Retrospectiva Howard Hawks

Scarface, 1932, divulgação.

Sumário

Férias com Howard Hawks, por Gabriel Linhares Falcão

Uma noiva em cada porto (A Girl in Every Port, 1929), por Lucas Saturnino
A patrulha da madrugada (The Dawn Patrol, 1930), por André Fernandes
O código penal (The Criminal Code, 1930), por João Pedro Faro
Scarface – A vergonha de uma nação (Scarface, 1932), por Carolina Azevedo
Suprema conquista (Twentieth Century, 1934), por Henrique Quadros
Duas almas se encontram (Barbary Coast, 1935), por Gilberto Silva Jr.
Heróis do ar (Ceiling Zero, 1936), por Rafael Miranda
Meu filho é meu rival (Come and Get It, 1936), por Rubens Fabricio Anzolin
Levada da breca (Bringing Up Baby, 1938), por Pedro Serpa
O paraíso infernal (Only Angels Have Wings, 1939), por Letícia Weber Jarek
Jejum de amor (His Girl Friday, 1940), por Roberta Pedrosa
Bola de fogo (Ball of Fire, 1942), por Ruy Gardnier
Águias americanas (Air Force, 1943), por Gabriel Carvalho
Uma aventura na Martinica (To Have and Have Not, 1944), por Paulo Martins Filho
À beira do abismo (The Big Sleep, 1946), por Luiz Carlos Oliveira Jr.
Rio Vermelho (Red River, 1948), por Filipe Furtado
A noiva era ele (I Was a Male War Bride, 1949), por Raul Arthuso
O monstro do Ártico (The Thing from Another World, 1951), por Beatriz Saldanha
O rio da aventura (The Big Sky, 1952), por Gabriel Papaléo
O inventor da mocidade (Monkey Business), por Inácio Araújo
Os homens preferem as louras (Gentlemen Prefer Blondes, 1953), por Paula Mermelstein
Terra dos faraós (Land of the Pharaohs, 1955), por Luca Nicolleli
Onde começa o inferno (Rio Bravo, 1959), por Hernani Heffner
Hatari (Hatari!, 1962), por Lucas Bueno
O esporte favorito dos homens (Man’s Favorite Sport?, 1964), por Tomás Farias
Faixa vermelha 7000 (Red Line 7000, 1965), por Anita Gonçalves
El Dorado (El Dorado, 1966), por Matheus Zenom
Rio Lobo (Rio Lobo, 1970), por Igor Nolasco


Férias com Howard Hawks
por Gabriel Linhares Falcão

Filmagem de O paraíso infernal com Howard Hawks, Jean Arthur, Cary Grant, Rita Hayworth e Richard Barthelmess em primeiro plano.

Aproveitando a ocasião da Retrospectiva Howard Hawks, bem nas férias de julho de 2023 na Cinemateca do MAM, falaremos de dois aspectos do estilo do diretor, não diametricamente opostos, porém essenciais na estipulação de tensões em sua forma dramática. De um lado, a sensação de isolamento que permeia suas encenações, modelada ao longo das aventuras de maneira a bloquear as saídas dos protagonistas ao armar confinamentos encadeados no trajeto das histórias. Indo de espaços menores como pequenos cômodos, bares e celas, a maiores como hotéis e transatlânticos, até uma escala narrativa num sentido mais amplo e intangível, em que ocorre um isolamento social, como se filmasse Adões e Evas (nome dos protagonistas de seu segundo filme, Fig Leaves) dando início a um mundo que acaba de começar, fechado na própria ficção e em suas respectivas leis. De outro, um estado que, a princípio, denominaremos de férias, que garantem aos heróis uma postura descontraída irrevogável, fazendo com que até os momentos mais sérios e dramáticos sejam encarados com certo divertimento, estando no sangue dos personagens um ensejo de loucura a ser utilizado como possível ferramenta disruptiva para encarar os obstáculos vindouros. Essa relação entre arranjo e tom permitiram que Hawks transitasse pelos mais variados gêneros ao longo de sua carreira na indústria hollywoodiana sem perder sua marca. Suas encenações representam uma utopia em que o indivíduo exerce domínio sobre as pressões do cotidiano pelas forças do companheirismo e do prazer; seguindo nossa especificidade, seus personagens não trabalham por férias, mas, a partir da extensão da comédia, fazem das férias a própria abordagem do trabalho, abolindo as lógicas de recompensa. Como em El Dorado, seu western tardio de xerifes velhos, é preferível trabalhar de bengalas apoiando-se na fraternidade a se aposentar.

O isolamento é fruto da importância que Hawks dá ao profissionalismo de seus personagens, que os obrigam a executar seus deveres e tarefas, ancorando-os em diferentes situações e espaços confinantes. O diretor acompanha seus heróis à espreita, por sequências bastante longas, de continuidade metódica inabalável, nunca abandonando a câmera na altura do olhar. Em contraposição, e por impregnação dos gestos, seus personagens não destituem prazer e lazer da execução de suas funções, de maneira que suas ações ganham sentido mais pelos sentimentos envolvidos (frutos da amizade, solidariedade, camaradagem, amor, sedução…) que pelo cumprimento dos trabalhos em si. Assim, promove suas consagradas dinâmicas de grupos e de duplas, com as mais potentes químicas entre atores, de entrosamentos tão verdadeiros que nos fazem duvidar do caráter premeditado das performances e coreografias, fazendo tudo soar como uma coleção de achados espontâneos coletados com rigor durante as filmagens de atores que parecem contracenar por telepatia. Hawks, ao dar importância maior aos relacionamentos, deixa esvaziar aos poucos o sentido do trabalho, contudo, de maneira que nunca o torna maquínico e repetitivo, já que o prazer, fruto da consciência constante, remodela as ações em infinitas variações, driblando por uma teatralidade oculta, transparente e revigorante, toda possível cotidianidade dos gestos.

Seus heróis são xerifes, pilotos, motoristas, corredores, esportistas, detetives, caçadores: as profissões ideais para as narrativas de Hawks são as que envolvem perigo iminente, intercalando momentos de monotonia (afinal, encarar os personagens à espreita abarca os afazeres mundanos em suas longas sequências) com os de êxtase, permitindo que se apresente as relações nos tempos de calma e que se aproprie da euforia periculosa para afinar os entrosamentos ao encarar catarses e reviravoltas que os coloca de frente com suas mortalidades.

Hawks opera no plano do visível e das evidências, tudo é filmado com frontalidade, evitando ao máximo sugestões de ações pela montagem. Essa confiança na realidade mesma mensura constantemente os domínios do possível e do impossível, demonstrando inteligência ao dar forma concreta às intrigas mantendo-se fiel à continuidade ortodoxa. Os hitchcock-hawksianos dos cadernos amarelos da revista Cahiers du Cinéma apontaram polemicamente o diretor não só como um exímio autor, mas um instigante caso de observação entre o clássico e o moderno, pois, em seu estilo, esses parâmetros parecem se apresentar em comunhão. Enquanto sua impecável transparência por planos longos, que dá forma à ficção isolada em si mesma, fazia uma margem com as vocações do classicismo, na outra margem, a do modernismo, a mesma duração extensa abrangia ações e detalhes mundanos que escapavam à justeza estrita da necessidade narrativa, promovendo histórias heroicas cheias de curvas, de falsas digressões que constituíam arcos dramáticos sinuosos. A arte de Hawks não é a de depurar para se ater apenas àquilo que é necessário, mas sim a de tornar necessário, dar sentido ao insignificante encontrando o sentimento por trás do gesto sem cair em sentimentalismo, formando narrativas que nunca esclarecem seu sentido total, a não ser o de desafiar os próprios limites do possível, do filme e do indivíduo.

Essa fusão entre o clássico e o moderno em um único traço também reflete um outro casamento da obra de Hawks: o do drama da aventura com a comédia louca, as modalidades que perpassam todos os gêneros com que ele trabalhou. Enquanto o drama da aventura fornece as ferramentas físicas para conceder peso, criando obstáculos, dificultando saídas, estipulando metas, apresentando o risco de perda, a comédia louca possibilita qualquer ultrapassagem por meio da reconfiguração da materialidade dos objetos cênicos, pela disrupção das leis até então estabelecidas e pela revisão pelos parâmetros da leveza dos pesos concedidos pela aventura. Vejamos em Uma aventura na Martinica, filme como menos espaço para a comédia: em momentos de total afunilamento narrativo e confinamento dos protagonistas (Humphrey Bogart e Lauren Bacall), tiros começam a atravessar objetos cênicos improváveis – para dar evidência visível em casos impossíveis, reconfigure a materialidade –, carteiras são roubadas sem flagrante do espectador – a palavra também é evidência, acredite, assim como a carteira na mão –, personagens revelam sua presença pelo cheiro – se a palavra é evidência frágil pois pode ser reconfigurada como mentira, por outro lado, uma de suas principais forças está na transmissão das evidências percebidas por meio de outros sentidos.

Em O inventor da mocidade, filme que inspirou o texto seminal de Jacques Rivette intitulado “O Gênio de Hawks”, temos um caso excepcional em que trabalho e férias, assim como clássico e moderno, se destituem pela acentuação irrefreável da parcela moderna e sem compromissos funcionais narrativos. Nesse filme, há um jogo de duplos a partir de uma poção da juventude feita acidentalmente, por um macaco em um laboratório, que liberta os personagens dos limites da racionalidade, assim como concede aos atores a dádiva da improvisação anárquica, neste caso, tão excessivamente juvenil que alcança o infantil. Não por acaso, cineastas posteriores como o próprio Rivette e Rogério Sganzerla, que dialogaram fortemente com os teatros experimentais de suas épocas, viam Howard Hawks com enorme admiração, podendo apontar O inventor da mocidade como um epítome possível para essa ponte.

A base dessa veia teatral, assim como a não cotidianidade das interações, reside no constante duelo de corpos e de palavras, nos jogos sedutores de presa e predador que selecionam os confiáveis aptos a participarem dessas pequenas comunidades pautadas na solidariedade, camaradagem e eficiência profissional. Seus laços mais fortes são entre os personagens do mesmo sexo, em especial entre homens, que protagonizam a grande maioria de seus filmes. A fraternidade é gradualmente fortificada ao longo de suas histórias, e a guerra dos sexos é evidente, sendo as mulheres, em especial, vistas pelos homens como predadoras que os desvirtuariam de suas respectivas amizades e trabalhos. No exame de aptidão da “sociedade hawksiana”, as mulheres são as que mais precisam lutar pela sua inclusão, assumindo até mesmo o papel de predadoras para conquistarem aquilo que desejam enquanto se divertem com os bloqueios masculinos. No caso de Os homens preferem as louras, filme exceção em que a amizade é entre as protagonistas mulheres Jane Russell e Marilyn Monroe, ambas se assumem como as grandes predadoras da filmografia de Hawks, e, tendo o privilégio da seleção daqueles que estarão aos seus lados, também se sentem em vários momentos como possíveis presas. O outro sexo, em sua obra, apresenta aos personagens o risco de perda do domínio consciente sobre as pressões do cotidiano e da possibilidade de constante abordagem de férias. Em casos como os de Humphrey Bogart e Lauren Bacall, um dos casais mais bem entrosados a aparecer nas telas, ao encarar de frente esse risco de perda, os dois tornavam gradualmente suas aventuras singulares em uma só. A forte sedução emanada das interações da dupla não apenas provava a química única dos dois predadores, mas também carregava em sua sombra as batalhas individuais para garantir o domínio sobre o perigo iminente dos filmes noir. Suas fragilidades eram expostas em face à consciência da mortalidade do outro, chegando assim à concessão incontornável da entrega.

A arte de Hawks é também a da organicidade, dos improvisos planejados frutos de uma imaginação anárquica e comunitária no seio de Hollywood. As liberdades das narrativas e das encenações são garantias irrevogáveis de seu trabalho, se materializando no divertimento. A partir do distanciamento perfeito entre câmera e atores, os filmes nunca escapam do domínio e da consciência do diretor. Revogável é o controle, esse só levaria ao academicismo, e seus filmes fogem de toda repetição fácil e cotidiana. O perigo é preferível. E as férias, um comprometimento.

Uma noiva em cada porto
(A Girl in Every Port, 1929)
por Lucas Saturnino

No mundo que toma forma em A Girl in Every Port (Uma noiva em cada porto, de Howard Hawks, 1928), as interações interpessoais são condicionadas por uma razão estrutural segundo a qual as relações heterossexuais vão se modelando em oposição às relações homossociais e vice-versa. A trama é simples e o seu desenrolar é ordenado de maneira elementar: de partida, somos apresentados à conduta libertina de um marinheiro (Victor McLaglen) que se apraz em seduzir mulheres em escala global, mas logo ele passa a ficar inquieto ao constatar que outro homem também estaria gozando da companhia das mesmas mulheres; eventualmente, os dois se esbarram, brigam, até do alvoroço gerado por essa desavença acabar surgindo uma amizade já fortalecida pela origem imprevista e repentina de seus laços fraternais; por fim, o personagem de McLaglen é arrebatado por uma mulher (Louise Brooks) cujas intenções dissimuladas vêm a se colocar entre ele e o amigo (Robert Armstrong). Ao centrar a ação fílmica na dinâmica de um sistema convivial — encenando uma série de encontros e de situações que representem uma ritualística própria à condução de uma dada camaradagem porventura circunstancial —, Hawks faz despontar aqui muito do basilar à sua metodologia estilística e à sua poética característica, o que torna A Girl in Every Port peça-chave no processo de maturação de sua obra.

Com Hawks, o cerne da questão, bem como a matéria da ação, costuma ser comportamental. No caso, refere-se ao relacionamento dos dois marinheiros — enredados em afetos masculinos, no intercalar libidinal de rivalidades narcísicas, simpatias fraternais e provações sexuais. Tendo sido esse filme descrito pelo próprio cineasta como “uma história de amor entre dois homens”, à medida que a jornada deles se encaminhará para o elogio dessa tal lealdade masculina interdita às mulheres — as que estão aqui em cena ainda não são as “mulheres hawksianas” arquetípicas, espirituosamente assertivas quanto ao seu papel proativo. Nesse A Girl in Every Port, sob outro enfoque, Louise Brooks assume é a dupla função figurativa e simbólica que remete à ansiedade psicossexual com relação às novas maneiras da “mulher moderna” naqueles anos 1920, embora menos articuladas a nível dramatúrgico do que prontamente codificadas pela aparência da atriz — que apenas na Europa disporia de abordagem mais oportuna à dimensão de sua desenvoltura (Pabst teria decidido escalá-la em Die Büchse der Pandora por conta do filme de Hawks, sendo assim o princípio da lenda de Louise Brooks, conquanto alicerçada postfactum, a começar pelos esforços de James Card, Henri Langlois e Lotte Eisner em meados da década de 1950).

Langlois descreve o lançamento parisiense de A Girl in Every Port, em 1928, como um evento marcante no círculo que então virava as costas aos ditames do expressionismo: no filme estaria refletida a estética do tempo presente, o que passaria pela presença de Brooks, a quem Langlois chama “artista moderna por excelência” — atribuindo a ela o mesmo que afamaria Hawks em termos críticos: o estilo dito invisível. Pois, com efeito, a compostura desafetada dela contrasta aqui com a comédia física na qual McLaglen e Armstrong estão engajados; além de se distinguir das performances, por exemplo, de Clara Bow (a maior estrela feminina de Hollywood à época, por quem Brooks expressou muita admiração ao longo da vida). A Girl in Every Port apresenta-a num papel à moda das flappers sensualmente incontíveis que eram associadas a Bow, e também prenunciando algo da feminilidade posta em cena por Marlene Dietrich (preterida por Pabst no casting de Die Büchse der Pandora) em parceria com Josef von Sternberg — no que se refere à agência sexual da personagem-mulher perante a autoafirmação voluptuosa de seus interesses, desmantelando a húbris dos homens conforme eles se descobrem presas na cadeia da sedução. Escrevendo em 1963 — ou seja, respaldando-se pelo porvir —, o discurso de Langlois sobre a experiência de assistir ao filme de Hawks em 1928 define-a como se tivesse sido ver “o futuro”. E aos olhos de 2023, o que permanece a fazer jus a essa alcunha não é senão o frescor de Brooks.

A partir desse A Girl in Every Port, argumenta João Bénard da Costa, “Hawks se desprende do estigma do murnausianismo para, pela primeira vez, declarar o seu universo”. Vide a sequência do mergulho de Mam’selle Godiva, na qual Brooks surge para o filme, sob o olhar extasiado de McLaglen: a decupagem da acrobacia circense é marcada pelo desassombro, prescindindo das estratégias pictorialistas mais artificiosas em prol do matter-of-factness erótico. Por outro lado, se Bénard da Costa qualifica a influência de Murnau como o “fantasma alemão” do qual Hawks teria precisado se apartar, o que possa haver de insatisfatório na composição da comédia sexual talvez se deva à prática ainda dessazonada do gênero em Hollywood, antes de outro “fantasma alemão” — i.e., Lubitsch — nele consolidar a forma que desencadearia a era das screwballs. O biógrafo de Hawks, Todd McCarthy, especula que o cineasta teria extraído o mote da “história de amor entre dois homens” — o qual muito tornaria a ser mobilizado por ele — da sua longeva amizade com Victor Fleming (curiosamente, então recém-saído do noivado com a mesma Clara Bow que em vários sentidos foi precursora direta de Brooks). Pouco antes de falecer, o último roteiro que Hawks chegou a desenvolver consistia numa reimaginação de A Girl in Every Port: chamar-se-ia When It’s Hot Play It Cool e concluiria com uma cena cômica na qual os amigos adormecem juntos numa cama compartilhada (“manifestação do seu homoerotismo subjacente, ingênuo e instintivo”, escreve McCarthy), porém o projeto nunca saiu do papel.

A patrulha da madrugada
(The Dawn Patrol, 1930)
por André Fernandes

A aviação é um tema que aparece de forma recorrente na filmografia de Howard Hawks, mas se engana quem pensa que o diretor iniciou suas aventuras nos céus com o clássico incontornável O paraíso infernal. A paixão de Hawks pelos aviões no cinema iniciou-se uma década antes, com o filme Conquistando os ares (The Air Circus, 1928), em que dois estudantes de uma escola de aviação competem pelo amor de uma de suas instrutoras. Infelizmente, o filme é considerado perdido, e o pouco que se sabe é que esse supostamente seria o primeiro longa falado do diretor, pois apesar de ter sido finalizado como um filme mudo, o estúdio contratou um roteirista para inserir 15 minutos de diálogos com áudio na pós-produção.

Em 1930, Hawks produziu oficialmente seu primeiro filme falado, A patrulha da madrugada, novamente colocando a aviação como uma das peças-chave de sua obra. A história gira em torno de um esquadrão da Força Aérea Real Britânica que está estacionado em uma base aérea francesa e recebe ordens constantes para enviar seus pilotos, mesmo inexperientes, em missões de alto risco. O esquadrão é liderado pelo experiente Capitão Courtney (interpretado por Richard Barthelmess) mas é interessante perceber como o filme questiona não apenas a liderança de Courtney em si mas também o significado da figura do líder em uma situação de conflito extremo.

Em poucos minutos de projeção, o cineasta já demonstra total controle do uso do som diegético. Um exemplo claro pode ser percebido quando somos apresentados ao Major Brand (interpretado por Neil Hamilton) enquanto ele aguarda o retorno do esquadrão em sua sala de comando. Ao ouvir os motores dos aviões chegando, Brand não deixa a sala ou olha por sua janela, apenas faz as contas de quantos aviões retornaram e subtrai da quantidade que havia deixado a base para a missão. Dessa forma, o elemento sonoro se torna central para reforçar a ideia de um círculo vicioso, já que não somente o próprio Major Brand irá repetir essa ação, mas também o Capitão Courtney dará continuidade após assumir o comando da base.

A morte constantemente paira sobre os personagens de Howard Hawks em A patrulha da madrugada, e apesar da literalidade das perdas que acontecem naturalmente em um cenário de guerra, a morte enquanto ideia se faz ainda mais presente: seja na canção entoada pelos pilotos (“um brinde para os que já estão mortos, um viva para o próximo homem a morrer”), nos nomes dos membros do esquadrão que são apagados do quadro negro para serem substituídos, e até mesmo nas reações de Brand e Courtney ao receberem as ordens da próxima missão que irá custar as vidas de seus subordinados, pois ambos sabem que nada podem fazer para alterar o destino. É como se todos os personagens estivessem fadados a reprisarem os próprios papéis até a morte ou até que herdem os cargos de seus superiores, para então repetirem os papéis destes.

