O cinéfilo perfeito

ALEXEI BUENO

Evocar Julio Cesar de Miranda — e no doloroso momento da perda dos amigos a dominância crescente e um dia absoluta da memória se impõe — é não só um exercício de relembrar grandes filmes, mas, ao lado deles, e inextricavelmente unidos a eles —, o de relembrar momentos preciosos da minha vida, e não há por que disfarçar o caráter estritamente pessoal destas breves linhas.

A generosa, profícua e inesquecível atividade de Julio Cesar entre os amantes do cinema no Rio de Janeiro surgiu, de certa maneira, como uma evolução, uma nova fase do cineclubismo na cidade. Não sei se a história do cineclubismo carioca já foi condignamente escrita, mas o registro é necessário. A definitiva entrada em cena de Julio Cesar, à frente da sua locadora Polytheama, se dá no momento final da época histórica em que a possibilidade única de assistir a um filme dependia da sua exibição pública em película, nos cinemas, na cinemateca ou nos cineclubes. Abria-se, naquele período, com o VHS e depois com o DVD, a possibilidade de ver e rever domesticamente as obras, e, mais do que isto, possuí-las, como já se possuíam havia séculos as obras literárias por meio dos livros, e desde muitas décadas a música, nas variadas formas de registro sonoro. Essa impossibilidade de posse na área do cinema em relação às outras artes era algo de estranhamente injusto, e me recordo que, certa ocasião, numa das sessões de cinema que aconteciam periodicamente na sede do Sindicato dos Engenheiros do Rio de Janeiro, ao me ver sozinho, por ter chegado muito cedo, com as duas latas de uma cópia em 16 mm da Mãe, de Pudóvkin — filme de minha especial veneração —, me aflorou na consciência o insidioso desejo de cometer o crime de furto, já que eu tinha em casa um projetor Bell & Howel da mesma bitola… Enfim, pelo triunfo da ética ou pelo tamanho das latas, a compulsão criminosa não se consumou, o que confesso aliviado.

Com o aparecimento do VHS terminava esse período heroico, e entrava em cena o entranhado amor ao cinema e a boa vontade igualmente heroica de Julio Cesar de Miranda, pessoalmente ou à frente do Polytheama, na divulgação dos grandes filmes e na faina de extinguir a já antiga frustração de tantos cinéfilos, impedidos de possuir determinada obra cinematográfica, e revê-la a qualquer momento, a seu bel-prazer. Justamente nessa época, início da década de 1990, eu trabalhava no editorial da Nova Fronteira, na bela casa da Rua Bambina, em Botafogo, e Julio Cesar morava quase ao lado, na Rua Marquês de Olinda, se não me engano no mesmo endereço do nosso grande Othon Bastos. Todo o mês, por acerto nosso, ele copiava para mim em VHS dez filmes da minha escolha, por preço quase simbólico, pois havia praticamente tudo na sua magnífica coleção, e nunca me esquecerei dos nossos encontros mensais, momento em que ele me entregava a bendita e esperada sacola de filmes.

Antes dessa época, como já lembrado, a peregrinação pelos cineclubes, às vezes próximos, às vezes bastante distantes, era a regra, do Cineclube João XXIII, do abnegado Padre Bruno Trombetta, no Leblon, ao Barravento, na Tijuca; da Aliança Francesa do Méier a algumas projeções específicas no cinema da UFF, em Niterói, tudo centrado, no entanto, o que é óbvio, na Cinemateca do MAM, que sobrevivera incólume ao deplorável incêndio de 1978. 

