Retratos fantasmas, de Kleber Mendonça Filho

por Julia Levy

Imagem de divulgação do filme Retratos fantasmas de Kleber Mendonça Filho

Uma sessão de um filme brasileiro, cheia, num sábado à noite (09/09/2023) não pode passar sem ser comemorada depois de tudo que vivemos nos últimos anos. O filme de Kleber Mendonça traz uma infinidade de emoções e lembranças principalmente para aqueles que pertencem a gerações que puderam frequentar os “palácios de rua”, ou para aqueles que hoje aproveitam as raras oportunidades remanescentes. Nem todos mergulham tão profundamente na relação com os filmes e salas como faz o diretor mas, certamente, são muitas as histórias que podem ser revisitadas por cada espectador.

Retratos fantasmas também evoca outros importantes documentários sobre salas de cinema de rua e transformações urbanas como o Rio de cinemas (2001) das diretoras Nice Benedicts, Silvia Fraiha e Juliana Carvalho. Entretanto, as reflexões e perguntas que Kleber Mendonça levanta sobre a decadência do centro de Recife, o fechamento dos cinemas e o percurso fluido do dinheiro, coloca o filme também como documento crítico sobre essas transformações, tal como pode ser observado na obra do coletivo carioca Subúrbio em Transe¹, coordenado pelo geógrafo Luiz Claudio Motta Lima. Em Cine Vaz Lobo, em versão curta (2015) e de média-metragem (2019), o grupo levanta questionamentos semelhantes sobre as transformações da cidade, mais precisamente dos bairros do subúrbio carioca. Na verdade, as criações desse coletivo são um verdadeiro inventário das últimas grandes transformações urbanas por que passou a cidade do Rio de Janeiro. As supostas “melhorias” seriam exigências dos grandes eventos esportivos que a cidade sediaria, mas que na realidade são pretextos para movimentos especulativos cuja face mais concreta se desdobra em remoções violentas, implosões, superfaturamentos etc. Mas o coletivo também registra que houve resistência e denúncias, e Cine Vaz Lobo também expõe como os moradores conseguiram desviar o traçado original da Transcarioca para não demolir o antigo cinema do bairro.

Imagem de divulgação do filme Cine Vaz Lobo de Luiz Claudio Lima

Em Retratos Fantasmas, podemos ver alternativas factíveis que mantêm o Cinema São Luiz de Recife em funcionamento e, como os demais filmes citados, percebemos que muitos processos de preservação da memória cultural têm se construído à revelia das políticas públicas. Muitos incêndios e desastres têm destruído parte significativa da memória cultural brasileira devido à omissão de diversas instâncias públicas que poderiam implementar ou apoiar ações de preservação com a mesma rapidez que destombam prédios ou concedem incentivos fiscais em grandes acordões empresariais. Particularmente a prefeitura do Rio de Janeiro, que tanto alardeia seus investimentos em “melhorias” urbanas e “vende” a cidade como “cenário” e “cartão postal do Brasil”, deveria dar o exemplo desenvolvendo ações públicas para inverter a lógica especulativa do capital, começando pelo entendimento sobre a importância artístico-cultural desses espaços e da área da cultura para a vida.

Assisti a Retratos fantasmas numa dessas remanescentes salas de rua do bairro de Botafogo que para sobreviver teve que agregar ao nome da sala à marca do patrocinador. No final da sessão, o público aplaudiu o filme e a maioria das pessoas só se levantou após os créditos se encerrarem, um ritual inusual para os tempos de streaming.

Além disso, a partir das reflexões do próprio diretor sobre seus filmes, Retratos fantasmas também nos convida a revisitar suas obras (não como “produtos” ou “mercadorias”) e a pensá-las como um mosaico que vai se encaixando e complexificando a cada novo filme.

Por fim, merecem destaque os detalhes sobre as propriedades dos cinemas do Recife e suas relações com o poder, sejam eles locais, ditatoriais ou nazistas, já que essas salas ocupavam localidades de grande valor imobiliário, e que, em determinado momento da acumulação capitalista no século XX, foram peças chave. Nesse sentido, e tentando entender embates atuais e aproveitando a deixa sobre os grupos envolvidos nesse “negócio”, se faz necessário lembrar que, apesar de uma grande negociação imobiliária envolvendo “destombamentos” e negociações com a Prefeitura do Rio nos idos de 2014 e 2015, a família Severiano Ribeiro iniciou as reformas do cinema Leblon para atender as necessidades econômicas do grupo. Todo o drama do fechamento do Cine Leblon foi documentado em jornais locais e nacionais. Nos últimos anos, a mesma empresa também fechou o Cine Roxy em Copacabana e o Cine Odeon hoje só funciona para eventos pontuais.

Sobre a recorrência das transformações de cinemas e prédios antigos em estacionamentos em bairros centrais das cidades, Crônica da demolição (2017) de Eduardo Ades conseguiu reconstruir recentemente os fatos sobre uma das mais polêmicas demolições cariocas que transformou o prédio do Senado Federal (quando a cidade ainda era a capital) num enorme estacionamento.

Cartaz do filme Crônica da demolição de Eduardo Ades

Esses filmes são a forma como seus diretores refletem e buscam respostas sobre as transformações sociais dos últimos tempos, algumas muito violentas, como falamos. A busca por esse entendimento também se relaciona com a análise realizada pelo ex-professor de Economia Política da UFF, Mário Duayer em “Capital: More human than human (Blade Runner e a barbárie do capital)”². Texto denso que não pode ser resumido apenas como crítica cinematográfica – embora ele mesmo considerasse a melhor crítica escrita sobre este filme –, o artigo parte da análise da obra de Ridley Scott para apresentar as características da sociedade capitalista baseando-se, principalmente, mas não apenas, na obra madura de Karl Marx. O texto também pode ser lido como uma síntese da trajetória intelectual do professor, que dedicou décadas de pesquisa aos autores marxistas no intuito de chegar a respostas sobre as brutalidades que a vida na sociedade do capital impõe a todos nós. No que tem em comum com os filmes aqui citados, podemos dizer que Duayer nos auxilia, por meio do filme de Scott, a entendermos os movimentos do capital e suas necessidades expansivas (e desumanas). As reflexões de Kleber Mendonça Filho talvez não tenham as mesmas bases teóricas de Duayer, mas sua sensibilidade diante das transformações urbanas o faz buscar respostas semelhantes para esse movimento do “dinheiro” (ou “capital”).

(texto originalmente postado no perfil da autora no instagram no dia 10 de setembro de 2023, com algumas pequenas revisões para ser publicado no site da Cinemateca do MAM)

Julia Levy é pesquisadora e produtora de audiovisual e doutoranda em economia pela Universidade Federal Fluminense. Integra o ELVIRAS – Coletivo de mulheres críticas de cinema.

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1 Os filmes do coletivo Subúrbio em Transe estão disponíveis no canal deles do YouTube.
2 O texto “Capital: More human than human (Blade Runner e a barbárie do capital)” de Mario Duayer está disponível no site do Grupo de estudos e pesquisas em ontologia (Gepoc-UFF).

Este artigo faz parte da sessão especial do filme Retratos fantasmas, com exibição em cópia de 35mm, que a Cinemateca do MAM promove em abril de 2023.






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