Mesmo perto de completar 100 anos de existência, A patrulha da madrugada segue impressionando espectadores não apenas pela força de suas atuações e pela postura crítica à guerra, mas também pelo dinamismo de suas cenas de combate aéreo – gravadas com auxílio de aviões reais cedidos pela Força Aérea dos Estados Unidos. E, apesar não figurar entre os filmes mais reconhecidos ou vistos da brilhante carreira de Howard Hawks, o longa apresenta diversas características que seriam utilizadas posteriormente em outros trabalhos do diretor, como a camaradagem entre personagens masculinos e a postura impassível e profissional diante de situações de alto risco.

Em uma das cenas mais emocionantes do filme, Scott (Douglas Fairbanks Jr.) questiona a liderança do então Comandante Courtney e o acusa de assassinato após seu irmão mais novo, Donny (William Janney), recém-formado na escola de aviação, ter sido morto em sua primeira missão no esquadrão. A complexidade dramática é evidente pelo fim da amizade entre os dois, mas é curioso notar como Hawks utiliza a cena para espelhar os confrontos que Courtney tinha com o Major Brand, consolidando a ideia de que seus personagens não possuem qualquer poder de escolha, os comportamentos apenas se repetem em um lugar em que a única certeza é a morte que acompanha cada alvorada. É bem verdade que Courtney consegue se redimir no ato final, mas, apesar de sua bravura, o plano final apresenta Scott como novo Comandante e volta a reiterar a ideia de que nada realmente vai mudar, como diz o Tenente Phipps (Edmund Breon) em dado momento do filme: “só continua e continua…”

O código penal
(The Criminal Code, 1930)
por João Pedro Faro

O código penal é das típicas descidas ao inferno proporcionadas pela Hollywood pre-code, sendo a condição regulamentária da realidade seu principal fio de encenação. É um filme de prisão, onde materializam-se rigidamente nas paredes de concreto os códigos comportamentais que dimensionam toda a sua dramaturgia, cada um dos sets demonstrando diferentes níveis estruturais de condenação humana.

As primeiras sequências estabelecem essa jornada dimensional. Os protagonistas aparecem mediados por coadjuvantes, apresentados em segundo plano, e nos aproximamos de seus rostos a partir de etapas. Phillips Holmes é preso por homicídio em seu aniversário de 21 anos, com a prisão decretada pelo promotor Walter Huston. O paternalismo empregado pelo representante da justiça é parte da condenação vivida por Holmes ao longo do filme, sendo estabelecida uma amargura absoluta em sua passagem para a maioridade, uma deserção radical. Sua primeira noite como um adulto é imediatamente amaldiçoada pela condição criminal, o que pavimenta a justiça como um braço familiar deforme do envelhecimento, o Estado como protetor não-requisitado do indivíduo, um pai presente, pronto para empreender os castigos necessários. A carta que anuncia a morte da mãe, na primeira cena da cadeia, confirma esse laço sinistro.

Os espaços mediam os níveis de desesperança. A cela, onde três prisioneiros dividem o espaço, é incapaz de afastar os planos dos atores. Boris Karloff é enquadrado em um close desviante, o foco beirando seu ombro, enquanto o rosto em desfoque estabelece a compressão do espaço punitivo. O pátio da prisão, preenchido por centenas de figurantes em uma verdadeira onda de relações masculinas, emprega a capacidade coletiva do isolamento, uma recorrência autoral que encontra em O código penal alguma reformulação complexa. Se a comunhão promovida pela proximidade intensa entre rapazes isolados acaba em uma impossibilidade de lidar com a liberdade, do que vale a permanência de suas regras comunitárias? Holmes se encontra em um nó praticamente filosófico: qual regimento da realidade comunica com sua própria existência? A resposta é encaminhada por uma resolução igualmente recorrente, que é o romance insurrecionista. Constance Cummings, filha de Walter Huston, incapacita a resolução prisioneira, sendo a paixão desenvolvida por Holmes, ao encarar a jovem pela primeira vez, sua única brecha para uma dimensão exterior (ou seja, dentro da lei).

Huston não é exatamente um herói. É um protagonista estranho, que acredita no código penal como um escrito religioso. Atravessa o pátio da prisão, recheado de figurantes carrancudos, como se blindado por uma moral inabalável, um exemplo de integridade. Porém, pelo nível de espelhamento entre o código da lei e o código dos prisioneiros, quando a organização entre os presos será demonstrada como uma sindicalização de moralidades particulares, é enfraquecida qualquer superioridade que o sistema de justiça poderia demonstrar sobre sua contraparte. Pelo contrário, O código penal demonstra o ambiente da prisão como irreconciliatório.

Boris Karloff, meses antes de estrear Frankenstein, é quem agarra Holmes para as profundezas fatais da prisão. Figura verticalmente expansiva, de voz internamente reverberante, ele serve ao filme como espelho demente do personagem de Huston, o que mais se atém ao regimento social dos prisioneiros. Sacrificando a própria vida contra o código da lei, é uma aberração física, sintomática, que serve ao sistema carcerário como exemplar consequente de sua construção cênica. O momento climático em que ele assassina o dedo-duro, tornando-se uma ameaça verdadeira diante do filme, organiza de maneira direta a composição do longa: ao atravessar a sala do diretor para matar o sujeito em seu quarto, paralelo à entrada, empurra a presença da vítima para dentro do cômodo, até que as retas do quarto escondam o terror da morte (“em Hawks, estar morto é estar fora de quadro”, Serge Daney).

A prisão é um espaço dividido por linhas de ferro, projetado por sombras. O que atravessa os limites físicos são as desordens sonoras, como os yammerings dos prisioneiros. As sequências em que os encarcerados ecoam um som ensurdecedor de protesto carregam uma redimensionalização da construção dos planos, quando fades conectam os diferentes espaços em um mesmo estágio de reverberação.

O que parece ser mais constante em O Código Penal são essas dimensões trocadas, instigadas pelos limites das sistematizações do mundo. Ora estabelecida pelos polícias, ora pelos criminosos, o filme repete todas as suas chaves narrativas com personagens que repetem as mesmas frases, de novo e de novo. Ao invés de ações consequentes, ele parece constantemente buscar por reflexos, balanças imagéticas, algo que transforme os personagens em gêmeos semânticos que inevitavelmente comentem a condição um do outro.

Holmes comenta, em uma de suas primeiras cenas na cadeia: “Wouldn’t it be swell if you could sleep for a year at a time?” (“não seria bacana se a gente pudesse dormir um ano de uma vez?), imaginação desesperada de uma juventude sequestrada, temporalidade perdida nos dimensionamentos compressores. Em seu caminho de condenação, que vai da cela comunitária até o isolamento das masmorras mais profundas, permanecem capacidades de comunicação entre níveis de aprisionamento formal. Até que possa finalmente se libertar, nos braços da filha do carcereiro, Holmes precisa compreender que a condição em que se encontra é o enfrentamento com as demandas espaciais da vida adulta, quando a ordem familiar se torna um refúgio mais ambíguo de permanência. Entre o paternalismo do braço da justiça e o senso de camaradagem social do universo prisioneiro, só a paixão pode livrá-lo de seus ritos de passagem para um plano de sociabilidade dogmático, aproveitando essa fenda de libertação entre as paredes de estúdios quadrangulares.

Scarface – A vergonha de uma nação
(Scarface, 1932)
por Carolina Azevedo

Um dia enquanto joga golfe, Howard Hawks é surpreso por um telefonema de um homem que o havia processado por plágio alguns meses antes, pedindo para jogar uma partida com ele. O homem era o produtor Howard Hughes, e a resposta de Hawks foi um “não” furioso: “não estou no clima para jogar com um homem que está me processando!” Hughes pede para Hawks esperar ao lado do telefone. Minutos depois, o advogado do produtor liga dizendo que ele havia desistido do caso e para aguardar sr. Hughes em campo. O jogo inicia-se com várias recusas de Hawks, mas, até o décimo-oitavo buraco, Hughes já havia ganhado o interesse do cineasta em dirigir Scarface. Hawks diz que ganhou a partida, mas foi Hughes quem ganhou a direção que tanto queria para o filme de gangue que iria moldar o gênero tão caro ao cinema americano desde a época aos dias de hoje.

O filme abre com a sombra do protagonista Tony Camonte, que mata seu superior Big Louis Costillo após uma festa de ano novo na Chicago da Lei Seca. Sem preliminares, a cena estabelece o tom do filme e a personalidade de seu anti-herói: uma porta se abre, uma sombra crepita entre as paredes do salão, uma arma é apontada. A aparência limpa e unificada, o impulso rápido e o discurso direto; a transparência da arte que Susan Sontag pede do cinema em Contra a Interpretação são resumidos por Scarface. O simbolismo é substituído por dinâmicas de ação e reação, o que determina o ritmo do filme – muito mais rápido do que a média da época, algo que Hawks continuaria fazendo até que os atores começassem a atropelar as falas uns dos outros em His Girl Friday.

A transparência do filme também é elogiada por Jacques Rivette no ensaio que é considerado o responsável pela descoberta de Hawks pela cinefilia: em “O gênio de Hawks” (Cahiers du Cinéma, maio de 1953), o então crítico determina que “A evidência é a marca do gênio de Howard Hawks.” De volta à primeira cena, após o assassinato silencioso cometido por Camonte, nos deparamos com uma barbearia, onde aquele mesmo personagem que se estabeleceu firme e tranquilamente como assassino está agora deitado com toalhas cobrindo seu rosto. À chegada do policial, o rosto do criminoso se revela em uma grande cicatriz em formato de X.

Hawks conta em entrevista a Rivette – também na Cahiers du Cinéma, três anos depois do ensaio sobre o gênio americano – que o roteiro foi desenvolvido em onze dias. Partindo do livro homônimo escrito por Armitage Trail em 1929 baseado quase que completamente na vida de Al Capone, o roteiro foi liderado por Fred Pasley e Ben Hecht, respectivamente repórter nova-iorquino e roteirista ganhador do Oscar por Underworld (1927) de Josef von Sternberg. Hecht, que suspeitava de Hughes, pediu para ser pago diariamente, pois só gastaria um dia de trabalho caso o produtor fosse uma fraude – Hawks deve a isso a memória exata da quantidade de dias que acompanhou o processo de escrita. 

O grupo de roteiristas e o cineasta tinham em comum o gosto pelo jornalismo: buscaram os fatos para compor o filme em jornais e revistas que saíram na época em que Al Capone dominava as ruas de Chicago, de onde vêm a maioria dos detalhes e maneirismos do filme. Além de dar nome ao título – Capone era chamado de Scarface –, Hawks conta que jornais frequentemente publicavam fotos de um assassinato indicando “X marca o local onde o corpo foi encontrado”, daí a cicatriz no rosto de Muni e a reprodução gráfica do X no cenário de cada um dos quinze assassinatos do filme.

Um dos momentos mais marcantes do filme é quando morre Boris Karloff. Nas palavras de Truffaut: “Ele agacha para lançar uma bola em um jogo de boliche e não se levanta; um tiro de rifle o prostra. A câmera segue a bola que ele lançou enquanto derruba todos os pinos, exceto um que continua girando até finalmente cair, símbolo exato de Karloff, o último sobrevivente de uma gangue rival que foi exterminada por Muni. Isso não é literatura. Pode ser dança ou poesia. É certamente cinema.” Um X marca o strike no placar.

Em Scarface, a violência faz a história. Hawks diz que costumava fazer filmes sobre temas que o interessavam, sejam eles corridas de carro, aviação, faroeste, ou, nesse caso, a violência daquele período particular da história dos Estados Unidos. Dos quinze assassinatos que enchem a tela de sangue no decorrer do filme, um dos mais memoravelmente agressivos é aquele em que sete homens são mortos em uma garagem, cena que espelha o Massacre do dia de São Valentim em 1929, creditado à gangue de Al Capone.

Hoje, e sobretudo em comparação com o remake de Brian De Palma, a violência retratada não é de chocar o espectador. Não há gore ou violência explícita em cena, mas, do primeiro ao último minuto do filme, há alguém matando e morrendo, o que determinou o tom dos grandes filmes de gângster dali para frente. Na entrevista com Rivette, Hawks reconhece seu próprio sucesso: “Scarface ainda está sendo copiado – portanto ainda vive. Há quinze assassinatos em Scarface, e as pessoas diziam que eu era louco por ter tantos. Mas eu sabia que aquela era a história: a violência tornava a história interessante. Além disso, na prática, todos os filmes de gângster que surgiram após Scarface apenas reiteraram o mesmo conteúdo.”

Em um momento marcado pelo início da grande censura do Production Code Administration (PCA), em 1934, Scarface só pôde ser feito por conta da determinação de Hughes, que pediu para Hawks: “Que se dane o Código Hays – criado em 1930 mas só tornado padrão de censura interna em 1934 –, faça dele o mais realista e brutal possível”. Mas, assim como seus contemporâneos Alma no Lodo e Inimigo Público (respectivamente Little Caesar e The Public Enemy, ambos de 1931), o filme foi regulado pelo Código, cujo objetivo era censurar nudez, sexualidade, uso de drogas e criminalidade. Em Scarface, que ficou conhecido como um dos filmes mais censurados na história de Hollywood, o foco estava na glamourização do crime. Sem autorização formal para retirar ou inserir cenas no filme, a organização atrasou em mais de um ano o seu lançamento. Para o lançamento oficial do filme em 1932, Hughes teve que eliminar as cenas mais violentas, adicionar o prólogo que condena criminalidade e mudar o final, que para os censores vangloriava o personagem de Paul Muni. 

Os censores não se atentaram, no entanto, à forma como o personagem de Muni é construído, desde o momento em que sua sombra surge em tela. Apesar de seus interesses variados, Hawks tem como elemento comum a quase todos os seus filmes o mote do homem em perigo. Na entrevista, ele diz: “O melhor drama para mim é aquele que mostra um homem em perigo. Não há ação onde não haja perigo. Segue-se que, se você alcançar uma ação real, deve haver perigo. Viver ou morrer! Que drama é maior?” Não há como não simpatizar com o bruto de Muni quando ele é representado com tanta exasperação. Vivemos sua raiva incestuosa quando ele vê sua irmã com outros homens, sua felicidade infantil ao ganhar uma arma automática e seu desejo frente ao olhar desinteressado da personagem de Karen Morley. Os momentos finais de Camonte após a morte de sua irmã são um detalhe na direção carregada de emoções que aguardam para explodir junto com o personagem no decorrer do filme inteiro.

De volta a Sontag, Scarface é um filme que nos devolve nossos sentidos: vemos, ouvimos e sentimos o que está em tela sem precisar ir além disso. O contraste das imagens, o volume dos tiros e a velocidade dos movimentos transformam a ideia em ação, prendendo a atenção pela eficácia e honestidade do que está em tela. Rivette elogia a continuidade de Hawks: o tempo e o espaço são testemunha dos acontecimentos e a beleza do filme não está nas simbologias, mas nos mecanismos que regem o universo de Tony Camonte. O filme é o que é, objetiva e diretamente, instigando estímulos e mobilizando encantos pela simples combinação entre imagem e palavra.

Svengali e Mata Hari em um trem para Nova York: a invenção da comédia screwball
Suprema conquista (Twentieth Century, 1934)

por Henrique Quadros

O termo screwball vem do vocabulário técnico do beisebol e se refere ao lançamento de uma bola em parafuso, mas também é uma gíria da primeira metade do século 20 para se referir a pessoas insanas. Como é que o termo acabou sendo associado a um gênero de comédias românticas da era clássica de Hollywood? Se tem alguém que pode ajudar a entender a origem das screwball comedies das décadas de 30 e 40, é o diretor americano Howard Hawks, e mais especificamente, seu filme de 1934, Suprema conquista.

A comédia romântica é um gênero tão antigo quanto o próprio cinema narrativo. Desde a época do cinema mudo havia a tradição do humor em cima de situações amorosas e aventuras eróticas, porém geralmente com um tom mais burlesco e jovial. Basta pensar nos filmes alemães de Ernst Lubitsch como A boneca do amor (1919) e Beijos que se vendem (1921) ou nas paródias metanarrativas de King Vidor como Filhinha querida (1928) e Fazendo fita (1928). Até os filmes de Buster Keaton e de Harold Lloyd normalmente envolviam uma jornada amorosa. Apenas mais tarde que um tom mais satírico foi associado ao gênero, e mais uma vez pode-se observar essa mudança com o próprio Lubitsch, que em Hollywood se torna o pioneiro com obras como O círculo do casamento (1924) e Em Paris é assim (1926), mas que apenas com a vinda do cinema sonoro desenvolveu completamente o seu famoso Lubitsch’s touch, com o qual suas comédias românticas satirizavam não apenas a cultura aristocrática europeia mas também as convenções do romance, do flerte, e do sexo. Os maiores exemplos são O tenente sedutor (1931), Uma hora contigo (1932), Ladrão de alcova (1932) e Sócios no amor (1933).

Desenvolve-se então uma tendência a parodiar o romance tradicional e explorar relações amorosas que fogem dos ideais, e por consequência questionar o tipo de convenção social que os constituía. É aí que entra Howard Hawks, que até então era conhecido por ter dirigido o grande sucesso Scarface, e que em 1934 adapta outro roteiro de Ben Hecht para um filme que, junto com o clássico de Frank Capra Aconteceu naquela noite (do mesmo ano), é considerado o começo oficial do gênero de “comédias malucas” ou screwball comedies.

A trama é uma história de amor nada convencional. Um diretor famosíssimo da Broadway chamado Oscar Jaffe (interpretado por John Barrymore) um dia descobre em uma modelo de lingerie chamada Mildred Plotka (Carole Lombard) o potencial de se tornar uma grande atriz. Ele a treina na arte do teatro e eventualmente Mildred se torna a grande estrela Lily Garland, um sucesso na Broadway. Como resultado, os dois se apaixonam. Anos – e várias peças bem sucedidas – depois, os dois se encontram numa relação turbulenta, em que Lily sente-se cada vez mais frustrada com a forma controladora que Oscar Jaffe a trata, e, após chegar no seu limite, ela decide aceitar um convite para trabalhar em Hollywood longe de Jaffe. Quando perde sua musa, o diretor cai num abismo existencial e torna-se incapaz de produzir novos sucessos com outras atrizes. Em um momento de crise, ele pega um trem de Chicago para Nova York, o Twentieth Century Limited, e – sem saber – embarca no mesmo veículo que Lily Garland e seu noivo.

Durante a longa viagem, Jaffe se lança numa conspiração para criar a cena perfeita que irá chamar Lily de volta aos palcos. Junto com seus assistentes, Jaffe constrói uma série de mentiras para conseguir chegar no coração de Lily, mas no processo os dois trocam incessantes gritos, chutes, xingamentos, esperneamentos e tudo de mais barulhento que pode ser capturado por uma câmera e pelo microfone. O caos reina a partir do momento em que os dois se encontram nesse trem. E esse é o tom que definiu todo o gênero das comédias screwball.

Howard Hawks, como diretor, deixou que Carole Lombard e John Barrymore fossem o mais criativos possível com seus personagens, não permitindo que eles hesitassem ou se segurassem na violência e até incentivando o exagero e improviso. Hawks recebeu dois atores que tinham a capacidade de invocar o caos em suas performances, mas que além disso trabalhavam em cima do caos um do outro sem atrapalhar a cena. Assistir a Suprema conquista é ver o que dois artistas extremamente profissionais conseguem atingir quando têm um bom material, um bom diretor, e uma boa relação de trabalho.

Mas não foram somente as performances que fizeram com que o filme fosse marcante. A própria caracterização e a situação em geral foram o suficiente para chacoalhar as convenções do romance no cinema. Enquanto Aconteceu naquela noite inovou com um casal que refletia as divisões de classe nos EUA e que contava com um humor mais sarcástico, Suprema conquista mostra um casal de mentirosos egocêntricos verborrágicos, cujo romance final é carregado por meio de uma guerra de egos e uma rede de mentiras. Lily é chorona, mimada e duas-caras, enquanto Jaffe é narcisista, controlador, mentiroso, e chega a ser comparado a Svengali. Um romance entre maníacos é construído, e o surpreendente resultado é que a audiência é capturada e completamente entretida pela intriga desses vilões.

A mudança de paradigma supracitada foi possivelmente a principal contribuição de Suprema conquista. Nos anos posteriores, Hawks continuou contribuindo para o gênero da comédia maluca com outras obras clássicas, como Levada da breca e Jejum de amor. Ambos são exemplos do que é possível atingir quando um bom diretor trabalha com dois atores afinadíssimos. Suprema conquista esteve ali no começo de uma revolução do humor norte-americano, e a contribuição de Howard Hawks para o tipo de comédia que foi produzida no período clássico de Hollywood é incomensurável. Na intenção de fazer um filme sobre dois doidos em um trem, Hawks acabou se eternizando em mais um gênero cinematográfico.