Dessa fase heroica sempre me recordo de alguns momentos de autêntico êxtase estético — e a palavra é êxtase mesmo —, como, para citar muito aleatoriamente alguns que foram dos mais marcantes, e em ordem aproximativamente cronológica: Deus e o Diabo na Terra do Sol, no Cineclube Macunaíma, da ABI; Ivan, o Terrível II (antes de ver a primeira parte, e sem as duas sequências a cores), no Cineclube João XXIII:  tinha 15 anos, e me lembro de haver afirmado, em seguida, que vira o maior filme do mundo;  O encouraçado Potiônkim, após anos de censura, no Cinema 2, em Copacabana; Limite, na Sala Funarte; a Mãe, de Pudóvkin, no Cineclube Barravento; Vampyr, de Dreyer, no MAM; Napoleão, de Abel Gance, num bar e centro cultural em Botafogo; O Velho e o Novo (ou A linha geral), em VHS do Poytheama; O tesouro do Senhor Arno, de Stilller, em casa, em DVD gravado por mim próprio, após ter baixado pelo eMule uma magnífica cópia restaurada pela Cinemateca Sueca.

O caso de O Velho e o Novo, num VHS do Polytheama, como já afirmei, com uma esplêndida banda sonora composta de música barroca — Vivaldi especialmente — criando uma simbiose com as imagens do filme como nunca encontrei igual, é dos mais curiosos. Tratava-se do único filme de Eisenstein — paixão máxima, como deve ser perceptível — que eu nunca vira. Certa noite um amigo me telefonou para dizer-me que havia encontrado uma cópia do próprio na locadora. Com os direitos do fanático e com um autoritarismo de golpe de Estado, peguei um táxi e fui imediatamente até a sua casa, em Copacabana, onde “confisquei” a cópia, que só lhe devolvi após a experiência de assistir a essa que é a mais lírica entre as obras-primas de Eisenstein, visto que — caso único na história do cinema — ele só realizou obras-primas. Pouco depois, obviamente, Julio Cesar me repassava a cópia do filme em VHS, na fornada do mês. 

Caso à parte eram as sessões organizadas por Julio Cesar de Miranda em sua residência na Tijuca, privilegiado encontro de amigos, sempre seguido pela conversa sobre o filme, entre alguns comes e bebes. Seu gosto era tão aberto como a sua coleção, seguramente mais aberto do o meu, apesar de não o julgar nada fechado, mas no qual me parecem sobreviver, talvez, alguns traços pósteros à la Chaplin Club… Outro caso à parte, mas aí de feição pública e da maior importância para a cultura cinematográfica carioca, foram os numerosos ciclos e mostras em cuja organização ele participou, em instituições como o CCBB, o SESC, ou o Centro Cultural dos Correios. Neste último fiz parte, por convite seu, da mesa de abertura da mostra “Cartas de amor no cinema”, a 2 de junho de 2005, quando foi exibido o raro filme Dois seres, do inigualável Carl Dreyer, esse outro monstro que conseguiu a façanha de realizar, em quatro décadas seguidas, quatro dos momentos mais altos de história do cinema: A Paixão de Joana d’Arc, em 1929; Vampyr, em 1932; Dies Irae, em 1943, e Ordet, em 1955. 

Todos esses títulos, todas essas sombras ilustres dos grandes cineastas, de Méliès, Griffith e Sjöström até Godard, até Artavazd Peleshian, até a atualidade, todas essas mostras e ciclos, e todos os incontáveis rostos e vozes das pessoas, às vezes muito próximas, algumas delas igualmente perdidas, que de tudo isso participaram, aparecem-me agora como uma imensa fusão sobre o tão querido semblante de Julio Cesar de Miranda, — uma daquelas fusões de incontáveis imagens, nas quais Gance era o mestre dos mestres —, com seu inolvidável sorriso, o sábio sorriso do esteta e do humanista que ele foi.

                           

Alexei Bueno – 21 de março de 2022

Por ocasião da mostra “Homenagem a Julio Cesar de Miranda”, este espaço busca ainda ser uma espécie de memorial, um local onde estão recolhidos uma série de breves depoimentos escritos ou em vídeo enviados por muitos de seus amigos e companheiros de vida. Assista aos filmes na Cinemateca do MAM online de 1º a 30 de abril de 2022.

_

Informações
[email protected]

                                                                     



Acessibilidade | Fale conosco | Imprensa | Mapa do Site