Artigo: O monstro legume do espaço: em busca do cinema imperfeito

BEATRIZ SALDANHA

Petter Baiestorf, conhecido como “a lenda do underground brasileiro”, nasceu, cresceu e segue vivendo no contexto mais improvável possível: no pequeno município de Palmitos, interior do estado de Santa Catarina, onde a população é pouco superior a 15 mil habitantes e o discurso conservador é dominante. Ainda que pareça paradoxal, já que as subculturas são uma prerrogativa dos grandes centros urbanos, foi justamente esse contexto inusitado que impulsionou sua carreira como cineasta transgressor. Nascido em 1974, Baiestorf começou a se expressar artisticamente em 1988, quando passou a declarar sua desaprovação às práticas religiosas em poemas publicados em fanzines, revolta fomentada pelas crenças e ideias conservadoras disseminadas em sua cidade natal.

No início dos anos 1990, o cinema brasileiro “oficial” sofreu um forte baque com a extinção da Embrafilme pelo então presidente Fernando Collor de Mello, deixando diversas produções interrompidas e profissionais desempregados. Em 1991, inspirado por cineastas malditos como Ted V. Mikels, Doris Wishman e Al Adamson, Baiestorf fundou a Canibal Filmes, em parceria com o amigo E.B. Toniolli. A produtora, em atividade até hoje, sempre correu à margem, tendo surgido na ocasião da popularização dos equipamentos de vídeo, que se tornaram mais acessíveis ao consumo caseiro, tornando-se uma das primeiras a fazer vídeos independentes no Brasil. A nova tecnologia facilitava os processos de captação da imagem e de montagem, sendo possível, inclusive, conferir de forma imediata o resultado das gravações, assim como permitia a reutilização das fitas. Na Canibal Filmes, o funcionamento era baseado em um esquema bastante artesanal desde à produção das obras em si, o que envolvia um bocado de improviso, até a distribuição, com os filmes sendo montados e copiados com o auxílio de dois videocassetes, e os lançamentos chegando ao público por venda direta.

O primeiro longa-metragem da produtora foi Criaturas hediondas (1993), sobre um cientista marciano que planeja dominar a Terra reanimando cadáveres humanos, mas acaba desenterrando seu arqui-inimigo, também marciano. Pelo tema cósmico, aproveita elementos de Lixo cerebral vindo de outro espaço, o qual deveria ter sido o primeiro longa da Canibal, mas que foi apenas parcialmente filmado e permaneceu inacabado. Depois de fazer Açougueiros (1993), um média-metragem sobre canibalismo, Criaturas hediondas 2 (1994) veio para dar continuidade à história contada no ano anterior, com dois investigadores enviados pela NASA para dar fim aos mortos-vivos marcianos. A essa altura, Baiestorf já gozava de algum reconhecimento em meio à cinefilia underground e uma viagem a São Paulo mudou a relação do cineasta e sua trupe com alguns membros de sua cidade.

Em 1995, aconteceu a primeira exibição pública de Criaturas hediondas 2 na I HorrorCon, convenção voltada aos filmes e fãs do gênero horror, realizada na Gibiteca Municipal Henfil. Noticiado nos maiores jornais da capital, o evento trouxe uma visibilidade inesperada, o que mobilizou a população mais adulta de Palmitos a, finalmente, respeitar e colaborar com as produções da Canibal. Alguns passaram a ceder hospedagem, enquanto outros ofereciam alimentação à equipe, entre demais tipos de ajuda.

De volta ao interior de Santa Catarina e com uma equipe mais numerosa, Baiestorf começou a rodar O monstro legume do espaço (1995). Gravado em dois finais de semana, o filme se destaca por ser a primeira filmagem do diretor com uma câmera própria – obtida em um negócio feito por seu pai – e pela tentativa do grupo em fazer um trabalho mais profissional.

Na trama, o Dr. Marins (Marcos Braun), cientista que fora expulso da universidade anos antes, segue fazendo seus experimentos antiéticos em uma cidadezinha do interior. Quando encontra um alienígena formado de matéria vegetal (Loures Janhke), ele convoca o Dr. Karloff (Ivan Pohl), um velho colega, para testemunhar a descoberta, mas, com a ajuda do coprófago Caquinha (Leomar Wazlawick), o monstro legume consegue escapar do cativeiro e sai em busca de uma mulher para gerar uma ninhada de alienígenas híbridos: metade vegetal, metade carne humana.

Homenagem aos filmes baratos de ficção científica e horror dos anos 1950, “O monstro legume do espaço” é uma expressão muito particular de uma miríade de influências artístico-cinematográficas, passando ainda pelo cinema de José Mojica Marins (o monstro, tal qual Zé do Caixão, deseja gerar um filho perfeito) e por Boris Karloff, o astro do horror clássico que ficou famoso por interpretar a criatura de Frankenstein, mas que inúmeras vezes, inclusive no fim da carreira, viveu uma série de cientistas malucos em filmes tão baratos quanto fascinantes. O longa de Baiestorf emana um frescor juvenil, uma inquietação que está presente em praticamente todos os cerca de cem filmes realizados pela Canibal Filmes e produtoras parceiras, nos quais o cineasta atuou em distintas funções técnicas.

Ainda que o seu discurso de rebeldia possa parecer meramente provocativo ou, por vezes, inconsistente, é espantoso o quanto se encaixa em nosso cenário atual, na onda de conservadorismo que tem submergido o país através da extrema-direita.

O monstro legume do espaço, com sua deliciosa espontaneidade e imperfeição, chamou a atenção de um nicho que estava ávido por filmes trash e rendeu um bom dinheiro para a produtora, vendendo cerca de 1.200 cópias (feitas artesanalmente), o que impulsionou a realização e o lançamento de um derivado: Caquinha Superstar a Go-Go (1996), estrelado pelo coprófago Caquinha. Na trama, ele vive feliz com a esposa, comendo fezes por onde passa, mas, um fatídico dia, o casal conhece de perto a maldade humana.

O vegetal intergaláctico, por sua vez, retornou em uma continuação, O monstro legume do espaço 2 (2006), que retoma o dia seguinte aos acontecimentos finais do filme original, mostrando que, na verdade, ele sobreviveu aos ataques e está disposto a continuar combatendo o preconceito dos cidadãos do Oeste de Santa Catarina. É encantador constatar como as produções da fase inicial da Canibal Filmes preservaram uma espécie de energia juvenil, uma certa ingenuidade marcada pela manufatura astuciosa do vídeo e pela opção do horror e da ficção científica como forma de rebeldia e inconformismo. Temos visto essa mesma energia, advinda de um posicionamento ideológico, ressurgir em produções mais contemporâneas, em outros contextos tecnológicos. E é esse o tipo de energia necessário para movimentar o mundo.



BEATRIZ SALDANHA é crítica, curadora, pesquisadora e realizadora especializada em cinema de horror. Doutoranda em Comunicação Audiovisual, escreve sobre o gênero revista eletrônica Les Diaboliques (www.lesdiaboliques.com.br).

Bibliografia consultada:
BAIESTORF, Petter. Canibal filmes: os bastidores da gorechanchada. Pinhais: Sangue TV, 2020.
PIEDADE, Lúcio. Eles comem sua carne: o filme escatológico-canibal de Petter Baiestorf. In: SANTANA, Gelson
(Org). Cinema de bordas 2. São Paulo: A Lápis, 2008.

Retrospectiva Petter Baiestorf
PROGRAMAÇÃO ONLINE
SEG 1 NOV – DOM 12 DEZ 2021
Assista em: www.vimeo.com/showcase/retrospectivapetterbaiestorf

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Informações
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