Duas almas se encontram
(Barbary Coast, 1935)

por Gilberto Silva Jr.

O conjunto da produção do cinema americano na década de 1930 oferece a visão de um vasto panorama no qual a consolidação da política dos grandes estúdios, associada à sedimentação dos gêneros cinematográficos clássicos, gerou uma obra rica em diversidade de estilos, superando rapidamente o impacto da chegada do som. Vimos o amadurecimento de uma arte, a princípio essencialmente visual que, num primeiro momento pareceu passar por um breve retrocesso, retomando um caminho próprio guiado pela comunhão entre imagem e som, mediado pelo aprimoramento das técnicas de montagem e edição. É nesse panorama que cineastas como William Wellman, Raoul Walsh ou John Ford, entre outros, exerceram inestimável contribuição para a afirmação do cinema clássico narrativo hollywoodiano.

Howard Hawks integra esse grupo. E foi no período citado acima que o cineasta foi galgando etapas em sua carreira, que o caracterizou como o de maior domínio de variedade de gêneros entre os grandes mestres do período dourado de Hollywood. Esse amadurecimento se deve muito aos diversos trabalhos que pôde finalizar nos anos 30. Não há dúvidas que esse processo de concretização de um estilo se deve às oportunidades de exercício que teve então. Assim cresceu seu padrão pessoal de mise en scène no qual não há uma aparência virtuosa, mas uma harmonia de concepção na qual todos os detalhes se integram, tudo fica claro à audiência.

Se considerarmos os primeiros minutos de Duas almas se encontram, vemos que a direção constrói uma ambientação que logo se descola de um otimismo inicial para a absorção de um clima de caos e desilusão. Essa construção visual e narrativa reflete o estado de espírito da protagonista Mary ‘Swan’ (Miriam Hopkins), que vê seus sonhos de ascensão financeira por um casamento de conveniência desabarem após a chegada a São Francisco.

Vale destacar que a São Francisco construída em estúdios para Duas almas se encontram em nada vem de encontro à imagem romântica da cidade que o cinema consolidou no inconsciente das plateias. É a ela e a seu porto aos quais se refere a “costa bárbara” do título original. Se o western foi o gênero que retratou a povoação do território americano em direção à costa do Pacífico, com seus vilarejos em que o conceito do que se entenderia por “lei” ainda não havia se estabelecido, a São Francisco num período próximo a 1850 não carregava diferenças desse ponto de vista, potencializado pelo ambiente caótico de uma grande cidade em formação, definida por um personagem como “o mais jovem recém-nascido de uma grande república”. Assim como nos faroestes, Duas almas se encontram apresenta um processo civilizatório em andamento, ainda repleto de contradições, como no estabelecimento da milícia de “vigilantes” que busca suprir o vácuo das instâncias legais corrompidas pelo todo poderoso Luís Chamalis (Edward G. Robinson).

Se considerarmos sua trama central e seu roteiro, estamos diante de um filme que, apesar de não se destacar na totalidade da obra, parece refletir de maneira expressiva o conjunto que posteriormente veio a definir Hawks. Vários gêneros se intercruzam, partindo do drama histórico, que absorve elementos do western e do filme de gangsters – para o qual o Scarface de Hawks havia se mostrado como marco definidor do gênero –, absorvendo pitadas de comédia e desaguando em romance. Escrito pelos dramaturgos Ben Hecht e Charles MacArthur, colaboradores habituais do cineasta em alguns dos melhores filmes do período, como o imediatamente anterior Suprema Conquista, a primeira de suas grandes comédias, o roteiro não mantém a unicidade e a regularidade dos trabalhos que citamos acima. Seu elo fraco advém justamente da criação do par romântico no filme, as “duas almas” que se encontram do título brasileiro. Esse encontro entre ‘Swan’ e Jim Carmichael (Joel McCrea) se dá de forma um tanto gratuita, com os dois atores carentes em estabelecer uma simbiose convincente e McCrea ainda distante do carisma que iria demonstrar na década seguinte, especialmente em seus trabalhos com Preston Sturges.

Por outro lado, temos Edward G. Robinson, gigante como sempre, numa variação dos bandidos e gângsters que parece ter nascido para interpretar, o amoral Louis Chamalis, com uma caracterização exuberante, mas que, por méritos do ator e da direção, parece nunca tender para a caricatura. Trata-se de um personagem contraditório cujo poder autoritário intercala fortalezas e fragilidades, refletindo uma ambiguidade por vezes sutil, que cede espaço para uma leitura igualmente ambígua de sua relação com o inseparável capanga Knuckles (Brian Donlevy). Se a maior parte da narrativa promove um clima de opressão de Chamalis sobre ‘Swan’, é curioso destacar que a interação entre a dupla de atores, durante a filmagem, manifestava um posicionamento inverso, com Miriam Hopkins forçando sua performance frente à de Robinson de maneira extremamente antiética.

Numa visão geral, mesmo levando em conta o clima um tanto irregular, conforme destacado anteriormente, é válido considerarmos Duas almas se encontram como um momento bastante representativo entre os 16 filmes que Howard Hawks dirigiu entre 1930 e 1939. Estes pavimentaram uma rota que teria como ponto de chegada uma dupla de obras-primas incontestáveis: Levada da breca e O Paraíso Infernal.

Heróis do ar
(Ceiling Zero, 1936)
por Rafael Miranda

No seu prefácio à Invenção de Morel, romance argentino escrito pelo seu amigo Bioy Casares em 1940, Jorge Luis Borges bifurca o novelístico: esse tipo de livro é cindido entre os psicológicos e os de aventuras. Naquele, que também poderia ser chamado de realista, em que se hospedam “os russos e seus discípulos’’¹, a importância reside nos estados mentais contraditórios das personagens e na subsequente competência do escritor de nos convencer a, se não aceitá-los, pelo menos tolerá-los, como toleramos o absurdo incrustado no nosso dia a dia: “Há páginas, há capítulos de Marcel Proust inaceitáveis como invenções — aos quais, sem nos apercebermos, nos resignamos como ao insípido e ao ocioso do cotidiano.’² Já no estilo aventureiro, em detrimento da profundidade mental, encontram-se as obras dependentes das peripécias, tramas e invenções. Nelas, o rigor com a lógica interna e seu comprometimento na desenvoltura do enredo contrastam com a “várzea’’ psicológica permitida no outro grupo, garantindo a diferença de natureza entre esses dois modelos.

Não seria tão difícil elaborar e aplicar um corte semelhante no cinema (como também é fácil imaginar a qualidade filistina; a “filosofia de boteco’’ que resultaria de tal híbrido: “Antonioni é psicológico, De Palma é aventura…’’). Não pretendo subscrever a essa separação, só meramente apontar que seus precedentes são abundantes: o mundo como batalha entre o bem e o mal para Zaratustra; o mundo das Ideias e o mundo das aparências em Platão, a divisibilidade mente-corpo cartesiana… O modelo se enraíza tão profundamente na história do pensamento que deságua em autores tão díspares quanto Ricardo Piglia, com a sua teoria do conto (“um conto sempre conta duas histórias’’³), até Jean-Luc Godard (cuja filmografia pode ser vista como consequência da divisão saussuriana entre langue e langage). Esse método – o de enxergar algo ou a própria realidade como resultado de dois componentes irredutíveis – se chama, é claro, dualismo.

Se existe um autor capaz de realmente renovar essa tradição dualista, esse alguém é o pai do pensamento francês do século 20: Henri Bergson. Alguns títulos da sua obra (As duas fontes da moral; Duração e simultaneidade; Matéria e memória), além do sétimo prefácio deste, citado abaixo, confirmam a obsessão: ”Este livro afirma a realidade do espírito, a realidade da matéria, e procura determinar a relação entre eles sobre um exemplo preciso, o da memória. Portanto é claramente dualista.”⁴ Essa fase da filosofia bergsoniana tem como núcleo a articulação e mediação de diferenças. Devemos aqui seguir seu exemplo e depurar, para depois ligar, a dupla “aventura-psicologia” apontada por Borges, mas na obra de um só cineasta. O objetivo deste texto é tentar executar essa dinâmica com o filme Ceiling Zero, de Howard Hawks. Afinal, os letreiros que contextualizam seus enredos dessa época poderiam ter tomado emprestado o modelo bergsoniano. Seriam algo assim: ”Este filme afirma a realidade da aventura, a realidade da psicologia, e procura determinar a relação entre eles sobre um exemplo preciso, o do movimento. Portanto é claramente dualista.” Hawks é um cineasta cuja ênfase está nos diálogos e corpos em vez da composição. Com isso, não quero dizer que o cineasta não personaliza a filmadora (e, em Ceiling Zero, as precisas panorâmicas horizontais, sempre guiando os personagens – e aviões – pela lateral, estão aí para provar o oposto), mas sim que a câmera parece – e só parece – estar a serviço daqueles corpos uniformizados e máquinas, e não o contrário. Em Hawks, um grande plano é justamente aquele que enquadra um ou, de preferência, alguns personagens se expressando juntos, sempre de maneira enérgica e memorável.

Dizzy Davis (James Cagney) tem tanta energia fora quanto dentro da cabine, é tão mulherengo quanto bom piloto, tão competente quanto mentiroso. Não seriam essas, em um filme de aventura, as mesmas características contraditórias apontadas por Borges em Proust e nas novelas psicológicas? Do mesmo jeito, quando não consegue cumprir sua missão, o protagonista deve pelo menos contribuir com o futuro da companhia aérea, além de aceitar, com total resignação e até naturalidade, que sua vida pessoal deve morrer com a profissional: uma é uma mera extensão da outra. Não importa que seu destino seja trágico, ao contrário de seu duplo célebre (Cary Grant em Only Angels Have Wings), pois a sua aventura veio do espírito nascente, é uma psiquê desenvolvida. Quando todos esses dualismos se juntam, seja no sexo ou nos ares, o resultado é sempre o movimento (o que normalmente significa uma piada, um soco ou um beijo, ou os três simultaneamente).

Esse tipo enérgico de comunicação, com suas intensidades e potências tão puras e diretas, muitas vezes instintivas e animalescas, podem ser difíceis de serem aceitas por um espectador interpretativo, literário e — como vocês já devem ter percebido — pedante como eu. Por muito tempo, com exceção de Rio Bravo, eu não entendia o apelo do cinema de Hawks. Claro, qualquer um nota que ele é extremamente competente, que não perde tempo – mesmo em suas digressões – com nada que não seja perigoso ou divertido, mas qual o seu segredo? Eu precisava de um, de alguma profundidade, de algum símbolo, de algum mistério. Mas o cinema de Hawks não tem nenhum. Tudo está na superfície, todo o mundo (e o seu movimento) já está lá, não existe nada além. Na cosmologia de Hawks só existe o perceptível, e todos os seus sutis artifícios lhe servem somente na medida em que evidenciam melhor essa concretude.

E é justamente “evidência” uma palavra central em uma crítica canônica de Rivette, “O gênio de Howard Hawks”. Resgato esse ensaio, tanto antológico quanto ontológico, para poder voltar à antinomia “aventura-psicologia”. O autor, logo no começo do texto, comenta sobre a cumplicidade, para não dizer mistura, de gêneros em Hawks: “A obra de Hawks é igualmente dividida entre comédias e dramas… a fusão desses elementos para que cada um, ao invés de danificar ao outro, sublinhe a reciprocidade: um afia o outro.”⁵ Ou seja: como em tantos grandes filmes da Hollywood áurea, havia uma verdadeira multiplicidade tonal em Hawks. Essa é a diferença maior entre as literaturas apontadas por Borges e o cinema de Hawks: naquela, segundo o argentino, há uma diferença de natureza entre os tipos, enquanto nesse, dentro de qualquer filme dele, há somente uma diferença de grau. A comédia e o drama se misturam do mesmo jeito que o corpo Cagney se enlaça com a jovem aprendiz Tommy ou os destroços do avião; a aventura e a psicologia se harmonizam como cores análogas, dependendo uma da outra para carnalizar a vitalidade de Hawks. Desse misto, desse cinema, talvez seja justo lembrar do que escreveu Alberto Caeiro:

O único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,…
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As coisas não têm significação: têm existência.”⁶

___________

1 BORGES, Jorge Luis. BIOY, Adolfo Casares. A invenção de Morel. São Paulo: Biblioteca Azul. 2016, p. 02. Reparem na heterodoxa arqueologia borgeana: Dostoiévski como “pai” de Balzac, Proust, etc. Depois, Stevenson, James, Green, o próprio Bioy e, surpreendentemente, até mesmo Kafka, são eleitos como autores aventureiros.
2 Id., 2016, p. 03.
3 PIGLIA, Ricardo. Formas breves. São Paulo: Companhia das Letras. 2004. p. 89.
4 BERGSON, Henri. Matéria e memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: WMF Martins Fontes – POD. p. 04. 
5 RIVETTE, Jacques. “Génie de Howard Hawks”. http://dicionariosdecinema.blogspot.com/2009/03/o-genio-de-howard-hawks-jacques-rivette.html.
6 CAEIRO, Alberto. “O mistério das coisas, onde está ele?”. http://arquivopessoa.net/textos/3452

Meu coração pesa uma tonelada
Meu filho é meu rival (Come and Get It, 1936)
por Rubens Fabricio Anzolin

  1. O cinema de Howard Hawks é perfeito. Essa é uma informação errada, mas acredito nela. A função da crítica, por vezes, é a de acreditar cegamente na porção desconfiada da matéria, como fazem os apaixonados. Arte de amar, diria Jean Douchet.
  1. O cinema de Howard Hawks é, quase sempre, perfeito — essa seria uma informação correta. Mas essa informação não tem a menor graça. Essa é uma informação material e objetiva, áspera, a cujo resultado qualquer matemático da linguagem cinematográfica — aqueles que veem o cinema como uma operação técnica e, portanto, amorfa — com um mínimo de bom senso conseguiria chegar.
  1. Dentre as supostas imperfeições presentes no cinema de Howard Hawks, Meu filho é meu rival (co-dirigido com William Wyler, 1936) certamente se destacaria. É um filme torto, desmedido e mal balanceado, com uma parte dramática muito mais bem executada que a outra, feito de cabo a rabo para dar errado e recheado por inúmeros conflitos de produção. É, portanto, imperfeito — desajustado.

É lindo.

  1. No mundo de Hawks/Wyler (bem mais de Hawks que de Wyler, podendo considerar-se praticamente um caso de autoria exclusiva do primeiro), o capitalismo devora tudo. Agudo, o patrão ordena o fim da natureza. Que cortem-se as árvores, pede Barney (Edward Arnold). Elas se cortam. Que dobre-se o lucro, pede Barney. Dobra-se. Que trabalhem os peões, pede Barney. Eles trabalham. No gélido universo de madeiras congeladas e devoradas pelo capitalismo, há apenas um dos chamados de Barney que os servos não são capazes de concretizar: o amor.
  1. Meu filho é meu rival é uma guinada intensa que vai da glória ao calabouço em poucos passos. Barney apaixona-se pela garçonete do bar onde leva os madeireiros para tomar cachaça. Por coincidência, ela, que planejava dar-lhe um golpe para recuperar os dólares que o próprio Barney roubou de seu patrão, também apaixona-se por ele. O acaso constrói o romance – dconcretizado por meio de uma das cenas mais divertidas que Hawks filmou até então, uma briga de bandejas no saloon de um bar no meio-oeste — mas a sede pelo lucro os impede de selar o amor. Barney abandona Lotta (Frances Farmer), no ápice da química entre os dois, para casar-se com a filha do próprio patrão. Desolado, o coração cala-se, o tempo passa e os dois nunca mais se reencontram.
  1. Anos depois, Barney, já um magnata das madeiras e provedor de uma prole luxuosa, vai à cidadezinha de Iron Ridge para rever seu velho amigo de aventura, Swan (Walter Brennan, magistral), que, patinho feio na ocasião, acabara casando-se com Lotta. Esse passado de vinte e cinco anos, em que o coração ficou enterrado pelos dólares, materializa-se em um fade out de trinta segundos, e logo ali está Barney, novamente apaixonado, mas agora pela filha do velho amigo Swan, ao mesmo tempo imagem e miragem de sua primeira amada, Lotta.
  1. Daí para frente é um arranca-rabo generalizado, à la Drummond: Barney é amado pela esposa, mas, no fim das contas, deseja a filha do amigo; essa, no entanto, não nutre afeto pelo velho endinheirado, mas sim pelo moço jovial que é seu progenitor, Richard (Joel McCrea), e sobra até para a caçula da família, Evvie (Andrea Leeds), que resolve trocar um casamento bem arranjado pelos braços fortes de um dos operadores de máquina de seu pai. Em um mundo cujo dinheiro dá as cartas, a selvageria do amor é que chega cortando as cabeças.
  1. Em meio a esse jogo de derrubadas sucessivas de tapete, quem, no fim das contas, acaba triunfando, é justamente Richard, filho do capital herdado pelo pai, mas que recusa incessantemente as incumbências da vida de patrão. Quando, enfim, Barney percebe que não sobrou mais nada para que lutar, ele faz justamente aquilo que sabe fazer: ordena. “Come and get it!”, berra aos funcionários e convidados do casamento entre o filho herdeiro e a representação da mulher amada que se permitiu abandonar. A cena, excepcional, espelha a primeira tomada do filme, consolidando um universo que Hawks concebeu ser sem redenção.
  1. Hawks conta para Peter Bogdanovich no livro Afinal, quem faz os filmes? que jamais teve interesse em dirigir Meu filho é meu rival, e só o realizou após muita insistência de Sam Goldwyn para que adaptasse o romance de Edna Ferber. Neto de famílias cujo sustento provinha justamente do trabalho com a extração de madeira e produção de copos de plástico, o cineasta aplicou justamente essa realidade às paisagens de Come and get it, mas transformou todo o pano de fundo em uma história de amor sem igual, em que a ganância e o desejo pelo lucro consomem até mesmo os mais puros dos corações. Edward Arnold, que interpreta Barney, em uma daquelas performances que a história do cinema fez questão de esquecer de modo muito injusto, toma conta de praticamente todos os quadros. É a síntese de um homem que se move de um lado ao outro, dá todas as cartas, os tons e as notas, mas é incapaz de concretizar os desejos mais profundos. A câmera o procura constantemente, mas seus olhos vão sempre ao largo, à procura de uma imagem que não existe mais na tela.
  1. Está claro que, no fim das contas, Meu filho é meu rival não estaria, teoricamente, à altura das obras-primas que Howard Hawks já havia filmado e ainda viria a filmar. Mas não se trata de uma questão matemática — ou, no mundo de Barney, de uma questão capital. O campo do cinema é também o campo das paixões, a arte de amar. E é apenas o amador — inclusive aqueles mais gananciosos, como nos mostra Barney — que é capaz de cerrar os olhos aos defeitos e desvios para poder desfrutar as delícias de uma paixão.

A paixão, nesse caso, claro, é o cinema de Howard Hawks.

Levada da breca
(Bringing Up Baby, 1938)

por Pedro Serpa

– Who are you?
– I don’t know. I’m not quite myself today.

De todas as grandes comédias de Howard Hawks, não posso considerar outra que não seja Levada da breca como a mais genial. Katharine Hepburn e Cary Grant estão aqui mais em sintonia, malucos e encantadores do que nos outros filmes que co-estrelaram. É que nenhum desses outros foi dirigido por Howard Hawks. Por mais que seu dedo esteja nítido no filme, a impressão é de que o diretor aceita a brincadeira infantil e, como um pai irresponsável porém apaixonado, dá um passo para atrás e permite que suas crianças explorem todas as possibilidades do mundo. Possibilidades essas que em Levada da breca são as mais impossíveis. Uma cantoria para uma onça domesticada, a busca por um osso de dinossauro enterrado por um cachorro. Levada da breca é o filme que toda criança faria se pudesse. Que mente, senão uma infantilizada, seria capaz de pensar e filmar ocasiões tão absurdas, tão engraçadas, tão encantadoras, em suma, tão felizes? A felicidade na forma em que vimos em Levada da breca é aquela que perdemos quando deixamos a identidade de criança para trás. Hawks, Grant e Hepburn não a perderam.

