinema americano dos anos 1970. Junto de Paul Schrader, eles foram os únicos cineastas da Nova Hollywood a seguir os passos de seus colegas franceses e fazer o movimento do jornalismo cinematográfico para a direção (ele foi também um programador essencial para as primeiras retrospectivas americanas de nomes como Hawks e Hitchcock). Essa dedicação ao passado se completaria décadas mais tarde com seu livro Afinal, quem faz os filmes? (publicado por aqui em 2000), uma coleção de entrevistas com cineastas, antes de passar à direção, que se desdobra numa autobiografia disfarçada e forma uma história muito pessoal do cinema americano.

Essa pequena é uma parada (1972) é um remake livre de Levada da breca de Hawks; Lua de papel não só retoma os anos da depressão mas também o cinema do período, e a série de fracassos do meio da década segue a mesma toada: Daisy Miller adapta Henry James sobre a sombra de Lubitsch, Amor eterno amor foi uma das primeiras tentativas conscientes de ressuscitar o musical; Nickelodeon – No mundo do cinema (1976) é uma comédia dos primórdios do cinema inspirada em causos que ele escutou de pioneiros. Algo que seguiria recorrente até o final da sua carreira: seus últimos filmes foram uma farsa cômica deliberadamente retrô (Um amor a cada esquina, 2014) e um documentário sobre Buster Keaton (The Great Buster, 2019).

Bogdanovich era um homem fora do seu tempo. Em seu primeiro filme, Na mira da morte, em que interpreta um jovem cineasta, ele se coloca diante de uma televisão que exibe O código penal de Hawks a dizer: “Todos os grandes filmes já foram feitos”. A última sessão de cinema não deixa de ser um nome ideal para um filme de Bogdanovich: a ideia de que todas as imagens já existem e que o único caminho que resta é revisitá-las. É ao mesmo tempo uma ideia conservadora e, como o olhar de Bogdanovich não lhe permite voltar ao passado tanto como produzir algo próprio a partir dele, uma janela para uma exploração bastante moderna. A sensibilidade do diretor está muito mais próxima da que encontramos nos filmes de Wong Kar-wai, um presente suspenso e um passado que existe na lembrança de gestos românticos inatingíveis, do que de seus colegas de geração. Um sonho, dois amores (1993), um dos seus melhores filmes tardios, e sua dedicação à ideia da transposição da decepção amorosa em música em particular, é muito próximo em espírito ao cineasta de Hong Kong.

É possível pensarmos o apelo nostálgico no cinema de Bogdanovich a partir de A última sessão de cinema. O filme se passa no começo dos anos 1950, entre jovens de uma pequena cidade do Texas que agoniza de forma notória. Não é um retorno a um passado vital como em Uma rajada de balas (1967) de Arthur Penn ou a lembrança da juventude adorável de Loucuras de verão (1973) de George Lucas. Não é um passado que possa ser especialmente embalado para consumo. Pelo contrário, seus próprios personagens assistem a faroestes no cinema local enquanto imaginam um Texas muito mais glorioso. Uma fronteira domesticada. A velha cidade agonizando não deixa de ser uma imagem do próprio cinema americano muito distante de um Rio Vermelho. Certamente não é coincidência que pela mesma época ele rodava Directed by John Ford, um documentário-entrevista que tentava passar a carreira do mestre a limpo, a despeito da resistência do mesmo de ser visto como uma figura do passado. Esse filme é, junto de Na mira da morte, o único de seus filmes iniciais que parece existir no presente. Ano passado, quando os Cahiers du Cinema perguntaram a David Lynch sobre sua ponta como Ford em Os Fabelmans, ele contou que sua reação inicial foi questionar Spielberg de por que não chamar Bogdanovich para o papel.

