PEDRO SERPA
A Índia, nos anos 50 e 60, conheceu a era dourada do seu cinema. O nome que vem primeiro à mente é o de Satyajit Ray, cujos filmes obtiveram reconhecimento internacional. Contudo, havia um outro grupo de cineastas mais comerciais e populares que buscavam inspiração nos melodramas e nos musicais hollywoodianos. Dentre eles está Guru Dutt, cuja obra-prima é Pyaasa, história de Vijay, um poeta sem reconhecimento. A cena inicial de Pyaasa dá a tônica de como se desenvolverá o filme. Vijay deitado à relva. Sonha acordado. O mundo ao seu redor é belo. Uma abelha, que antes coletava néctar de uma flor, é então pisoteada por um homem cuja face nunca nos é mostrada. O pé que mata o inseto é uma abstração. Vem a solidão do poeta. No mundo material, não há espaço para sua poesia.
É uma prostituta, Gulabo, a primeira a reconhecer a qualidade da poesia de Vijay. Os marginalizados se atraem – são deles os mais belos cantos. Além dela, há Meena, antiga namorada de faculdade de Vijay, pertencente à alta sociedade, casada por interesse com o poderoso editor Ghosh. É com ela que ocorre, dentro de um elevador, uma das mais belas cenas do filme – permeada por uma também bela sequência de sonho e memória –, em que o passado persiste como um sonho frustrado. Dutt, como os grandes diretores do cinema clássico-narrativo, dramatiza a situação através de um elemento de cena, no caso o elevador, isto é, sua funcionalidade intrínseca de locomoção para cima e para baixo É entre essas duas mulheres que se vendem por dinheiro que flui a existência de Vijay: a marginalização extrema e a sede por reconhecimento.
Guru Dutt, que além de dirigir e produzir o filme, interpreta o protagonista, também era queimado por uma chama interior. Homem solitário, suicidou-se aos 39 anos. Pyaasa era até então seu projeto mais passional e pessoal (Dutt planejava-o desde 1952), sendo superado dois anos depois em ambos quesitos por Kaagaz Ke Phool, canção de cisne mal recebida pelo público e pela crítica.
Ainda que Dutt fosse tachado como cineasta comercial, sua mise en scène possuía uma inegável qualidade poética – capaz de unir a fantasia e a escuridão como almejavam, por exemplo, os cineastas do realismo poético francês – poucas vezes equiparada dentro do cinema musical.
O filme de Guru Dutt se assemelha visualmente menos aos musicais hollywoodianos da era de ouro do que ao barroco de Sternberg e de Welles. Nunca um musical melodramático fez tanto uso das sombras para envolver seus protagonistas tal qual um filme noir (não é por acaso que o livro de poesia escrito por Vijay seja intitulado “Sombras”). Jamais os corpos distantes foram filmados tão de perto através de movimentos de câmera que, ao mesmo tempo que libertam, aprisionam. Os dollys, como uma flecha, cortam o décor com elegância em direção ao polo dramático da cena, como na festa realizada por Ghosh em que Vijay, trabalhando como garçom, canta sua infelicidade no amor.
A câmera flutua então, lentamente, rumo a Meena, primeiro amor e primeira decepção. Esse movimento é a materialização das notas musicais, que arrebatam seus ouvintes. No filme, as canções surgem como os sentimentos: sem aviso prévio. As músicas são importantes elementos dramáticos, despertam uma nova camada de profundidade que atinge pontos que poderiam tão somente ser sugeridos pelo diálogo. São a mais pura expressão da alma. Daí a naturalidade com que são inseridas em cena.
Em Pyaasa a sede do artista – seja poeta ou cineasta – é tida como insaciável. Insaciável pois seu papel nunca terá espaço dentro da sociedade. Deve-se estar à margem dela. Ainda que exista o reconhecimento da figura artística pública, o artista sempre será um pária. É derrotada, ainda que não saiba, a sociedade, pois a abstenção é também triunfo. Pode ser o íntimo fracasso muito mais prazeroso, belo e honroso que o público sucesso?
Em Pyaasa, Guru Dutt nos mostra que sim.
Pedro Serpa
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