Pode-se ver Levada da breca como uma comédia do acaso. O filme de fato o é, em um primeiro olhar. O acaso está presente no momento em que Susan rasga seu vestido, ocasião sem a qual David e Susan possivelmente se separariam em definitivo e, por consequência, o restante da narrativa ficaria somente no campo hipotético.  Entretanto, mais do que isso, também é uma comédia de identidades. Para dar início à relação entre David e Susan, ela confunde (intencionalmente ou não) a identidade das bolas de golfe e passa a jogar com a dele, o que faz com que ele vá até ela e tente sem sucesso esclarecer a situação. Em seguida, é a identidade quanto aos automóveis que gerará o segundo momento de conflito entre os dois. Contudo, é na sequência final na cadeia que a questão da identidade tomará maior proporção. David e Susan, ao serem apreendidos pelo policial Slocum, tentam explicar-lhe a situação. Ocorre que, como bem vimos, as situações verídicas narradas pela dupla são completamente inverossímeis, o que faz com que o policial, além de duvidar da história, passe a duvidar também da identidade dos dois. Conforme os demais personagens chegam na cadeia e tentam clarificar a situação, Slocum rotula-os de pronto como falsários, inclusive a tia Elizabeth, uma vez que ele já havia determinado anteriormente que Susan não possuía tia e, portanto, essa que se anuncia como tal só pode estar o enganando. Por fim, até mesmo as duas onças do filme têm suas identidades trocadas. A loucura de Levada da breca é capaz de varrer até mesmo aquilo que tomamos como sendo mais certeiro.

Ainda no que tange à questão da identidade, pode-se dizer que o filme de Hawks guarda similaridades com a tragédia grega Édipo rei de Sófocles. Em ambas histórias, o protagonista, após uma série de desventuras, descobre que sua própria identidade possui dimensões indecifráveis e anteriormente desconhecidas. Enquanto que em Édipo rei as desventuras tomam a forma de um inquérito, que gradativamente adiciona fragmentos de informação até atingir a revelação cabal, em Levada da Breca é a sucessão de situações absurdas – no dia em que posteriormente David Huxley considerará como sendo o melhor de sua vida, ainda que não tenha demonstrado referida felicidade antes da cena final – que fazem com que Huxley despercebidamente se apaixone por Susan. Há, portanto, uma dimensão da identidade de David que ele desconhecia, indecifrável. Após uma série de infortúnios, ele apaixona-se justamente pela catalisadora deles. Não há – e nem deve ter – qualquer explicação lógica para isso. Pois bem, é justamente a lógica e a razão que Hawks a todo momento afasta do filme. Pode-se dizer que Levada da breca é um filme insano. A tragédia para Édipo, ao descobrir essa nova porção de sua identidade, dá-se pelo fato de que era um homem completamente realizado consigo mesmo. Huxley, de outro lado, ao trazer à tona (para fazer uma referência ao título original do filme) outra identidade que não aquela do estudioso razoado, consegue se libertar de uma vida estéril. Há uma parte de mim que não conhecia: ainda bem. Howard Hawks, o anti-Sófocles.

Pois apenas os anjos possuem asas
O paraíso infernal (Only Angels Have Wings, 1939)

por Letícia Weber Jarek

Fala-se muito e muito bem nos filmes de Howard Hawks. As réplicas dos personagens, tão afiadas quanto ambíguas, se sobrepõem umas às outras numa velocidade estonteante, ao passo que telefones e rádios ressoam sem parar, aviões e carros se juntam a essa orquestra humana, arrastando com o ronco de seus motores a própria câmera de cinema – outra máquina do século XX. Fala-se e move-se tanto que, frente à ginástica física, verbal e intelectual de atores como Cary Grant, Rosalind Russell, Katharine Hepburn, dissipa-se qualquer preconceito contemporâneo de uma suposta lentidão e didatismo do cinema clássico: com Hawks, ora saímos embalados pela velocidade da intriga (Jejum de amor, Levada da breca, O inventor da mocidade), ora um pouco aturdidos pela inteligência insolente de suas linhas, um pouco incertos de ter visto e ouvido absolutamente tudo que deveríamos (À beira do abismo, Uma aventura na Martinica). Se perdemos ou não o fio da meada, o que importa, acima de tudo, é que cheguemos até o fim da missão, que completemos ao lado dos personagens a tarefa que nos foi designada, mesmo que para isso seja necessário acompanhar a marcha dos elefantes, a corrida das girafas, vencer por vezes a bruma, em outras ocasiões, encontrar um leopardo chamado Baby.

Cineasta de filmes de ação, mas sobretudo de palavras e de gestos profusos: mais delicado que Raoul Walsh e William A. Wellman, nele, as cenas de risco servem como telas que irradiam as pequenas sutilezas dos personagens, detalhes cruciais que, muito modestos para possuírem seus próprios closes, são lançados aos quatro ventos dos grandes planos. Enquanto aviões caem em abismos, superam cordilheiras e camadas de neblina, ecoam emoções ainda não-digeridas, amores não-declarados, sacrifícios iminentes e atritos inegáveis. É assim que um mero filme de aviação pôde ganhar o belo título de Only Angels Have Wings (em português, O paraíso infernal). Nas mãos de Hawks e de um querido roteirista (Jules Furthman), esse torna-se mais um desses filmes misteriosos que, no seu estoicismo, nos apresenta um grupo de profissionais que desafiam o céu, afrontam a morte e celebram sua união à sua própria maneira. Ou seja, sem grandes palavras, nem heroísmo: Cary Grant, Thomas Mitchell, Richard Barthelmess incarnam simples vetores que cruzam as nuvens, nas quais escrevem seus destinos com letras minúsculas. Em Barranca, numa cidade recôndita da América do Sul, fala-se apenas de bifes americanos, novos aviões e cortes de cabelo, fotos antigas e bules de café – por que perder tanto tempo com temas sérios, o Amor e a Morte, quando se está tão próximo dos anjos?

Para que acessemos o posto desses aviadores, a personagem de Bonnie Lee (Jean Arthur) serve como uma espécie de farol-civilizado que, desde a primeira cena, vem iluminar e nos acompanhar nas explorações desse terreno deveras masculino. Se os espaços exteriores permanecem na maior parte do tempo cobertos pela bruma, emoldurados pelas palmeiras e pela noite, nos interiores do bar e nos dormitórios do Dutchman’s, há sempre algum cigarro que lança um novo véu de fumaça nos olhos dos personagens, como que para reproduzir a rarefação selvagem da natureza. Essa inserção de Lee no espaço estrangeiro de Barranca remete especialmente a alguns filmes de tendências exóticas dos anos 1930, com fotografias igualmente turvas, como O pecado da carne (Rain, 1932), Terra de paixões (Red Dust, 1932), O Último Chá do General Yen (The Bitter Tea of General Yen, 1933), e principalmente Marrocos (Morocco, 1930), obra de Josef von Sternberg que fascinara Hawks e o levaria a engajar o roteirista Furthman nessa primeira colaboração. Porém, enquanto a areia e os véus de Sternberg/Dietrich criam zonas erógenas no quadro, em planos próximos e lúbricos, como se qualquer elemento nos quadros fosse um convite ao sexo, as composições de Hawks privilegiam muito mais a máquina bem calibrada do grupo, expandindo o desejo aos planos de conjunto, dando a ver múltiplas interações entre os personagens. Tema caro a Hawks, o desejo, assim como os prazeres de seus atritos, nasce justamente dessa livre-circulação entre os espaços e das trocas diretas entres os indivíduos. Dos aviões ao bar, do trabalho ao amor, é o ar livre dos grandes planos que lhe atrai.

Já nas primeiras cenas de O paraiso infernal, dedicadas à chegada de Bonnie, é flagrante o interesse da mise en scène pela aerodinâmica diversa dessa companhia de aviadores. Cumprindo seu papel de chorus girl, perfeita fast talking dame do Brooklyn, Bonnie acaba reunindo em torno de si todo um coro de personagens imantados pela então única mulher americana de Barranca. Num plano de conjunto, seu encontro conflituoso com Geoff Carter (Grant), chefe dessa modesta esquadrilha, se passa entre dois cigarros, de modo que este se apodera tranquilamente do cigarro dessa desconhecida para acender o seu. Sem nenhuma ênfase na ação de Grant, seu personagem passa a integrar o quadro como uma simples engrenagem do conjunto. Após passar pela prova de fogo de Geoff, num curto diálogo sobre pássaros e homens¹, Bonnie compreende as regras do jogo e se insere ao conjunto – apesar de mortos e feridos, ela entende que a banda deve continuar a tocar. Ao se juntar a ele, sentados ao piano, Bonnie completa definitivamente o afresco coletivo: duas canções selam a união do grupo, nas quais cada um possui uma função, seja no violão ou no coro, seja aos batuques ou no canto do quadro com uma escaleta. Basta dizer que pouquíssimas cenas musicais alcançaram esse grau de harmonia. Como espectadores, fascinamo-nos por esse leque humano, de maneira que vagamos por alguns instantes num gesto preciso (Grant acendendo o cigarro, quase a sair do plano) para enfim voltar ao grupo, acreditando dessa vez que vemos talvez um documentário. Se por algum momento os interiores de Dutchman’s pareceram falsos, como um huit clos muito teatral, ao serem povoados por tal movimento, graças à ação humana, esses espaços passam a existir verdadeiramente.

Entre os gestos profissionais e cotidianos, existem alguns objetos eloquentes que migram de uma mão à outra, como a cola que une esses indivíduos. Em particular, os cigarros e a dança licenciosa dos fósforos revelam muito mais que o vocabulário limitado desses homens, muito “homens” justamente para conseguirem dizer mais. É como se um acendesse o outro, perpetuamente, continuamente, e essas chamas viessem materializar toda uma gama de emoções: o ódio de Kid por Kilgallan, a tensão desse último ao ser descoberto, a apreensão no reencontro de antigos amantes. Chave essencial para compreender a masculinidade austera desses aviadores é o personagem de Thomas Mitchell, Kid Dabb. Sempre com uma moeda em mãos, Kid é um velho aviador, já muito míope para voar. A cena em que Geoff comunica sua aposentadoria é exemplar: de costas um para o outro, escondendo suas respectivas lágrimas, os personagens mantêm as mãos sempre de guarda: Grant com elas nos bolsos ou com os braços cruzados, Mitchell apagando lentamente seu cigarro no cinzeiro para, na saída, recuperar sua moeda.

Se a cegueira da velhice espreita Kid, ele não deixa, contudo, de ser menos vidente. Pelo contrário, é ele quem inicia Bonnie à poética complicada de Geoff, como um antigo amante, e observa todos os movimentos dessa que parece vir para lhe substituir. É na conversa desses dois personagens que se nomeia, enfim, o que vem catalisar a relação deles com o aviador-chefe: assim como Bonnie, Kid revela que o ama, bastando um atraso nos voos de Geoff para que Kid beire a loucura (“I go nuts”). Não somente Kid desnuda o núcleo tenro no qual se encontram todos esses indivíduos, mas seu protagonismo na intriga indica o quão aberta e livre é a mise en scène de O paraíso Infernal. Nela, personagens secundários terão direito a réplicas célebres e closes que, por vezes, serão mais significantes que aqueles dos protagonistas. Como, por exemplo, os planos do médico e do cantor peruanos que constroem a cama metafórica que recebe o corpo de Kid, através de citações a Shakespeare (“A man can die but once”) e canções tradicionais (“Adios, Mariquita linda”).

Pois o que Hawks parece nos dizer é que o esperado sempre vem de outro lugar, à maneira do personagem traidor que termina por se redimir e se integrar calmamente à equipe. É assim que os interlúdios de amor são filmados como cenas de ação (Kid e Geoff entrelaçando-se, brigando, por uma moeda), as cenas de aventura se entregam ao suspense da bruma, as cenas de morte não se rendem às lágrimas fáceis, antes à generosidade da comédia. Se um cineasta pode nos fazer acreditar ora em aviões de brinquedo, ora em acordos amorosos selados com moedas trucadas, ele certamente pode nos fazer tocar as nuvens. Mas somente para nos devolver à terra, pois… Calling Barranca, calling Barranca, calling Barranca.

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1 “That’s the most wonderful thing I’ve ever seen”; “Yeah, right, it’s reminded you of a big bird”; “No, it didn’t. It’s really a flying human being.” (“É a coisa mais linda que eu já vi.”; “É, isso aí, fez você se lembrar de um pássaro enorme”; “Não, não fez. Na verdade é um ser humano voador.”) .

Vida e morte em Jejum de Amor
Jejum de Amor
(His Girl Friday, 1940)
por Roberta Pedrosa

Entre papéis pendurados, mesas, ruídos de máquinas de escrever e ligações, uma mulher loira de terno carrega um pedaço de papel do fundo à frente do plano: essa é a primeira imagem de Jejum de amor (His Girl Friday, 1940), uma imagem que não deixa nenhuma impressão, e que rapidamente é esquecida por quem vê e pela própria câmera, que, em um travelling para a esquerda, se perde da mulher, apresentando uma série de outros figurantes anônimos que entram e saem de cena por todas as direções. O travelling se encerra na porta de entrada e saída do escritório, por onde entra um casal: a mulher à frente e o homem atrás. É justamente após um “Hi Hildy!” que a câmera muda sua direção, passando a deslizar para o lado direito, seguindo obstinadamente, até o final do filme, Hildy Johnson (Rosalind Russell).

Até dez minutos é tempo demais para estar longe de você”, diz o acompanhante de Russell, Bruce Baldwin (Ralph Bellamy). O embaraço de Bellamy é nítido quando a noiva pede para que ele repita essa declaração de amor tão ingênua. Dessa vez, eles não estarão separados mais do que dez minutos, sendo que a cena que se segue, na qual Russell reencontra o ex-marido Walter Burns (Cary Grant), dura quase exatamente esse mesmo tempo. O texto, porém, não deixa de ser um pouco sádico, pois esses dez minutos se tornam algumas horas e lhe custam a noiva.

Mas não seria também, em certa medida, a própria imagem de Bellamy que evoca esse destino? Mesmo sendo um ator muito conhecido, tendo atuado em mais de 80 filmes entre as décadas de 1930 e 40, sua performance mais memorável é justamente como backup de Cary Grant, três anos antes, em outra screwball comedy, Cupido é moleque teimoso (The Awful Truth, Leo McCarey, 1937). Bellamy interpreta novamente um bom homem, com uma mãe presente, emprego estável, marriage material, mas apaixonado por mulheres que são muito pouco banais (Russell, Irene Dunne ou mesmo Carole Lombard em Hands Across the Table) e cujo destino não inclui uma vida pacata.

Bem, se Russell deixa o noivo ao lado da porta nos primeiros minutos de filme, só esperando o momento de sair de cena, nós espectadores nunca a abandonamos. Não só seus passos são seguidos pela câmera, mas seu tempo é o tempo do filme. Extremamente linear, uma ação leva a outra. Quando se trata da personagem de Russell, as elipses parecem insignificantes e são praticamente imperceptíveis, como se ela nunca pudesse fazer algo pelas costas do espectador.

O que não pode ser filmado – afinal a direção de Hawks parece não comportar flashbacks – é informado por quem está fora de cena. Não satisfeitos em falar apenas com os personagens presentes, os telefones tocam desesperadamente, incluindo eventos que nunca se tornaram imagens, mas são também parte da textura do filme.

Em um texto ilustre de Jacques Rivette, ele descreve os personagens de Hawks como confinados em três cenários, pelos quais se movimentam em vão. Não é à toa que pela janela da redação do jornal, na qual se passa a maior parte do filme, estão uma prisão e uma forca (mesmo que a imagem da forca seja um plano muito rápido, que parece não pertencer ao escritório, mas a uma outra realidade paralela, onírica, que contrasta com a agitação que ronda o filme). A morte, a ausência de vida, a imobilidade total é, não apenas a sombra do filme, mas também o seu motor, encarnada pela personagem de Earl Williams (John Qualen) e por seu julgamento consensualmente injusto. No plano narrativo, é o que move Russell a voltar à redação, certamente não por um senso de humanidade, supostamente por dinheiro, mas talvez, eu arriscaria dizer, que pela ansiedade dela própria de se manter viva.

Há na protagonista de Jejum de amor algo que poderia ser descrito como um excesso de vida e proatividade. Já na primeira conversa entre ela e Grant, nos fatídicos primeiros dez minutos de filme, Russell se senta, fuma um cigarro, apaga o cigarro, arruma o chapéu, se olha no espelho, arruma o cabelo, ataca Grant com uma bolsa, retoca a maquiagem, tira as luvas, mostra o anel de noivado, retira fiapos da luva entre outras movimentações. A inquietude reflete não apenas a tensão da conversa – que não deixa de ser motivo de ansiedade, afinal é uma demissão e uma separação definitiva –, mas também uma máxima hawksiana de que corpo desocupado é a oficina do diabo. As personagens de Hawks em Jejum de amor não podem parar ou sair das quatro paredes que as sustentam e, quando confrontadas com algo externo, agridem, simulam zombaria e indiferença.

A morte está sempre ao lado, é matéria do próprio trabalho dos jornalistas, mas ela é sempre expulsa pelas personagens quando invade a redação. Quando o barulho dos trabalhadores construindo a forca para a execução de John Qualen entra pelo escritório, os homens reagem gritando pela janela para que esse barulho pare. Quando a namorada do detento se exalta ao cobrar dos jornalistas justiça, Russell continua trabalhando na máquina de escrever e seus colegas reagem com zombarias (mas quando ela sai de cena, presenciamos um raro momento de silêncio, talvez o único do filme inteiro). Em uma das cenas de maior cinismo, quando Russell entrevista Qualen na prisão, ela quase não olha para ele nem o escuta, buscando não compreender a sua história, mas escrever a própria.

Ao final do filme, Grant lhe apresenta um flerte com a imortalidade: ao escrever uma notícia que supostamente vai mudar os rumos do jornalismo. Os olhos de Russell brilham. O ex-marido não pode lhe dar filhos humanos, mas ele pode lhe dar outros herdeiros: a notoriedade profissional. O choro de Russell, porém, é extremamente desconcertante, não só pela imagem em si, mas pela trilha sonora que a acompanha, o único momento do filme no qual se escuta um fundo musical. Notas de melancolia intuem uma densidade e uma empatia com as lágrimas, mas conforme a cena se resolve e o casal de jornalistas se une novamente, as notas se tornam alegres, fechando o filme com um ar de comicidade quando Grant descumpre novamente suas promessas. O artifício cômico porém, não tem o efeito esperado. Ao mesmo tempo que os filmes de Hawks são uma grande fonte de entretenimento, no qual não se vê o tempo passar, o final de Jejum de amor é estranho e indigesto.

Se os protagonistas masculinos de Cupido é moleque teimoso se repetem em Jejum de amor, o que deve ser uma escolha consciente de casting, em Hawks não há paciência e meditação sobre portas mal fechadas. No filme de McCarey, Grant diz que foi um estúpido e que está arrependido quando pede uma nova chance com Irene Dunne, acreditando ou não em suas palavras ou em um futuro feliz para relação, o espectador é colocado frente às nuances entre verdade e mentira, intenção e concretização. O Grant de Russell nunca diria algo assim: não há dúvidas de que a última cena poderia levar novamente à primeira em um ciclo infinito. Russell, que entra pelo filme na frente de Bellamy, termina descendo as escadas atrás de Grant tentando seguir seus passos rápidos e carregando sozinha uma enorme e desajeitada mala de viagem.

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1 RIVETTE, Jacques. “Génie de Howard Hawks” In. Cahiers du cinema 23 (May 1953); p. 16-23.

Bola de fogo
(Ball of Fire, 1941)
por Ruy Gardnier

Em Ninotchka, dirigido por Ernst Lubitsch com roteiro de Billy Wilder e Charles Brackett, a contradição basal da história é entre capitalismo e comunismo. No entanto, é possível fazer um exercício de imaginação e vislumbrar a personagem de Greta Garbo como alguém saída de Alphaville, a cidade do filme homônimo de Jean-Luc Godard em que todos os aspectos da vida foram planificados segundo uma ordem matemática. A tensão, aí, não seria mais entre ideologias políticas, e sim entre uma vida de pura funcionalidade mecânica e outra, a dos puros prazeres sem função. Visto assim, Bola de fogo, também roteiro de Wilder e Brackett a partir de uma história original do primeiro, seria uma espécie de prolongamento de Ninotchka. O filme constrói-se igualmente a partir de uma contradição entre modos de vida, mas aqui retorcida para desaguar numa reflexão sobre diferentes formas de saber. O que é saber? O que há a saber? Todos os nomes latinos das plantas? As teorias do professor Freud? A arte de bem beijar? Dançar rumba? Saber a hora em que é preciso ler um livro e a hora de jogá-lo fora? Qual é a organização dos saberes e modos de vida que tornam a vida mais interessante de ser vivida? Bola de fogo é uma exposição filosófica em forma de screwball comedy em que não há contradição entre os termos: a filosofia é engraçada e o riso gera saber. Sabor também, evidentemente.