Nos filmes de Bogdanovich a nostalgia agridoce é essa sugestão de se estar sempre atrasado e o que isto tem de alienante e dolorido. Os jovens de A última sessão de cinema se movem como fantasmas por aquele local, atormentados pela consciência de que não podem muito mais do que imitar a vida sórdida dos adultos à sua volta. Mesmo num filme solar como Muito riso e muita alegria, a felicidade é marcada pela certeza de existir no momento passageiro. Em Essa pequena é uma parada a distância entre Ryan O’Neal e Cary Grant é parte essencial ao efeito do filme tanto como a forma que ele se revela um veículo ideal para Barbra Streisand. Parte da potência de Amor eterno amor vem de como seu elenco é formado por não-cantores a se esforçar diante das músicas de Cole Porter. Trata-se de habitar um devaneio onírico que está sempre perto de desaparecer, um desejo muito desesperado, a nostalgia de um amor que acabou de partir. Em Daisy Miller, o narrador é aterrorizado pela certeza de que perdeu seu momento de felicidade ao não agir diante da personagem-título quando teve a chance.

Bogdanovich é um mestre da imagem subjetiva. Seus melhores filmes frequentemente são construídos sobre o princípio do homem que testemunha os eventos e, frequentemente, as mulheres a sua volta. Na mira da morte é construído pela diferença de olhares e a violência que ela produz. Há Boris Karloff como uma versão ficcional dele mesmo, e o jovem assassino, duas formas de mal-estar contemporâneo. Essa pequena é uma parada e Daisy Miller são filmes-espelhos, homens fracassando ao ver uma mulher, o primeiro como grande farsa e o segundo como tragédia agridoce. Em Muito riso e muita alegria, os personagens principais são detetives e seu trabalho permanece uma metáfora nada disfarçada para a atividade cinematográfica, com um filme todo construído a partir de olhares roubados.

O outro lado desta ideia é um desejo constante de construir mundos ficcionais que se tornam o único espaço possível para os seus personagens. A Nova York cinematográfica de Muito riso e muita alegria é a melhor versão desse desejo, uma pequena maravilha de construção cinematográfica no seu misto de uso de locação e imaginação, mas podemos pensar igualmente no uso de Ryan e Tatum O’Neal, pai e filha, em Lua de papel, contra a reconstrução da Depressão, a cumplicidade dos dois aos poucos sugerindo um mundo alternativo muito mais prazeroso ao espectador. A mesma ideia de fuga para a ficção está presente no mundo do teatro de Impróprio para menores (1992), ou os de cinema de Nickelodeon, O miado do gato (2001) e Um amor a cada esquina, no romance de Essa pequena é uma parada ou no meio country de Uma cidade, dois amores. Na sequência de A última sessão de cinema, Texasville (1990), Timothy Bottoms imagina filmes no céu da cidade e Jeff Bridges, agora um milionário do petróleo falido, fala abertamente que “Eu, ou sorria por nada ou chorava por tudo… E eu não estava com vontade de chorar”. Uma atitude que o filme como um todo reproduz.

O jovem Bogdanovich podia ser um dos cineastas menos relaxados da sua geração, principalmente no começo da carreira. A última sessão de cinema é um filme meticulosamente pensado, um cartão de visitas muito consciente de um jovem ambicioso. Seu Texas crepuscular é definido antes da primeira imagem ser capturada. Da mesma maneira, Essa pequena é uma parada é tão engraçado quanto parece desesperado para ser engraçado sobretudo na primeira hora, e é só quando o filme alcança sua perseguição final, mais Buster Keaton que Hawks e baseada num uso cuidadoso das subidas e descidas das ruas de San Francisco, que ele finalmente parece à vontade. Ocasionalmente esses efeitos podem soar negativos, alguns dos fordismos de Lua de papel ou imitações de Lubitsch mais forçadas em Daisy Miller, mas por outras tantas essas mesmas ansiedades se tornam muito reveladoras. A sequência do vidro de Essa pequena é uma parada em especial é fascinante, ressaltando, como poucos dos filmes mais decalcados na velha Hollywood da época, a agonia de não poder voltar ao passado.

As diferenças entre A última sessão de cinema e Texasville são muito reveladoras das mudanças de atitude e sensibilidade do seu realizador. O filme posterior, feito do ponto de vista da meia idade, tem uma compreensão muito diferente da agonia do lugar, que não desaparece mas é encarada sem o peso mítico do filme original, um fato com o qual cada personagem precisa negociar a cada dia. É uma das coincidências improváveis do cinema que o filme sairia ao mesmo tempo que O poderoso chefão parte 3 e a sequência tardia de Jack Nicholson para Chinatown, A chave do enigma. Cada um a sua maneira, com suas muitas qualidades e inegáveis defeitos, são filmes muito reveladores sobre como uma geração de realizadores de imenso sucesso e diversos tombos encaram o próprio legado numa indústria cinematográfica muito mais hostil.

Com o passar do tempo, a ideia de fracasso se torna muito recorrente nos filmes, a ponto de em O miado do gato figuras como William Randolph Hearst e Charles Chaplin, no auge das suas influências, serem definidas sobretudo por ansiedades e inseguranças. O’Neal nos filmes dos anos 70 por vezes sugere o jovem Bogdanovich, como pode-se observar ao assistirmos O outro lado do vento e o pouco conhecido Barry Brown na sua entrega passiva se aproxima tanto do seu diretor quanto Jean Yanne em Nós não envelheceremos juntos de Maurice Pialat, e, tal qual nele, o efeito é perturbador. Se Muito riso e muita alegria é o grande ponto de equilíbrio da carreira do diretor, não deixa de ser revelador que John Ritter no filme seja tão visivelmente um novo autorretrato, como uma pessoa quase desprovida de neuroses. Por um momento, o cineasta parece à vontade com o filme que faz, e ele nunca escondeu que esse permaneceu o favorito entre seus trabalhos.

Os gêneros ao qual Bogdanovich permaneceu mais fiel foram a farsa e o musical, duas formas deliberadamente artificiais de cinema. Quase como se o movimento em direção ao caos do primeiro precisasse ser mitigado pela fantasia do segundo. Uma diferença notável entre Levada da breca e Essa pequena é uma parada é como o caos produzido por Barbra Streisand carrega todos os personagens ao seu redor, sobretudo os diversos trabalhadores que seguem transformados em extras cômicos. No filme original o foco é todo em Grant, com os coadjuvantes sendo eles próprios caricaturas de screwball, enquanto aqui é o mundo como um todo que parece remodelado pelos desejos da protagonista. É o movimento favorito do diretor, alienação e dor, encontrando formas de fuga ficcionais. A direção de cinema por vezes é uma forma de coreografia de um grupo de atores. Amor eterno amor é seu único filme que provavelmente apareceria nas prateleiras da seção de musicais, mas desde que Streisand tem seu momento ao piano em Essa pequena é uma parada, os números musicais permanecem recorrentes, e em muitos filmes como Muito riso e muita alegria, a própria forma da dramaturgia parece seguir a lógica da música.

Muito riso e muita alegria é um filme todo coreografado no encontro desses dois movimentos de música e farsa. É um romance adorável e melancólico sobre detetives que seguem se apaixonando pelas mulheres que foram contratados para vigiar. Em que todas as relações são ainda mais românticas por se reconhecerem transitórias. Tudo isso é capturado no belo momento em que Colleen Camp, plenamente consciente de que John Ritter está apaixonado por outra, aponta que eles ainda podem passar a tarde juntos. No contraponto, existem as cenas entre Ben Gazarra e Audrey Hepburn, de uma intoxicação tão grande diante do outro, como que resignados de que vai durar pouco a permanência dela na cidade. Pessoas que criam ficções melhores para si mesmas, mas que sabem dos limites dessa fantasia. A melancolia do filme é bastante próxima do que podemos encontrar nos filmes de Jacques Demy, se certamente dotada de um pragmatismo mais americano. Muito riso e muita alegria é um dos últimos grandes filmes da Nova Hollywood e, assim como em O portal do paraíso (Michael Cimino, 1980) e O fundo do coração (Coppola, 1981), é notável a maneira como eles se dedicam a criar um mundo próprio pelo qual seu realizador está apaixonado. Mas, ao contrário daqueles filmes, esse é um épico modesto, feito por alguém que já estava muito longe do maquinário hollywoodiano. O que fica do filme são os espaços de Nova York e aqueles corpos em constante movimento por ele. Uma promessa de fantasia que dura as cerca de duas horas do filme. É uma ideia que define a própria relação de Bogdanovich com o cinema, em que, a despeito de tudo, resta sempre um elemento benigno em meio às rachaduras das próprias ficções.

Este artigo diz respeito à mostra Homenagem a Peter Bogdanovich, que faz parte da programação que a Cinemateca do MAM promove em dezembro de 2023.






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