Um time de acadêmicos/professores está isolado num casarão gerido por uma governanta xerifona, com o intuito de criar uma enciclopédia. O objetivo é nobre,mas a razão do financiamento é espúria: um ricaço não teve seu nome citado numa enciclopédia anterior, então decidiu criar uma em que o nome dele constasse. Morto, sua filha passou a gerir o empreendimento: ela  parece prática e objetiva, mas toda hora que ameaça interromper o fluxo de dinheiro, entra Gary Cooper – oops, o professor Bertram Potts – e a solteirona intocada se derrete e prolonga o patrocínio. Já aí, antes da irrupção (pois é essa a palavra) de Barbara Stanwyck no filme, está montado o tabuleiro da trama, em que o saber “puro” precisa de hipocrisia, sedução, vaidade e outros pecadilhos do espírito para existir.

Os oito enciclopedistas parecem muito tranquilos e determinados em seus trabalhos e suas vidas, com passeios regrados por jardins e trabalho incansável. Todos solteiros, exceto um, viúvo. Não parecem ter qualquer necessidade de interação com os prazeres do corpo: vivem a vida do espírito, amam apenas o conhecimento. Esse equilíbrio cai por terra quando Potts, terminando seu verbete sobre “gíria”, descobre que o lixeiro da rua sabe mais sobre o assunto do que ele: claro, gíria é parte do mundo mutante da linguagem em que as pessoas vivem e coabitam, não um objeto estanque a ser consultado e apreendido em livros publicados vinte anos antes. Então Potts vai à luta, ou seja, ao mundo real dos jornaleiros, dos botequins, das boates para destrinchar o significado de todas as gírias que conseguir. Novamente aí o tema do filme: o “inculto” ensina o “culto”. Mas aí quem é quem?

Só depois de duas vezes esboçado o conflito (não o narrativo, o teórico), a trama principal aparece na forma de um Branca de Neve e os sete anões transformado no encontro de oito (+1 porque o príncipe precisa estar entre eles) homens de letras e uma cantora/dançarina namorada de gângster. Ela precisa se esconder da polícia e a casa é o lugar perfeito; eles precisam aprender gíria e acabam aprendendo as danças da moda. A casa, naturalmente, vira um escarcéu. Os oito se encantam com tudo aquilo que deliberadamente omitem de suas vidas: o efêmero, o carnal, o prazer sem finalidade objetiva. Ela seduz e eles se deixam seduzir. Ao fim, o jogo se inverte e ela mesma é seduzida por algo que jamais poderia imaginar encantá-la: a ausência de malícia. O processo é o de uma aprendizagem selvagem e infinita, em que não se sabe de antemão o que há a ser aprendido, e o ganho de conhecimento se dá no fluxo das experiências, não no estudo metódico. Gary Cooper joga o livro sobre boxe fora e aprende com seus instintos a descer a lenha em seu rival.

O tema de Bola de fogo talvez seja mais caro a Billy Wilder, que retomaria 30 anos depois a mesma contradição basal para opor a funcionalidade americana à gioia di vivere italiana em Avanti, do que a Howard Hawks, mas evidentemente a metamorfose do homem certinho em figura abobalhada é presença constante no cinema do segundo. Hawks sabe perfeitamente o que fazer com isso, descascando pele por pele a pose disciplinada do intelectual asséptico até que a porosidade apareça e ele possa se misturar ao movimento do mundo – o saber está no mundo, não em seu estudo isolado. A grande atenção destinada a fazer atuar seus terceiros personagens, aqueles que estão ao lado do casal de protagonistas (cujo exemplo mais perfeito seria Walter Brennan em Uma aventura na Martinica), é levada à enésima potência com a caracterização brilhante dos outros sete professores, e o espetacular material humano que S.Z. Sakall, Richard Haydn, Oskar Homolka etc. fornecem ao filme. E o que dizer da espevitada Barbara Stanwyck, resplandescente, soltando todas as gírias possíveis de modo que seja uma fonte inesgotável de material para a pesquisa de seu professor?

Em termos de radicalidade, Bola de fogo é a menos veloz das screwballs clássicas de Hawks do mesmo período. Claro, scholars não falam tão rápido quanto jornalistas, o ritmo há de ser criado de dentro do filme, não uma imposição de fora. Mas é justamente do jogo de ritmos que se trata, um ritmo para Stanwyck e sua Sugarpuss (um nome que já é gíria), um ritmo para Gary Cooper, um ritmo para os professores “amantes por procuração”, um ritmo para a gangue liderada por Dana Andrews (ele mesmo precisa de outro ritmo quando deixa de ser daddy e vira pai de Sugarpuss). E esses ritmos são todos entrelaçados na acumulação de sotaques e palavreados de diversas proveniências – que demarcam classe, status e marcas de personalidade – e que transformam o filme num vibrante carrossel humano em que o dizer humano está totalmente imbricado. Bola de fogo instaura um processo veemente de desierarquização das formas de vida e dos métodos de obtenção da felicidade.

Primeiro problema, o dinheiro. Podemos resolver em casa.

Segundo problema, a gíria. Temos que sair, mas trazemos de volta para casa.

Terceiro problema, o amor. Ele obriga constantemente a sair de casa. A vida é permeável.

Nação em miniatura
Águias americanas (Air Force, 1943)
por Gabriel Carvalho

Dentro do B-17 Mary-Ann, os protagonistas de Águias americanas enxergam o mundo em miniatura: a frota japonesa é composta por barcos de brinquedo, as bases dos Estados Unidos são maquetes iluminadas diante da escuridão da noite e os Zero são pássaros que cortam os céus. Contudo, uma revoada de aeronaves da Marinha do Japão Imperial não só rasga nuvens, como a carne dos personagens principais do longa-metragem de Howard Hawks: a tripulação de um bombardeiro que registra, centenas de metros acima, a destruição de Pearl Harbor, em sete de dezembro de 1941. Ainda assim, em Águias americanas não há vísceras arremessadas nos cenários quando soldados são alvejados, somente cabines perfuradas por projéteis imaginários, grunhidos de dores por conta dos ferimentos sugestionados e areia esvoaçando pelos tiros de metralhadora escutados. Na realidade, Howard Hawks encontra no distanciamento da ficção perante a realidade o que permite, da janela da Mary-Ann ou das transmissões de rádio que indicam a ofensiva inimiga, irmãos de armas lamentarem mais de duas mil vidas perdidas, ainda que, a olho nu, não vejam nenhum único corpo morto pelo ataque japonês.

Por isso, mesmo navegando pelos céus, não pela terra, nem pelo mar, a Força Aérea de Águias americanas se aproxima do front de guerra, senão pelo horror – até porque no contexto da propaganda militar o interesse é pelo chamado ao dever ao invés da repulsa a ele –, certamente pela comunhão de indivíduos que representam, em cena e no campo, uma nação inteira. Não que os personagens de Howard Hawks sejam limados de identidade: um deles tem uma irmã, um outro é pai de um piloto de caça e cada um joga suas próprias cartas, em nome da vitória dos Aliados. No entanto, quando, ao fim do filme, não mais no interior da Mary-Ann, nomes familiares como o de Rader (James Brown) se integram a um grupo de rostos anônimos, é porque a eloquência da miniatura, que transforma um único B-17 em protagonista, conversa com a grandiosidade do todo, o qual encerra o longa não com um só veículo planando, mas vários passeando pelos ventos. Logo, por mais que a cena que encerra Águias americanas não carregue consigo todos os personagens principais da obra, pois a guerra não se delimita em celebridades, eles surgem em flashes do passado para compor em uníssono o contra-ataque a Tóquio.

Ou seja, ao mesmo tempo que Robbie (Harry Carey) precisa lidar com a notícia da morte em combate do seu filho, o pai enlutado é imediatamente depois convocado para cumprir as suas funções como chefe da tripulação, na emergência de uma investida japonesa. Para Howard Hawks, ambos os personagens coexistem: os demais companheiros da Mary-Ann observam com cuidado as reações do homem, cujo olhar encontra-se tão perdido quanto atarefadas estão as suas mãos, a postos em prol do coletivo. Já noutra cena, após Williams (Gig Young) receber a informação de que sua irmã está no hospital, o tenente continua imóvel esperando ser liberado para visitá-la, embora dentro do quadro já demonstre abalo. Não à toa, um dos pontos de trama de Águias americanas posiciona um cachorro para ser cuidado pela tripulação, à revelia das regras. Enquanto o clímax se desenrola e os Zero enfrentam Mary-Ann, com os personagens comunicando uns aos outros de onde estão surgindo os japoneses, o cachorro Tripoli permanece inserido no plano, pois Hawks não consegue recortar no enquadramento apenas a profusão de ordens e jargões militares, sem também não dar espaço aos sentimentos e à camaradagem.

Então, se o capitão Quincannon (John Ridgely) está prestes a morrer, os seus companheiros rodeiam-no tanto em uma esfera pessoal, diante do amigo que balbucia suas últimas frases, quanto profissional, tendo em vista que as interações derradeiras entre os personagens são baseadas nos comandos do piloto aos seus subordinados. “Monk, qual o nosso trajeto?”, o homem pergunta antes de fantasiar o nascer do sol que seus olhos nunca mais verão. Ele morre, mas ainda há trabalho a ser feito, e, se prontamente um a um sai do leito de Quincannon, cada um a fim de cumprir seu respectivo dever, ainda há espaço no cinema de Howard Hawks para as posturas cabisbaixas de quem não deixa de ser humano mesmo enfiado em uma enorme ave de metal. Portanto, do cumprimento mecânico de tarefas, Águias americanas possibilita sobressair a responsabilidade emocional dos personagens ante seus semelhantes. Nos céus de novo, remontada às pressas depois da ameaça de destruição por conta das avarias sofridas em combate, Mary-Ann já não é mais simplesmente a promessa alada dos tripulantes para o capitão, como também a promessa patriota de superação das perdas em Pearl Harbor – e revanche por elas.

Não à toa, ao passo que os personagens observam São Francisco do avião, um deles rechaça a cidade comentando que a única é Nova York. Um outro pergunta sobre a Califórnia, enquanto um terceiro é de Minneapolis. Ora, a partir de uma janela, os tripulantes de Águias americanas começam a reconhecer o país inteiro. No recorte que Howard Hawks cria sobre o mundo, a extensão para além da imagem se consolida dentro do minúsculo fragmento capturado pela retina. Dela, a ficção absolve a limitação da experiência, com o propósito de que, mesmo de olhos fechados, um capitão moribundo enxergue o mais belo dos nasceres do sol. Na condição de um filme feito durante a guerra, com interesses práticos acima dos artísticos, também. Que as duas horas de duração contenham todos os meses pregressos de participação americana no conflito. Que as unidades de personagens mortos representem milhares de baixas. Que seus parentes desolados expressem a desolação de um país inteiro. Lá do alto, a ponte Golden Gate é apenas uma miniatura. Lá da ponte, a Mary-Ann também é só uma miniatura. Porém, dentro delas, e dentro dos enquadramentos de Howard Hawks, cabe uma nação inteira.

No rosto do mistério
Uma aventura na Martinica (To Have and Have Not, 1944)
por Paulo Martins Filho

(…) toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos (…)
Carlos Drummond de Andrade, “A máquina do mundo”

“You know how to whistle, don’t you, Steve? You just put your lips together and blow
Lauren Bacall, To Have and Have Not

A única matéria do cinema é o visível — tudo aquilo que existe no mundo, como um trem chegando na estação. Seguindo essa lógica, é possível dizer que o seu único tema, por mais contraditório que pareça, é aquilo que não vemos: o imaterial. Dizer que há uma busca constante em traduzir aquilo que nós não vemos em imagem e som não é um absurdo. Esse mistério, essa contradição, esse enigma, é o que me parece servir como um motor, uma espécie de “máquina do mundo” do cinema. Claro que essa comparação se deve ao cinema narrativo, porque não podemos tocar nas manchas de tinta de Stan Brakhage, muito menos reconhecê-las enquanto algo que faz parte do mundo concreto. Nesse caso, é possível dizer que a matéria de Brakhage é o invisível; o seu tema, o material.

Mas não falaremos de Brakhage. O tema, aqui, é um dos maiores tradutores do invisível, um mestre da narrativa do cinema clássico. E falaremos justamente sobre um filme que foi responsável por apaixonar duas pessoas (um exemplo do invisível influenciando diretamente o mundo material). Essas pessoas, por acaso, são duas das maiores vedetes, duas das maiores estrelas, um galã e uma musa: Humphrey Bogart e Lauren Bacall, ela em sua estreia na frente das câmeras. To Have and Have Not, além disso, possui uma curiosidade que é importante ser sublinhada: é um filme escrito por um escritor de literatura, William Faulkner, baseado no romance de outro escritor, Ernest Hemingway: o detalhe é que ambos se odiavam, havendo um histórico de críticas que fizeram aos livros um do outro. O diretor do filme, Howard Hawks, já afirmou numa entrevista com Joseph McBride que “poderia filmar o pior livro do Hemingway” e esse (To Have and Have Not) era “um monte de lixo”. A postura de Alfred Hitchcock de apenas filmar romances ruins e fazer obras-primas parece se aplicar perfeitamente a To Have and Have Not.

Falemos, então, de um dos maiores mistérios do mundo (e, consequentemente, deste filme). Evidentemente, o amor (que é, talvez, junto com a morte, o tema mais explorado em qualquer manifestação artística). A história de To Have and Have Not não possui, a princípio, o amor como seu foco principal (a tradução em português é Uma Aventura na Martinica, por exemplo). No filme de Hawks, porém, os olhares maliciosos trocados pelo casal ultrapassa qualquer tipo de narrativa. Se formos falar sobre o plot, há intrigas em relação à resistência francesa na Martinica, há troca de tiros etc. Mas sinceramente, nada disso realmente importa: a história é passageira como tudo em To Have and Have Not. Não há complexidade ou profundidade narrativa. O filme se equivale direta e metaforicamente ao local onde a maior parte das cenas se passam: um hotel, onde a fugacidade é a regra. Em To Have and Have Not tudo é passageiro: os cigarros trocados entre as personagens, as garrafas de uísque, a gagueira do Frenchie (Marcel Dalio), os olhares, a bebedeira do Eddie (Walter Brennan), as músicas do Crickett (Hoagy Charmichael), os sorrisos furtivos do Harry (Humphrey Bogart), o gingado alucinante de Slim (Lauren Bacall), os olhares, os olhares, os olhares… A montagem sempre se valeu da direção dos olhares dos atores e nesse filme a paixão parece ultrapassar qualquer regra de eixo. Isso que cito como passageiro são cacoetes das personagens, são motivos, características fundamentais para suas composições. O que predomina em Hawks é a humanidade: há uma criação constante da singularidade de cada uma dessas pessoas, dos coadjuvantes ao casal principal.

Falando em história, o filme trata de um dono de barco que acaba se envolvendo nas intrigas com a resistência francesa (contra a república de Vichy) no meio da Martinica. Não me lembro dos conflitos, não me lembro dos vilões, praticamente não me lembro do desenlace do filme, mesmo tendo-o visto quatro vezes. To Have and Have Not gera lembranças turvas, opacas. O que fica gravado na memória do espectador não é isso: o que lembramos depois do filme não são imbricações narrativas, muito menos o monte de lixo que Faulkner adaptou de Hemingway. O que fica em evidência são os gestos (tão primordial para a montagem quanto os olhares), são as performances dos seres, é a teatralidade constante do cotidiano. A essência do humano parte da maneira como nos inserimos no mundo, como enfim compomos nossa gestualidade, nossa maneira de aparecer. A nossa teatralidade, como é óbvio, abala as nossas relações com outras pessoas (os outros atores que estão nas nossas vidas). Enfim: em Hawks, o que nos resta são as personagens, as suas expressões e reações, suas pequenas obsessões: Lauren Bacall acendendo um cigarro é mais importante do qualquer aspecto relacionado à república de Vichy.

A magnitude do gesto mínimo de Bacall não é a única coisa que faz de To Have and Have Not um filme tão singular, tão estranho e embasbacante. Em seu artigo “Defesa e ilustração da decupagem clássica”, Jean-Luc Godard faz um comentário extremamente pertinente para o que está sendo discutido aqui:

(…) Atrevo-me a desafiar um plano geral a representar esse transtorno extremo, essa agitação interior que o muito inexpressivo “plano americano”, pela sua própria inexpressividade, consegue representar tão bem. Se encontramos, no cinema americano, um gosto bastante excessivo pela morte, é sobretudo no temor do repouso que eu o procuraria, nesses instantes onde, no pânico do coração, o menor gesto figura a certeza, e surgem ao mesmo tempo o ódio, o remorso, a zombaria e a virtude. É que as nuances mais sutis da alma devem, talvez, ser tratadas com mais ênfase, assim como uma gesticulação que força a atenção evita que o pudor deva se atenuar. (…)1

O que é fulcral, em To Have and Have Not, é a maneira como os rostos das personagens são filmados pela câmera de Hawks. É possível dizer que essa é uma das maneiras mais radicais para testemunharmos a manifestação do que chamamos de invisível. Foi nesse filme que Bacall conheceu o seu amor, o seu marido ao longo de doze anos: Humphrey Bogart, um dos rostos mais conhecidos do cinema. Slim, a novinha ladra, conquistadora, cantora, dançarina: uma personagem que possui o mistério de todo o filme resumido em sua personalidade (o seu passado elíptico só influencia isso mais). É justamente esse mistério (e, convenhamos, toda a sua sensualidade) que encanta Harry Morgan/Humphrey Bogart, o “herói” conhecido por todos nós, a grande estrela, aquele que levava as pessoas às salas de cinema. O apaixonamento das personagens (da novata e do experiente) ultrapassa a ficção, cria uma verdadeira fenda. O que testemunhamos é o amor brotar e quebrar a divisão existente entre a “realidade” e o “artifício”. Como disse Godard no trecho citado, “o menor gesto figura a certeza”. A certeza, nesse caso, é o amor. Slim é Lauren Bacall e Harry é Humphrey Bogart. Assistir as interações dos dois parece acabar com qualquer linha que separa o filme de nossas vidas.

Outro gesto mínimo e gigantesco de Bacall é a reação de seu rosto após dar um tapa na cara de Bogart. O esboço de seu sorriso diz tudo: Bacall está dando um tapa na cara de uma pessoa por quem ela está apaixonada. Esse tapa, brincadeira evidente, lapso de tesão, sai direto da tela e vai para a vida dos dois. Não seria absurdo dizer que depois desse take, no camarim, eles se beijaram loucamente e Bacall repetiu o mesmo tapa e o mesmo debuxado sorriso. A mentira é a verdade, e vice-versa. Como disse Drummond, “a realidade transcende a própria imagem”. O sorriso de Bacall é claramente espontâneo, muito dificilmente houve alguma indicação feita por Hawks ou pelo roteiro de Faulkner para que ela agisse dessa forma. É um sorriso incontrolável, porque aquele rosto estapeado é a imagem especular de seu apaixonamento. E o mistério de To Have and Have Not reside naquilo que não é pensado, mas sim nos gestos imprevisíveis, nos soluços de Walter Brennan ou na sensualidade do movimento da dança de Bacall no final do filme. É a sinceridade do gesto em sua apoteose.

Estamos mergulhados no rosto do mistério. Hawks não somente cria a vida dessas personagens, mas dá a liberdade delas serem quem elas são enquanto pessoas: Bacall e Bogart. O que faz o filme gigantesco é esse encontro do que há de palpável nas expressões, nos sorrisos, nos cigarros não acendidos com fósforos, e sim com aquilo que não vemos, mas que nos rodeia e rodeará para sempre: o invisível — a espontaneidade dos sentimentos. A força do filme é a máquina do mundo, aquilo que nos faz continuar vivos. Vale deixar outros versos do poema de Drummond (a epígrafe desse texto), que dizem muito mais do que qualquer coisa que tentei esboçar:

(…) “O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.” (…)

1 Cahiers du cinéma n.º 15, setembro de 1952, pp. 28-32. Disponível em http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO8-9/jornaldecupagemjlg.htm

À beira do abismo
(The Big Sleep, 1946)
por Luiz Carlos Oliveira Jr.

A girl and a gun: eis a mais simples e infalível receita do cinema norte-americano, redução essencialista do que é preciso para se fazer um “bom filme” em Hollywood. Um slogan repetido a torto e a direito, forjado talvez por algum mandachuva da indústria, ou por um crítico francês, ou por Godard. É possível ainda que essa fórmula-choque tenha sido o primeiro pitching da história do cinema, usado por algum cineasta para convencer seu produtor a investir dinheiro num roteiro duvidoso. Em todo caso, uma frase de impacto, detentora das cifras de violência e sexismo que embasaram nove a cada dez dos enredos hollywoodianos de sucesso.

Não é outra a fórmula colocada em prática por Howard Hawks em À beira do abismo (The Big Sleep, 1946). Se o filme tem algo de diferente e, em certa medida, extravagante, afastando-se da média, é por uma mudança principalmente quantitativa e não qualitativa: Hawks trabalha com os mesmos componentes da maioria dos outros filmes hollywoodianos do período, mas fermenta a receita, aumenta a dose exponencialmente, multiplica girls and guns de forma alucinante. É como se o chimpanzé de O inventor da mocidade (Monkey Business, 1952) – que, sem ninguém saber, manipula aleatoriamente a fórmula de rejuvenescimento desenvolvida por um cientista (Cary Grant) e a mistura à água do bebedor, provocando o caos – tivesse à sua disposição, dessa vez, a própria quintessência do cinema hollywoodiano, passando-a repetidamente de um tubo de ensaio para outro até o laboratório explodir.

O efeito dessa superdosagem não passa despercebido: mulheres e armas brotam de todos os cantos, de todas as situações. Há sempre mulheres jovens e bonitas dispostas a flertar com o detetive Philip Marlowe (Humphrey Bogart). E há sempre armas surgindo de todos os lugares: da cintura, do tornozelo, do bolso do terno, de compartimentos secretos, do porta-luvas do carro. Tudo é ensejo para uma interação sexual ou uma troca de tiros. Hawks descreve um mundo, a um só tempo, hipersexualizado e brutalmente violento. Embora o filme possa até soar ameno para as plateias de hoje, não percamos de vista os contextos: é preciso imaginar-se um espectador de 1946 para ter a dimensão de como a violência e a transgressão de códigos morais em À beira do abismo são impactantes, mais ou menos como já havia acontecido com Scarface em 1932.

Auxiliado por ninguém menos que William Faulkner (que participou do roteiro), Hawks adapta o romance em que Raymond Chandler criou a personagem de Marlowe, detetive particular a quem Humphrey Bogart dá corpo e voz. Como de praxe no film noir, temos aqui um retrato da experiência urbana moderna como oferta permanente de aventura e busca prazerosa/perigosa. O pano de fundo ainda é a moral burguesa patriarcal, porém reduzida a mera convenção postiça de uma sociedade licenciosa, dissimulada pelas fachadas de mansões, cassinos e bares. Nem as livrarias escapam: há aquela cena em que Marlowe entra numa loja especializada em edições raras, flerta com a vendedora (Dorothy Malone), pede que ela tire os óculos para ver seu “verdadeiro” rosto, decide ficar por lá até que a chuva passe… Não fosse pela elipse e a mínima justificativa narrativa (Marlowe queria extrair dela informações sobre o livreiro do outro lado da rua, alvo de sua enquete), teríamos aí o protótipo do expediente de base do cinema pornô, com seus episódios eróticos gratuitamente encadeados num fio sequencial arbitrário, em que a lei fundamental é a de que qualquer encontro fortuito entre duas pessoas que se cruzam na rua – mesmo que nunca tenham se visto antes – fatalmente redundará em sexo. A mesma lógica se repete na cena em que Marlowe pega um táxi dirigido por uma jovem que, ao final da corrida, insinua que se encontrem novamente, porém no turno da noite.

A própria sequência de abertura já instaurara essa dinâmica: Marlowe chega à mansão do milionário que o contratou para investigar as chantagens que vem recebendo de um escroque com o qual Carmen, sua filha mais nova, se envolveu. Antes de adentrar a estufa em que o patriarca se encontra (cenário emblemático, espécie de selva artificialmente fabricada no interior do lar), Marlowe é interceptado por Carmen, que tenta seduzi-lo. Pouco depois, ele sobe aos aposentos da filha mais velha, Vivian, interpretada por Lauren Bacall, onde se desenvolve mais um diálogo atravessado por tiradas sugestivas. Essa primeira cena entre os dois – repleta de demonstrações de cumplicidade, mas também de provocações passivo-agressivas – apresenta ao espectador o verdadeiro filme a que assistirá, imiscuído sob a malha intrincada da trama detetivesca, a saber, o “documentário” sobre as núpcias de escândalo do casal Bogart-Bacall, cujo romance explosivo começara justamente durante a preparação de outro filme de Hawks, Uma aventura na Martinica (To Have and Have Not, 1944). A lista de diálogos entre Vivian/Bacall e Marlowe/Bogart que contêm duplos sentidos perfeitamente aplicáveis ao casal da vida real (e não somente ao par romântico do filme) é tão grande que nem cabe citá-los.

Paralelamente ao clima de sedução permanente, perpassa o filme certa opacidade fosca, como se nas entrelinhas dessa modernidade permissiva – que o noir sempre expressou dentro dos limites do código de censura hollywoodiano – houvesse uma zona de ambiguidade cinzenta em tensão com as gratificações libidinais do álcool, da nicotina e do sexo. Importante assinalar que Hawks chegou relativamente tarde ao film noir, cujo apogeu já havia se esgotado entre a contribuição inaugural de O falcão maltês (The Maltese Falcon, John Huston, 1941) e o momento de excelência epitomizado por Pacto de sangue (Double Indemnity, Billy Wilder, 1944) e Laura (Otto Preminger, 1944). Em À beira do abismo, o universo ficcional típico do gênero parece achatado no fundo de um dos cinzeiros em que Bogart apaga seus incontáveis cigarros: um mundo em brasa, intenso, mas esvaziado das observações sociológicas e da pretensa espessura psicológica. Algumas convenções temáticas e estilísticas do noir – a tragicidade, a Stimmung tardo-romântica, o subtexto psicanalítico, a iluminação à maneira expressionista, a centralidade do olhar (geralmente, o olhar masculino direcionado à figura feminina) e do raccord de ponto de vista, a endentação de flashbacks, a voz off do narrador-protagonista – são totalmente estrangeiras ao universo hawksiano, como o filme deixa evidente. A mise en scène de Hawks se concebe de maneira objetiva: embora a focalização narrativa siga os passos de Marlowe, não há um esforço de ocularização concomitante, ou seja, não há uma tendência sistemática a alinhar os pontos de vista da câmera com os da personagem – a ação é apreendida “de fora”. Cineasta da ação visível no plano, do puro dispêndio físico, da evidência do mundo sensível, do diálogo logorreico em ritmo de batalha de réplicas e tréplicas, Hawks transforma a espiral em linha reta e verbaliza o subentendido. O contraste expressionista de luz e sombra se troca na maior parte do tempo por uma massa brumosa, por uma névoa que se espalha pela noite e confere aos espaços um caráter abstrato, não com a intenção de criar uma metáfora para as pulsões inconscientes, e sim de reduzir o cenário a um receptáculo neutro, que põe em relevo o estilo funcional de Hawks, calcado nas demandas da ação – o que não exclui, obviamente, passagens briosas em termos de performance técnica, decupagem, composição dos planos etc. As personagens femininas, por sua vez, não se restringem às fantasias masculinas da femme fatale ou, no polo oposto, da heroína positiva angelical: no cinema de Hawks, homens e mulheres desejam a mesma coisa, embora possam adotar caminhos diferentes para alcançá-la.

Como muitos já apontaram, a intriga de À beira do abismo é contorcida e enigmática, mesmo se descontarmos os ziguezagues já aceitos como parte da rotina do noir. Não sabemos se o filme deveria ter meia hora a menos ou duas horas a mais, se sua trama é confusa ou, na verdade, é apresentada de modo tão franco, tão despida de arcabouço retórico, que resvala no absurdo. As mortes se sucedem e em determinado momento parecem obedecer menos a uma lógica narrativa do que a uma engrenagem de violência em moto-perpétuo. Um dos cenários mais importantes do filme é uma casa isolada, onde Carmen tinha encontros eróticos que eram registrados por uma câmera fotográfica escondida no interior de uma escultura de procedência “exótica” (as fotografias em questão seriam usadas para chantageá-la): estamos à beira não apenas do abismo, mas de Twin Peaks.

Talvez seja possível afirmar que, por trás das complicações da trama, da panóplia de mentiras, chantagens e assassinatos, o trajeto inteiro do filme se resume ao itinerário necessário para que Bogart e Bacall, no último plano, possam se olhar de frente, à mesma altura, e admitir o que sentem um pelo outro, testemunhados pela câmera de Hawks. Se Uma aventura na Martinica foi a história do encontro entre os dois, À beira do abismo é a cerimônia de casamento. O resultado não é uma obra-prima, mas um maravilhoso filme que só encontra razão de ser enquanto acontece na tela, na forma irredutível de eventos encenados com atores que, interagindo num espaço, deixam na imagem a marca singular de sua presença no mundo – por isso mesmo, um filme profundamente revelador do cinema de Howard Hawks.

O rio do experimentalismo e da aventura
Rio Vermelho (Red River, 1948)
por Filipe Furtado

Rio Vermelho foi a grande aposta e a grande aventura de Howard Hawks. Foi o filme para o qual ele montou sua produtora independente, a Monterrey, e com o qual pretendia se livrar das dores de cabeça dos executivos dos grandes estúdios.

Um dos paradoxos da carreira de Howard Hawks é que seus filmes eram muito populares, com o tipo de histórias e astros que os estúdios adoravam, mas seus métodos não podiam ser mais distantes do que eles aprovaram. O próprio Hawks descrevia como o maior fracasso da sua carreira o período de cerca de dois anos que passou sob contrato na MGM entre 1933 e 1934. Ele era cunhado do chefão Irving Thalberg, mas seu estilo era completamente incompatível com o extremamente planificado e organizado método de produção do estúdio modelo da nossa imagem da linha de produção do cinema americano clássico. Acabou com um filme que quase ninguém assiste (Vivamos Hoje) e sendo afastado por indisciplina de outros dois (Viva Villa e O Pugilista e a Favorita).

Pois para Hawks fazer cinema é uma questão de método. Daí seus filmes serem sempre no fundo filmes sobre a sua própria realização. Um método de revelação: pegar um grupo de pessoas em que se confie, isolá-las num lugar e que juntas elas encontrem um filme. Hawks acreditava na liberdade, no erro, gostava de filmar o mais próximo da ordem do roteiro para ajudar os atores, em cenas encontradas no calor do momento, valorizava a improvisação e as possibilidades de transformar o material no set. Ele foi o primeiro grande cineasta experimental do cinema americano, mas o mesmo motivo que lhe permitiu fazer isso – seus filmes são imensamente populares – faz com que até hoje não lhe reconheçamos esta faceta.

O que nos leva a Rio Vermelho. Para Hawks, cinema é um método, e como esta descrição acima deve deixar claro, fazia bastante sentido que o primeiro filme da Monterrey fosse um épico sobre um grupo de desbravadores que fizeram algo: levar quase 10 mil cabeças de gado do Texas ao Kansas, algo que se acreditava impossível. A travessia do Rio Vermelho e o árduo trajeto não eram somente obstáculos para os personagens, mas para os próprios realizadores. Rio Vermelho é, afinal um filme co-protagonizado por 1500 vacas. Quando Harry Carey, interpretando o homem do dinheiro, diz a Montgomery Clift que é um momento de orgulho quando “se termina um trabalho que o homem precisa ser muito louco para começar”, é uma clara quebra da quarta parede. Questiona-se muito por que o personagem de John Wayne sobrevive no filme, mas me parece que um dos motivos é que por toda a sua violência e métodos abusivos, existe algo no seu jeito turrão e obsessivo que fala fundo ao próprio realizador. O homem com uma ideia que vai levá-la até o fim, para bem além do que o bom senso dita, é também um autorretrato, assim como o filme aos poucos se adapta às realidades da sua produção. A aventura do cinema é uma que acontece sempre no calor do momento. Não será acidental que a ênfase nos seus filmes esteja sempre no gesto, que de Rio Vermelho levamos muito o andar de John Wayne ou a reação de Joanne Dru ao tomar uma flechada.

Para o princípio da sua aventura, Hawks usou como base A trilha de Chisolm, novela seriada de Borden Chase – autor pulp que viria também a ser filmado por Anthony Mann, Robert Aldrich e King Vidor –, que romanceia livremente um episódio real sobre a primeira grande caravana de cabeças de gado a sair do Texas. É uma clássica aventura de formação, um elogio ao pioneirismo estruturado como o próprio autor admitia sobre O Grande Motim. Chase nunca perdoou Hawks por transformar sua história num filme de Howard Hawks. E o autor e cineasta têm temperamentos e interesses paralelos, mas bastante distintos. Apesar disso, o original de Chase oferece a Hawks um elemento e desafio bastante incomum, já que ele ancora a ação na História. Os filmes de Hawks por regra não têm muito interesse em existir num mundo reconhecível; eles acontecem na terra de Hawks, com sua moral e comportamentos próprios, seus homens habitualmente estão fugindo do mundo real e por consequência da História, são exilados do seu próprio tempo (existem poucas, mas pontuais exceções como Sargento York, seu grande filme de esforço de guerra e maior sucesso comercial, e um par de filmes que realizou em meados dos anos 30 para Samuel Goldwyn, Duas almas se encontram e Meu filho é meu rival) que igualmente lidam com questões do pioneirismo.

Há em Rio Vermelho a sombra, pouco mencionada, mas muito sentida, da Guerra Civil americana – a razão pelo qual o Texas está falido e precisando vender carne para fora e, ainda mais central, a posição de Montgomery Clift como veterano de guerra que explica muita da sua ambivalência a respeito dos métodos de Wayne. Há a própria figura carismática mas inacessível do grande rancheiro. Wayne em Rio Vermelho não é tão distante assim de Cary Grant em O paraíso infernal. O preço brutal da liderança é um tema recorrente em Hawks desde pelo menos seu primeiro filme falado, A patrulha da madrugada, mas dentro do mundo de Hawks de O paraíso infernal essa ideia de liderança e seus sacrifícios é mais fácil de ser negociada. Na caravana do velho oeste de Rio Vermelho, somos todos um tanto Jean Arthur diante de Wayne e da força do desejo dele querer não poupar ninguém. Hawks, por sua vez, ao longo de toda a primeira parte da caravana, faz questão de enquadrar sempre Clift, à medida que Clift toma nota do comportamento maníaco de Wayne. É notável observar também um movimento constante tanto nas imagens como no tom que o filme registra, saindo do elogio seminaturalista do começo da viagem até todos serem tomados aos poucos por variações dessa mesma mania, e chegando às sequências com Clift no acampamento de Joanne Dru já na parte final, dominadas pela paranoia de uma estilização similar à que encontraremos num filme como O paraíso infernal.

A história de Chase também oferece a Hawks um ponto de partida dramático e é justo apontar que o prólogo é a parte mais fiel ao original. Estão ali as fundações da ação: Wayne sacrifica a mulher amada em nome da ambição, transfere seu amor para o filho adotivo (que virá a ser Clift) e rouba seu latifúndio de um fazendeiro mexicano. “Se os espanhóis roubaram as terras dos índios, por que não?”. Poucas vezes as justificativas da formação dos EUA foram postas em cena de forma tão direta e pragmática. A grande contribuição de Hawks é justamente como capturar esses momentos psicológicos/políticos sem meios termos. O que para a história de Chase serve como justificativa para o pioneiro brutal, mas necessário, em Hawks é um dado concreto que nos é apresentado. Pensemos, por exemplo, na única cena com Coleen Gray e como a força erótica do apelo dela para Wayne é muito distante do que esperávamos, muito mais imediata no seu apelo da carne. Intensificam-se os sentimentos para trazê-los do esquematismo para o primeiro plano, muito mais que em outros cineastas, Howard Hawks sempre compreendeu a diferença entre palavras e corpos.

Vale destacar que o filme retoma alguns elementos dramáticos e personagens do pouco visto Meu filho é meu rival, e existe muito em comum entre o pioneiro vivido por Edward Arnold no filme anterior e John Wayne em Rio Vermelho. Como Hawks sempre destacou o caráter pessoal do filme anterior (sua família veio do mesmo ramo do madeireiro Arnold), do qual ele acabou despedido e substituído por William Wyler, é possível ver Rio Vermelho como um acerto de contas e um retorno à cena do crime.

Rio Vermelho é um faroeste incomum cuja ameaça nunca é o homem, à parte uma cena de ataque tardia e múltiplas menções histórias de caravanas saqueadas. É o trajeto e os efeitos dele sobre a coesão do grupo que conferem ao filme seu desafio. É um filme de trajeto: quanto mais se avança, mais se é confrontado com a adversidade. As imagens de Hawks reforçam sempre essa ideia de risco, o perigo mora na borda do quadro, no fora de cena, no próprio terreno que se corta. Parte do achado de Rio Vermelho é como os mesmos planos que apontam sua grandiosidade também apontam tudo que pode a qualquer momento fugir do controle. Hawks sempre extraiu muita força visual e dramática da ideia do homem realizando trabalhos perigosos, e Rio Vermelho é uma das suas melhores retomadas dela. Os planos de gado e o uso dos animais ao longo do filme tem poucos paralelos no cinema americano. Hawks reconheceu de tal maneira o trabalho espetacular de segunda unidade de Arthur Rosson que este recebeu um crédito pouco habitual à época de “co-diretor”, um gesto por si só bastante hawksiano.

O uso de locação separa Rio Vermelho dos filmes que o cineasta faria na parte final da sua carreira com John Wayne. Os três faroestes tardios da dupla – Rio Bravo, El Dorado e Rio Lobo) são filmes de estúdios dominados pela cidade cenográfica central, enquanto Hatari! trabalha a diferença entre as cenas rodadas em locações na África com sua qualidade documental e a presença constante de animais silvestres, e as internas rodadas meses depois em Hollywood em qual boa parte dos conflitos dramáticos se desenvolvem. O filme às vezes sugere a aventura africana já que muitas das cenas de conflito são rodadas mais próximas dos atores em Los Angeles a posteriori,, mas sem forçar o mesmo contraste. O método aqui é mais natural: Rio Vermelho é um filme a céu aberto como Hawks diria em seu outro faroeste da fronteira, The Big Sky, para melhor dar conta da sua aventura de descoberta.

Não é possível falar de Rio Vermelho sem tratar de John Wayne. A presença dele domina a ação até mesmo durante boa parte da segunda parte, após ele ser banido da caravana. Em princípio não parece um papel típico de Wayne (Hawks originalmente queria Gary Cooper): não só um homem mais velho, mas uma figura paterna de caráter fortemente destrutivo. A história de que John Ford ficara surpreso com a atuação de Wayne e resolveu que podia dar a ele papéis mais desafiadores pode ser outra lenda impressa entre tantas de Hollywood, mas ela aponta uma verdade: se No tempo das diligências é o filme que tirou Wayne do purgatório dos faroestes de baixo orçamento dos anos 30, foi Rio Vermelho que de fato tornou-o um grande astro. Foi sua presença dominante em cena no filme o ponto de virada maior da sua carreira: não só o momento em que Wayne se colocou no caminho para ser a grande atração do cinema popular americano dos anos 50 e 60, mas a própria encarnação das forças ideológicas dos EUA dos anos da guerra fria.

É útil observar como funciona a relação em cena entre Wayne e Clift. Hawks originalmente pretendia escalar um jovem campeão de rodeios no papel de Clift, mas desistiu temendo o que aconteceria se não conseguisse moldar um não-ator. No lugar ele se propôs outro desafio: Clift, jovem estrela em ascensão do teatro de Nova York que nunca fizera um filme, uma figura completamente urbana que seria moldado num cowboy. Hawks e Clift trabalharam pesado para que a simbiose fosse possível, e é marcante como ele se encaixa no cavalo e no terreno, como se mistura naturalmente com atores como Noah Beery Jr. e Paul Fix, que fizeram dúzias de filmes do gênero. Em Rio Vermelho, é o urbano Clift quem se mistura naturalmente à paisagem, que se conecta à terra. Já John Wayne é grande demais, é o agente do drama que passa por cima a tudo à sua volta. Seus gestos estão sempre na chave do conflito, apontam para um desarranjo.

Garry Wills, no melhor estudo sobre a carreira de Wayne, John Wayne’s America, reconhece a centralidade de Rio Vermelho para o mito Wayne e aponta as similaridades entre o filme e Rastros de ódio, outro épico de obstinação destrutiva em que a presença de Wayne grande demais é contrastada com a de um jovem pupilo muito mais em harmonia com o mundo a sua volta. Wayne é a manifestação do destino da violência da formação dos EUA em ambos os filmes, e nas suas fontes literárias ele é sacrificado em nome da civilização, enquanto Hawks e Ford lhe reconhecem a monstruosidade, mas preferem mantê-lo em cena até o plano final – algo que sempre gera muitas discussões.

Não discordo de quem acredita que Rio Vermelho perca um pouco de força na sua última parte, mas acredito que o maior problema não é nem a ausência de Wayne, de toda forma muito presente, ou a natureza do conflito final, mas uma consequência do método Hawks. Rio Vermelho, na sua concepção original, oferecia ao filho o seu próprio contraponto, na figura de Cherry Valance, o pistoleiro que Wayne contrata para acompanhar a caravana. A rivalidade entre Clift e John Ireland é bem estabelecida no filme, sobretudo na famosa cena em que eles comparam suas pistolas, e os dois atores têm uma química ótima. Hawks pegou antipatia pelo que considerava falta de empenho de Ireland no set – que independente disso sempre me pareceu muito bem em cena – e, como era de seu feitio, foi aos poucos reduzindo o seu papel em cena. É parte do método Hawks, encontrar o filme enquanto ele se faz, e valorizar o trabalho sobre o drama (Jennifer O’Neill por exemplo também desaparece no terceiro ato de Rio Lobo por motivos similares). Isso leva Hawks a muitos de seus achados de cena, mas reforça seu desinteresse em estrutura dramática, e num filme como Rio Vermelho o gradual apagamento de Ireland como rival romântico e de poder de Clift tira um pouco da urgência de muitas das sequências.

Um engano frequente sobre o confronto entre Wayne e Clift é a crença de que na história original o filho matava o pai. Na verdade, na novela de Chase, Wayne e Ireland têm seu confronto dois dias antes (o segundo retornava ao acampamento para visitar Dru), e, como no filme, Wayne é mais rápido, mas leva um tiro no ombro e, teimoso, segue a perseguir sua vingança sem tratar o ferimento. O confronto em si envolve Clift recusando-se a atirar e Wayne incapaz de acertá-lo, novamente como no filme, mas o segundo eventualmente tem um colapso por virtude do ferimento anterior. O final de Hawks me parece melhor e sobretudo mais próximo a lógica do seu filme, colocando o drama de formação em segundo plano em relação às relações dos personagens. Foi João Bénard da Costa, na precisão que lhe é habitual, que ofereceu a melhor defesa da cena final. “É uma história de amor entre dois homens e não de ódio”. É um final de todo honesto para com a relação pai/filho, se não para com o filme de formação do país. Hawks acomoda a História no seu filme, usa-a como âncora, mas como sempre sua preocupação maior são os homens, e que por final o filho sirva de limites para a ambição violenta do patriarca é muito mais justo e hawksiano.

Outro elemento importante a se observar sobre o final é que Rio Vermelho circula desde sempre em duas cópias, uma do lançamento comercial do filme narrada pelo personagem de Walter Brennan, com cerca de 127 minutos, e outra de cerca de 133, que foi usada em exibições-teste com um livro de história do Texas servindo de mediador. Misteriosamente, essa versão se tornou comum em relançamentos anos mais tarde. Cinéfilos geralmente se referem a elas como “versão falada” e “versão do livro”, e sempre houve debate a respeito de qual é a melhor. Os cortes foram parcialmente ocasionados por pressão de Howard Hughes, que achava que o clímax em particular se aproximava muito de O proscrito, filme que Hawks desenvolvera para ele alguns anos antes e o magnata acabou por dirigir. A maioria dos cortes se concentra em cenas com Clift, então o filme é um pouco menos equilibrado na versão falada, e algo indiscutível até para entusiastas dela, como Peter Bogdanovich, é que o duelo flui melhor no corte inicial (alguns cortes para aplacar Hughes deixaram o começo da ação bastante truncado).

Quando Hawks partia para filmar Rio Vermelho, John Ford ia ao México filmar com Henry Fonda e Gabriel Figueroa Domínio dos bárbaros, sua versão de O poder e a glória de Graham Greene. São ambos gestos radicais de afirmação de seus realizadores e notáveis pontos de virada nas suas obras. Todo mundo à época odiou o filme de Ford, e mesmo depois seus biógrafos mais apaixonados sempre tiveram dificuldades com ele, mas o próprio sempre permaneceu certo na sua crença: “É um filme perfeito do jeito que eu quis”. Rio Vermelho foi igualmente um filme atribulado para Hawks, adoravelmente imperfeito, mas exatamente o que ele quis. Hawks, porém, não tinha nada dos interesses obscuros de Ford: seu filme é misterioso, mas bastante acessível. Rio Vermelho finalmente chegou às telas em 1948 e foi um grande sucesso, a terceira maior bilheteria do ano, nada mal para uma produção feita fora dos estúdios, mas a mesma intransigência que guiava Ford também à sua maneira era o norte de Hawks.

Para experimentar como quis em Rio Vermelho, Hawks gastou tanto tempo e estourou de tal maneira o orçamento que, tal como Dunson, o fazendeiro de Wayne, viu sua caravana chegar ao final da rota à distância. Rio Vermelho foi excepcional para John Wayne e Montgomery Clift, para os investidores e banqueiros, mas para Hawks foi um grande sucesso artístico que lhe custou a produtora Monterrey e a possibilidade continuar realizando filmes mais distantes dos estúdios. De acordo com seu biógrafo Todd McCarthy, ele só recebeu alguns trocados com o filme num relançamento em 1952. Rio Vermelho é assim, uma aventura interrompida, um filme-processo até o fim, é o filme de um louco sobre loucos, em que o experimentalismo de Hawks está não só numa das suas facetas mais extremas, em que está posto em cena de forma mais direta – é o verdadeiro mote do filme.

A noiva era ele
(I Was a Male War Bride, 1949)

por Raul Arthuso

Perdido num amontoado de feno, após um acidente tresloucado de motocicleta enquanto dormia, o capitão do exército francês Henri Rochard (Cary Grant) procura sua parceira de missão, a tenente do exército estadunidense Catherine Gates (Ann Sheridan). Do lado de fora, ela apenas observa Rochard revirar o feno enquanto demonstra preocupação e carinho pela mulher. Ao perceber Catherine, Henri tenta se recompor e voltar à postura dura de rivalidade com a tenente. Até ali ambos haviam se comportado como parceiros por obrigação da ordem militar, revelando rixas e desacordos de uma ficha corrida bem antes do início do filme. Contudo, ao entrar no feno, Catherine provoca a doçura do capitão, instigando Henri a demonstrar o verdadeiro poder do famoso french kiss. A cena faz transparecer o desejo sexual latente das personagens quanto mais elas se provocam e se beijam, num cenário literalmente construído como um ninho de amor filmado em plano longo. As performances de Grant e Sheridan, no jogo de sedução e interação de seus corpos no decurso do tempo, criam um das cenas mais eróticas do cinema de Howard Hawks (talvez de todo o cinema da era dos estúdios hollywoodianos).

Mais que apenas o erotismo da cena, o beijo no feno marca uma linha divisória em A noiva era ele entre promessa, provocação, expectativa, de um lado, e ação, ato, em outro. Os dois polos em questão estão presentes em diversos filmes de Hawks, talvez um dos grandes mestres da espera no cinema. Se Onde começa o inferno é a quintessência disso, da expectativa, da promessa de ameaça vizinha à ação, inspirando uma dezena de cineastas a olhar a espera – John Carpenter à frente –, suas comédias amalucadas transfiguram essa “promessa” do amor e do sexo, na provocação entre personagens e corpos, instigando homens e mulheres a não ceder facilmente ao desejo enquanto, ao mesmo tempo, inflamam a libido mostrando ao “adversário” suas habilidades e faceirices. Nisso, as personagens de His Girl Friday, Bringing Up Baby ou Man’s Favorite Sport? dançam na fronteira do masculino e do feminino. Se Hawks não inventou a “guerra dos sexos”, até hoje um tema da comédia romântica, ele embaralhou o jogo ao nublar o que homens e mulheres podem fazer para levantar seu mais valioso troféu, o ato sexual.

A noiva era ele ataca essas duas frente bem na nossa cara. Primeiro porque é um filme em que a presença do sexo é gritante. Na primeira parte, a provocação, desde a aparição de Catherine até a cena do beijo no feno, percebe-se que a relação com Henri perpassa a atração sexual e táticas de sedução malsucedidas. Num cabo-de-guerra, homem e mulher disputando palmo a palmo a excitação da libido, passando por massagem, óleo nas costas, provocação verbal e, claro, as viradas de jogo na vida profissional para mostrar ao outro quem é mais competente e sagaz. O filme flui nas tiradas rápidas características da comédia do período, potencializado pelo uso no plano longo e pela movimentação dos atores. Hawks enfatiza o jogo entre corpos como forma de provocar, ele também, vibrações e sensações a partir das ferramentas do gênero da comédia: os corpos desinibidos, as falas rápidas, o ritmo amalucado.

Na segunda parte, o casamento e a noite de núpcias interrompida pela evacuação da cidade pelas forças militares estadunidenses forçam Henri e Catherine, de partida para a América às pressas, a buscar uma cama em espaço privado para ficarem sozinhos, passando da espera ao ato. As vibrações e insinuações eróticas da primeira parte dão lugar à frustração sexual de Henri. O ritmo frenético é constantemente interrompido pela mudança de situação da fábula ou mesmo pelo corte da cena. Hawks fragmenta mais a narrativa nesses 40 minutos finais, passando por muitos lugares e personagens apenas acessórios de uma máquina maior do mundo que parece ir contra o desejo do casal. Aqui a narrativa se faz de momentos curtos, episódicos, repletos de repetições de diálogos e reações, como se Henri, principalmente, e Catherine estivessem presos numa espiral de burocracia, mal-entendidos e frigidez geral da vida.

A questão do gênero aparece por inteiro na segunda metade. Antes, Catherine e Henri jogam a guerra dos sexos típica da comédia romântica mais frenética dos anos 1930-40 produzida em Hollywood, mas com o toque ácido de Hawks. Já vemos isso quando Henri chega ao quartel estadunidense para começar a missão e lê as siglas dos departamentos em placas sobre as portas, até chegar em frente a uma escrito “LADIES”, sem conseguir reconhecer o significado. Logo em seguida, uma mulher sai pela porta deixando claro tratar-se do banheiro feminino. Essa pequena piada introduz o borrão quanto às posições ambíguas de papéis diante do feminino e masculino que as personagens assumem. A começar por uma Catherine fluida e descontraída diante da rigidez do exército, da importância e dificuldade da missão, das tarefas necessárias para sua realização. Ela está sempre um passo à frente de Henri. No que ele é regra, ordem, rigidez, Catherine é esperteza, leveza e sagacidade. Enquanto Henri elucubra sobre como cumprir a missão, Catherine mostra competência e resolve. Esse dado é extremamente bem representado pela motocicleta, dirigida por ela: Henri é passageiro guiado pelo controle fluido que Catherine exerce sobre as coisas do mundo.

Após o casamento e a necessidade de ir para a América, masculino e feminino se invertem completamente, como indica o título. Por questões burocráticas, Henri só consegue cidadania estadunidense para viajar se assumir o papel de “noiva” de Catherine. Passa por processos burocráticos voltados para mulheres, mostrando um completo desconhecimento da vida prática feminina e a condição do trabalho reprodutivo, apontamento forte e curioso para um filme industrial dos anos 1940. Mais que isso, enquanto Catherine parece lidar bem com a questão, mostrando a Henri que tudo se resolverá, o francês entra numa trajetória de aflição enquanto cada vez mais assume o papel de noiva. O ápice será quando, a contragosto, ele se disfarça de mulher para conseguir embarcar no navio para os EUA. Sem querer carregar nas tintas, há um forte sentido em colocar uma estrela do porte de Cary Grant assumindo um lugar feminino aos poucos até se vestir completamente de mulher, tanto pelo tipo de masculinidade representada pelo ator quanto pela camada extra da vida íntima de Grant, ao lembrarmos de sua bissexualidade escondida ao longo da carreira. Logo depois de se disfarçar, Henri e Catherine passam por um soldado que assobia. O francês acha que o “regalo” foi para ele, mas a mulher logo diz para Henri não se empolgar, pois foi direcionado a ela. Há, também, uma crítica bem humorada à sociedade, repetida uma década depois por Billy Wilder em Quanto mais quente melhor, em que o homem disfarçado, além de não saber nada sobre o que é ser mulher, não é reconhecido pelos outros homens em volta, ainda que o disfarce seja precário. É nesse conjunto de detalhes, alguns explícitos e outros mais amenizados, que Hawks dispara observações sobre as relações entre os gêneros e questões de convivência social nas assimetrias, como o trabalho, o poder, o desejo, o sexo.

A Noiva Era Ele narra um longo processo de interrupção e castração. É importante lembrar que o filme se passa nos últimos momentos da segunda guerra mundial na Europa, em meio à destruição e às incertezas no velho continente em vias de se reconstruir. A liberdade plena enquanto ideal do esclarecimento moderno vê na destruição em massa do conflito seu momento agônico. A sociedade moderna, em suas estruturas e condições materiais, retratada por Hawks a partir da perspectiva do sexo, é um grande mal-entendido, pontuado desde o início do filme, de caminhos perdidos e uma boa dose de interdições. Nas fardas, regimentos, eventos burocráticos, rituais religiosos e cívicos, nos pactos tácitos de convivência, ao invés do sujeito livre, vemos o subjugado. Se o filme é a epopeia cômica de um Ulisses moderno em busca de uma cama para transar com sua Penélope, essa dimensão aparece como uma liberdade (sexual) quase sem lugar no mundo social. Ela se dá apenas na já citada cena do feno e no instante final, quando Henri, preso pela marinha, recebe a visita de Catherine e opta por trancar-se ali, isolando-se do convívio social com a esposa-marido e jogando a chave fora. A liberdade, representada pela famosa estátua novaiorquina na janela circular do navio, no último plano do filme, é um ruído entre dentro e fora, entre sujeito e sociedade, entre ideal e prática. Imagem contida, liberdade interrompida, miragem.

Continuem vigiando os céus! Paranoia e sobrevivência em…
O monstro do Ártico (The Thing from Another World, 1951)
por Beatriz Saldanha

Ainda que não tenha um reconhecimento à altura de sua importância para o cinema de gênero, é inegável que O monstro do Ártico (The Thing from Another World, 1951), em sua abordagem pioneira da temática da invasão alienígena, é um dos filmes seminais e inexoráveis da era de ouro da ficção científica. Para além da repercussão exercida em sua própria época, teve forte influência ou algum tipo de impacto sobre a visão e a formação cinematográfica de grandes mestres do cinema fantástico. Assim como seus colegas Steven Spielberg, James Cameron, Ridley Scott e George Lucas, o novaiorquino John Carpenter ainda era uma criança quando assistiu ao filme pela primeira vez e acabou profundamente assustado com o monstro que viu na tela. Uma revisão na escola de cinema tornou O monstro do Ártico um de seus filmes favoritos e o acaso fez com que, anos mais tarde, lhe oferecessem a oportunidade de refazê-lo. Carpenter aceitou o desafio; porém, considerando impossível melhorá-lo, decidiu modernizá-lo, adaptando-o ao seu próprio tempo e realizando o que provavelmente é o seu melhor filme até hoje: O enigma de outro mundo (The Thing, 1982).

Adaptado da novela Who Goes There?, de John W. Campbell (sob o pseudônimo de Don A. Stuart), publicada originalmente em agosto de 1938, O monstro do Ártico é ambientado em um posto de pesquisa estadunidense no Polo Norte. Quando uma aeronave de procedência desconhecida cai nas proximidades, uma equipe de cientistas e aviadores é enviada para realizar uma investigação e termina encontrando o corpo congelado de uma criatura alienígena, que em seguida descobrem tratar-se de uma forma avançada de vida vegetal que se alimenta de sangue.

Acompanhando um bom momento da ficção científica literária, o gênero vive um boom sem precedentes no meio cinematográfico nos anos 1950. Em parte, devido às tecnologias desenvolvidas durante a Segunda Grande Guerra, que tiveram impactos significativos na sociedade no âmbito doméstico, e também nos avanços na engenharia de foguetes, o que permitia que se fantasiasse cada vez mais com interações extraterrestres. É neste contexto que surge O monstro do Ártico, a primeira das muitas produções estadunidenses a abordar a temática da invasão alienígena naquela década. O filme reflete um momento de profunda paranoia social por parte dos Estados Unidos, um clima tenso em grande parte criado pelo início da Guerra Fria, um efeito direto do anúncio de que a União Soviética estava construindo suas próprias bombas nucleares, criando um oponente à altura dos norte-americanos.

Ainda que celebrado por alguns, O monstro do Ártico acabou sendo obscurecido por algumas polêmicas e controvérsias, sendo a primeira delas a dúvida de quem seria, de fato, seu diretor. Sabe-se que, além da sua função como produtor, Howard Hawks comprou os direitos da novela de Campbell ainda nos anos 1940, encomendou o roteiro, planejou o filme, ensaiou com os atores e supervisionou as filmagens. Christian Nyby, por sua vez, não tinha qualquer crédito prévio como diretor, mas vinha trabalhando como montador ao lado de Hawks, que lhe era grato pelo corte que considerava definitivo de Rio Vermelho (Red River, 1948). A fim de retribuir o favor e ajudá-lo com as credenciais de diretor, Hawks teria permitido que Nyby dirigisse O monstro do Ártico sob sua vigilância. Contudo, a assinatura hawksiana no filme permanece incontornável, desde as performances relaxadas dos atores, as relações entre homens e mulheres e, principalmente, os diálogos sobrepostos.

Outro fator que prejudicou a trajetória do filme foi a má recepção da crítica especializada em ficção científica, cujos comentários eram focados na transposição da novela para o cinema. O filme foi considerado uma traição radical do texto de Campbell por transformar um alienígena metamorfo em um monstro com uma forma muito bem definida – a criatura, interpretada por James Arness, protagonizou alguns dos momentos mais aterrorizantes daquela década. De certo modo, a questão acabou sendo resolvida por John Carpenter em sua versão para a história, e O monstro do Ártico segue sendo um dos maiores clássicos do gênero.

O assobio do pássaro e um escalpo em chamas
O rio da aventura (The Big Sky, 1952)

por Gabriel Papaléo

Um céu que se abre sob um letreiro contando sobre pioneiros e um encontro pitoresco; depois, dois homens chegam numa cidade a cavalo e se deparam com um lugar, como eles mesmo descrevem, apinhado de gente; a cidade é uma farsa, o espírito de exploração não. Pouco depois, um deles, vivido por Kirk Douglas, pede ao companheiro que não maltrate um indígena só porque tem raiva do tio com essa herança étnica. A Howard Hawks interessa a observação crítica e o conflito dramático, e para sua câmera, tão importante quanto a celebração da taverna é a atenção às cerimônias dos indígenas na cena anterior. É desde já que uma proposição de radical simplicidade se ensaia: como retratar uma comédia de camaradagem com pano de fundo histórico tão violentamente enraizado nos pioneiros fajutos que são nossos heróis?

O ritmo de comédia das falas de Hawks é traduzido com harmonia para a travessia de faroeste, uma aproximação que o diretor encara com igual rigor, seja uma sequência humorística ou uma coreografia de ação. O uso do francês constantemente interrompido pelo chamado ao inglês como beat cômico – assim como quando Caudill (Dewey Martin) prevê a frase que Zeb (Arthur Hunnicutt) irá dizer em seguida – são piadas recorrentes de uma preocupação matemática com a estrutura, obedecendo a preceitos de ritmo antes de exposição, que ganham uma camada a mais porque Hawks as usa para frisar a cumplicidade de Caudill com Deakins (Kirk Douglas). Porque O rio da aventura é um filme agressivo de um véu intransponível entre culturas com histórico de violência, mas também é uma aventura de construção de amizade e sobretudo confiança.

Mais tarde, nessa ótima cena de reencontro entre Deakins, Caudill e Zeb, a fala cadenciada é ditada pelo ritmo, não pela informação, com as vozes de Douglas, Martin e Hunnicutt compondo a música da cena, a preparação para um retorno tenso ao acampamento; é uma típica solução de Hawks para quando lida com exposição em O rio da aventura: aplica o ritmo veloz das suas comédias screwball às informações de trama que inevitavelmente abraça no filme, que explicita sua estrutura literária na predileção pelo acúmulo de eventos cuja causalidade é menos central ao arco narrativo principal que a disposição de revelar um mundo que transborda a trama. A atenção à coreografia (na taverna, no barco) surge agora tanto como estrutura cômica quanto intervenção surpresa ao suspense.

A narração em off entra nessa estrutura como relato de mitologia, em contraste à aventura de espírito bucaneiro da dinâmica entre os exploradores. O companheirismo surge pelo contato primeiro de violência, depois de afinidade pelo espírito combativo. Na cena da caverna, Deakins se preocupa em demonstrar sua gratidão por Caudill ter vindo buscá-lo, nessa ambiguidade entre honra e amizade, aventura e exploração que atravessa cada relação em O rio da aventura. Todo o imaginário de uma jornada ao oeste, que nos quinze primeiros minutos mapeia a chegada à cidade e as dinâmicas de poder típica do faroeste, se entrega à pura travessia, os obstáculos pelo rio, como uma exploração de aventura que a habilidade em tom de Hawks constrói com muita economia.

A tensão política da chegada na cidade retorna na conversa ao pé da fogueira, com o escalpo de um indígena presenteado a Caudill como reminiscência de uma vingança familiar. O gesto é questionado pela fúria de Olhos Azuis (Elizabeth Threatt), indígena da mesma tribo, que passa o filme inteiro sem pronunciar uma palavra em inglês e mesmo assim é sentida e entendida em todas as cenas – mesmo a barreira da tradução não é vista como piada para Hawks, que canaliza isso na figura do francês e o beat cômico que vem com ele. A Hawks interessa essa distância e essas frestras políticas na aventura e no bom humor da exploração, a tensão étnica que surge rio adentro. “Os indígenas podem nos deixar doidos com as coisas que fazem”, a narração em off sublinha em certo ponto, mantendo sempre a barreira do idioma e do código da tribo como fonte primária do suspense.

A assombrosa sequência dos corvos acompanhando a embarcação à margem é central nesse pêndulo surpreendentemente conciso entre mitologia e desconstrução de imaginário; os indígenas pacíficos que “há muito não demonstram hostilidade”, numa cerimônia de autoridade, vigiam a travessia como mesclados à paisagem, para desvario dos exploradores que preferiam inimigos que se pronunciam como tais, às claras, não só pelo preconceito político como por puro ideal do que consideram sobrevivência.

Conforme o filme adentra o rio, o protagonismo do personagem de Dewey Martin vai se esvaindo, como se eclipsado pelos que melhor lidam com a suposta terra selvagem. É na harmonia crescente com Olhos Azuis, no companheirismo que eventualmente leva a uma tensão sexual nunca consumada – muito pelas disparidades históricas entre ambos –, que seu personagem volta ao centro da narrativa, quando se vê preparado para o resgate de Deakins. O rio da aventura está cheio desses pequenos arcos dramáticos intrincados, desenvolvidos às margens, sentidos na penumbra, prontos para se revelar quando a trama os coloca à prova. É uma das heranças mais visíveis de Hawks no seu talvez mais famoso discípulo, John Carpenter, que também nunca se furtou de extrair questões políticas e suas tensões nas dinâmicas de grupos que filma.

O gesto da cerimônia que sedimenta raízes sociopolíticas volta ao filme no presente que Olhos Azuis, agora trajada da liderança que é no seu povoado, entrega a Deakins. A breve frustração no olhar de Kirk Douglas ao perceber que não fora correspondido pelo amor de Olhos Azuis, mas aceitando com um sorriso a nova “irmã adotiva” que ganhou, é um toque sutil dessa melancolia atravessada pela comédia de situação, do fracasso. Leveza essa que nunca abandona o espírito de Hawks mesmo no ápice do conflito principal do personagem de Dewey Martin, quando o diretor o coloca numa situação diretamente afetada pela sua barreira de tradução desenvolvida no filme inteiro, ao retratá-lo diante da cerimônia de seu casamento sem ao menos saber o contrato social que estava assinando quando escolheu sua noite com Olhos Azuis.

Na despedida solitária de Olhos Azuis, a melancolia da travessia e da plataforma atinge o triângulo amoroso por diferentes motivos: a intriga do desejo e a transformação da missão, que sugerem o ponto final de uma amizade de ambições distintas. Mas não é a grande despedida cerimonial que encerra o filme, e sim uma revelação breve, ao pé de ouvido, numa conversa de fogueira, que ressalta que por trás do discurso de ódio existe uma farsa social enorme; toda a jornada de descoberta de Caudill, o caubói explorador que assobia como pássaro e foge dos assentamentos, é para aceitar um passado com ligações indígenas que ele rechaçava por acreditar num mito que trazia mais dignidade a uma morte querida.

Mitologias se inventam, na cadência das falas e no ritmo das imagens, e com Howard Hawks a mitologia se constrói e debate a si mesma na mesma sequência, na mesma cena, por vezes no mesmo plano. O desejo revela em Caudill que harmonia se descobre e é aquilo por que se luta, e que quando ele pensa em si mesmo o que mais admira não é seu histórico de violência nem sua vontade de exploração: é a herança oculta do outro que passou uma vida recusando pela banalidade que a honra traz.

O inventor da mocidade
(Monkey Business, 1952)

por Inácio Araújo

Quando o diretor coloca a câmera, nos filmes de Howard Hawks, sua intenção não parece ser a de que ela participe dos acontecimentos. Antes, é alguém que posta sua câmera para que ela observe os acontecimentos. É como se, entre a ação e aquilo que a câmera vê existisse uma espécie de véu barrando nosso envolvimento direto com a trama e como que convidando o espectador a refletir sobre o que vê.

Sobre o que, no entanto, refletir a propósito de Monkey Business (O inventor da mocidade)? Existe ali um cientista a serviço de um laboratório que tenta produzir um elixir da juventude. Um macaco se introduz nas experiências e produz um desarranjo colossal.

O espectador está certo quando pensa que basta e rir e se divertir com essa proposta meio sem pé nem cabeça. Isso é frequente nas comédias de Hawks, e foi isso que me chamou a atenção sobre elas: por que temos a sensação de nos divertir tanto com coisas tão sem sentido? Algo semelhante acontece com as comédias de Buster Keaton, em que, ao contrário dos filmes de Chaplin, dos Irmãos Marx ou mesmo de Billy Wilder, não se consegue distinguir um propósito imediato senão o de provocar risos.

Se observarmos os filmes mais detidamente, no entanto, esse propósito começa a se mostrar. Monkey Business se abre com o dr. Barnaby (Cary Grant) esquecendo suas chaves. É Edvina (Ginger Rogers), sua mulher, quem o traz de volta ao mundo das coisas. Como todo cientista hawksiano, Barnaby parece estar sempre em outro lugar, é incapaz de olhar o mundo exterior e menos ainda de se relacionar com ele. Seu mundo é o do pensamento, que na visada do autor se opõe ao mundo da ação, dos gestos, dos objetos. Como comprovação, ele usa óculos do tipo fundo de garrafa.

Mas ele deve ser meio genial, porque Mr. Oxley (Charles Coburn) o dono do laboratório, bota muita fé em suas pesquisas, cujo resultado deve ser o milagroso B-4 (ou before, ou antes), o produto que lhe devolverá os melhores dias, os de juventude, e possibilitará uma aproximação mais concreta de Lois (Marilyn Monroe), a sedutora secretária em que ele está de olho. Algo, porém, impede Barnby de chegar ao resultado.

Por negligência do faxineiro do laboratório, um chimpanzé escapa de sua jaula, mistura os líquidos com que Barnaby trabalha e consegue chegar onde ele não conseguia: à sonhada fórmula da juventude.

Qual é a fórmula, no entanto, ninguém sabe. Nem, é claro, seu criador, o chimpanzé Rodolfo (os animais com frequência têm nome nos filmes de Hawks). Ocorre que Rodolfo havia misturado a fórmula à água do bebedouro. A água que Barnaby toma. Os efeitos são imediatos.

Assim como Rodolfo, Barnaby experimenta uma regressão imediata à juventude, que começa com os olhos voltando a funcionar como no passado e termina com o cientista cortando os cabelos, adotando roupas da moda e comprando um carro esporte, com o qual, aliás, dará passeios velozes na companhia da sempre disponível miss Lois. Outras reações semelhantes ocorrerão, na medida em que ninguém sabe o que provoca a regressão à juventude.

Hawks, como se sabe, é conhecido pela ideia de “câmera à altura do homem”, que ele próprio sempre alardeou. A posição mais simples do mundo, ele completava. Há algo de errado em limitar seu cinema a uma ideia tão elementar. Hawks era sem dúvida mais esperto que isso, e se se comprazia em evitar qualquer discussão que envolvesse ideias, é certo que as tinha.

Penso que a câmera à altura do homem leva a outra questão: afinal qual é a altura do homem? Ou ainda: o que é ser um homem? E o que faz de um homem um homem?

Fala-se aqui, claro, do gênero humano (homem ou mulher, é tudo a mesma coisa, disse Louis Skorecki, retomado por Godard). Talvez se possa precisar: do homem branco, de que tratam seus filmes (ao ver Hatari!, sabemos que o homem negro africano não tem lugar ali, a não ser como subalterno).

Nos filmes de aventura de Hawks, ser homem consiste em lutar, infatigavelmente, para preservar essa condição. Ela se encontra sempre ameaçada. Eventualmente, é necessário superar obstáculos enormes para reconquistá-la. Assim, o Dude de Rio Bravo deve superar o alcoolismo, tanto quanto o aviador MacPherson, em Only Angels Have Wings, precisa executar um feito extraordinário para se reabilitar diante de seus colegas e voltar a ser visto como um humano de pleno direito.

Aqui, a mesma questão é posta, mas de forma talvez um pouco mais oblíqua. Passando dos 50 anos, Hawks parece pensar na evolução humana não em termos de espécie, mas estritamente individuais. O que é a maturidade? O que significa envelhecer? Por que a ideia de envelhecer nos assusta e deprime? E no que implica o desejo permanente de sermos sempre outros?

Hawks não tratará da morte, que é acabamento da condição humana. Tratará de nós vivos, de nossas diversas idades. Do absurdo que consiste em um homem de meia-idade reviver de repente sua juventude. Ou do desejo de um idoso, como Mr. Oxley, de paquerar e chegar a transar com a inquietante secretária. Ou de Edwina regressar à primeira adolescência e fazer brincadeiras próprias dessa idade.

Para que o homem exista, é preciso adequar-se a certas leis da evolução. Assim, entre Barnaby e Rodolfo, o chimpanzé, a diferença existente é pequena. A olhar os gestos e o olhar do animal, vemos ali a evolução: já está ali, de certa forma, o homem.

Assim como o macaco está na gênese do homem, nascemos, nos tornamos crianças, adolescentes, jovens, maduros e, finalmente, velhos. Se tentamos subverter essa ordem, caminhamos contra a natureza da própria humanidade, instaura-se o caos e toda a delicada arquitetura que faz de nós humanos desaba com o mesmo estrondo que provoca a queda da ossada de dinossauro em Levada da breca. Com a diferença que, quando o esqueleto, essa estrutura sem vida, desaba, o cientista (novamente Cary Grant) recobra sua humanidade.

Podemos concordar ou não com o pensamento que se constrói ao longo desses filmes de que Deus está ausente, pois a câmera à altura do homem supõe que a aventura diz respeito a homens, não a deuses. Mas a estranha solidez que se desprende deles e nos atinge, a sóbria maneira como a ação não se deixa contaminar por nossas paixões fazem de Monkey Business um filme muito especial, numa filmografia muito especial.

P.S.: Não me atrevo aqui a fazer referência ao artigo seminal de Jacques Rivette sobre Howard Hawks, motivado, entre outros, por esse filme, mas remeto à sua magnífica frase final: “Caminhando, Hawks prova o movimento, respirando, Hawks prova a existência. O que é, é”.

Os homens preferem as louras
(Gentlemen Prefer Blondes, 1953)
por Paula Mermelstein

A adaptação cinematográfica do romance Os homens preferem as louras, escrito em 1925 por Anita Loos¹, que narra a história de uma jovem flapper cujos casos românticos são motivados pela conta bancária de seus pretendentes, poderia ser um desastre quando transposta à Hollywood de 1950, tida por muitos como a década mais conservadora dos Estados Unidos naquele século. Baseado não diretamente no livro, afinal, mas no musical de mesmo nome lançado em 1949, também coescrito por Loos, o filme é mais um caso usual na indústria hollywoodiana: diferentes versões de uma mesma história que foram levemente modificadas até serem sedimentadas na forma límpida e reluzente do tecnicolor e nas figuras míticas de atrizes célebres. Foram certamente os sucessos já observados do livro e do musical que incentivaram os estúdios a produzir essa versão cinematográfica² da mesma história, mas foi o filme de 1953, estrelado por Marilyn Monroe e Jane Russell e dirigido por Howard Hawks, que consagrou as figuras icônicas de Lorelei Lee e Dorothy Shaw no imaginário recente da cultura pop. Das centenas de roteiros e títulos de filmes mudos escritos por Loos, são provavelmente os diálogos e canções de Os homens preferem as louras de 1953 aqueles que mais prevalecem, sempre acompanhados das imagens cintilantes das duas estrelas em vestidos vibrantes.

Os filmes de Hawks são guiados, essencialmente, pelas relações afetuosas entre suas personagens, sejam estas de teor amoroso, como em Levada da breca e Jejum de amor, ou fraternal, em filmes como Rio Bravo, El Dorado ou mesmo Scarface. Os homens preferem as louras não é diferente: o filme é, antes de tudo, sobre a amizade de suas duas protagonistas, uma loira e outra morena. A despeito do título, afinal, Os homens preferem as louras não toma lados: ambas as personagens são igualmente importantes para a trama, assim como a dicotomia que estabelecem. Jane Russell assume o papel da personagem “pensante” da dupla com sua Dorothy, enquanto à Monroe é encarregado o papel não apenas de “eye candy”, mas de alívio cômico com sua Lorelei.

O filme é plenamente consciente do que busca com suas duas estrelas. Russell, um sex symbol na época, conhecida principalmente por seu papel no western provocante dirigido por Howard Hughes, A Terra dos Homens Perdidos (The Outlaw, 1943), tem sua silhueta nitidamente afinada e alongada em Os homens preferem as louras, em que usa vestidos escuros e decotes mais fechados, servindo como contraponto à volúpia de Marilyn, com roupas mais justas, de cores mais vivas e decotes mais ousados. Dorothy se aproximará mais da mulher hawksiana, que sempre tem respostas rápidas e expressa seu desejo pelos homens ao seu redor sem constrangimento, enquanto Lorelei, uma gold-digger em busca de um sugar daddy, é a princípio uma figura mais suscetível e ingênua – se aproximando também do clichê da “loira burra” que Monroe já havia interpretado em outro filme de Hawks, O inventor da mocidade. Esta é, ao menos, a camada mais superficial do filme – morena e loira, esperta e burra, Russell e Monroe – e que floreia tão bem com seu apelo imagético: tudo aqui nos é convidativo, as cores vibrantes, os figurinos vistosos, as coreografias sensuais e, é claro, as duas atrizes.

Como algumas das outras produções mais tardias de Hawks, Os homens preferem as louras trabalha com um ritmo menos ágil e, neste caso, mais intervalado. Em lugar das tramas fluidas e aceleradas de algumas de suas mais célebres comédias como Levada da breca ou Jejum de amor, temos um filme nitidamente separado em diferentes atos – herança evidente da adaptação teatral – cuja trama é interrompida por números musicais, como dita o gênero.

O musical, aqui, permite uma compressão da narrativa que é útil ao cineasta, para quem o momento presente sempre pareceu mais importante do que a trama em si. A música inicial, “Little Rock”, por exemplo, já explicita uma origem humilde das duas personagens, provindas de uma cidade pequena. E se sentimos falta do desenrolar absurdo de eventos de Levada da breca ou dos diálogos quase ininteligíveis de tão rápidos de Jejum de amor somos recompensados pela presença cênica de Jane Russell e Marilyn Monroe. A dupla também engaja diálogos tipicamente hawksianos, é claro, mas a duração destes é comprimida pelas apresentações das atrizes, e não apenas nas cenas musicais, mas em cada introdução das personagens em cena, sempre com um novo e estonteante figurino, que fará todos ao redor – em sua maioria, homens, como já prevê o título – pararem para observá-las. Apesar de explorar de forma evidente a silhueta das atrizes e seu sex appeal, a exuberância com que aparecem em cena não é apenas erótica, mas vale-se também de um fascínio de outra ordem, quase infantil, como o de uma criança diante de um objeto cintilante ou colorido. A opulência, o brilho e a vivacidade em questão, principalmente no que diz respeito a Marilyn Monroe, são melhores equiparadas àquelas de um diamante, pedra que sua personagem tanto cobiça.

Também as cenas musicais em si, que de acordo com relatos da produção não foram dirigidas por Hawks mas pelo coreógrafo do filme, Jack Cole, funcionam neste ritmo mais ralentado. Estas não apresentam coreografias complexas e caleidoscópicas como aquelas dos musicais das décadas anteriores. Em alguns números, as duas atrizes principais nem chegam a dançar tanto quanto posar, como se o interesse das cenas fosse menos pela apresentação do que na própria imagem produzida, em seu aspecto gráfico, em sua paleta de cores reduzida e intensa, se aproximando do que viria a ser nas décadas posteriores a estética do videoclipe. Esta interpretação menos dinâmica do musical parece provir de uma certa ideia de modernidade que adentrava no cinema hollywoodiano da época, referente tanto à arte moderna quanto à publicidade e à moda. O filme, afinal, pertence à década de 50, a mesma do New Look de Dior, a mesma que propaga o american way of life em oposição à crescente ameaça comunista, a mesma em que grandes pinturas monocromáticas do Expressionismo Abstrato começam a se tornar tendência de decoração nos escritórios nova-iorquinos; logo, os limites entre arte e publicidade e publicidade e vida seriam efetivamente borrados.

Mas o que acontece entre apresentações? Após os impactos iniciais de cada nova cena, novo figurino, novo número musical? É ali que reside, de fato, a comédia de Hawks e a escrita de Loos. Pois apesar do filme aderir prontamente a clichês, às imagens vistosas, suas protagonistas continuamente nos surpreendem e contradizem as premissas que estabeleceram. Em momentos de apuros, Lorelei se mostra ser tão astuta quanto Dorothy, além de nitidamente consciente da maneira que usa seu charme – quando a amiga lhe pede para que consiga 1500 dólares de seu noivo, por exemplo, Lorelei prontamente calcula que para isso precisará de “1 hora e 45 minutos”.

No final do filme, a personagem convence o pai de seu noivo – contrariado com a união do casal devido à reputação de Lorelei – a deixá-los casar, com seu argumento icônico: “Don’t you know that a man being rich is like a girl being pretty? You wouldn’t marry a girl just because she’s pretty, but my goodness, doesn’t it help?” [Você não sabe que um homem ser rico é como uma mulher ser bonita? Você não casaria com uma garota só porque ela é bonita, mas meu deus, isso não ajuda?”]. Completa, ainda, que se ele tivesse uma filha, certamente iria preferir que ela não se casasse com um homem pobre. O que a personagem está dizendo, essencialmente, é que apesar de toda a feminilidade que performa, seu comportamento não se distancia muito daquele dos homens a seu redor. O fato dela não se interessar simplesmente por dinheiro mas por diamantes apenas enfatiza esta equivalência: ela não quer simplesmente uma moeda de troca, mas uma bela moeda de troca – my goodness, doesn’t it help?

A princípio, é o comportamento de Dorothy que parece se aproximar mais com o dos homens da trama. Apesar de sua canção solo no início do filme, “Ain’t There Anyone Here for Love”, clamar por amor, está implícito que ela se refere a um amor menos romântico do que sexual. O desejo de Dorothy pelos homens que passam em seu caminho, geralmente motivado por sua aparência física – como reitera, novamente, na canção citada – é assim muito próximo àquele dos homens que são atraídos por Lorelei.

Mas assim como Dorothy acredita que precisa cuidar de Lorelei, protegê-la de possíveis enrascadas em que a amiga se coloca – como aquela que justifica o conflito central do filme –, o mesmo vale para a outra. Lorelei também acredita proteger Dorothy de relações sem futuro: para ela, casar-se com um homem rico é também uma questão de garantia, como expressa à amiga em dado momento. Nesse sentido, Lorelei se mostra não apenas mais inteligente do que pensávamos, mas menos ingênua, até mesmo do que a amiga. Afinal, tudo depende do ponto de vista que tomamos; e o que seria mais ingênuo do que, sendo uma showgirl, profissão que não possui exatamente um plano de previdência, casar por amor? Caso a questão não tenha ficado clara na célebre performance de Lorelei/Marilyn da música “Diamonds Are a Girl’s Best Friends”, Madonna a reitera décadas depois com sua música “Material Girl”, cujo clipe é uma homenagem ao número musical: “estamos vivendo em um mundo material e eu sou uma garota material”. Nesta troca de equivalências, as duas personagens, assim como os homens que as cercam, são igualmente superficiais, ou apenas “garotas materiais vivendo em um mundo material”. O que resta, de fato, a salvo do cinismo, é a amizade, assim como as personagens de John Wayne em Rio Bravo ou El Dorado, apesar da personalidade enrijecida, continuamente mudam de rota para socorrer seus amigos.

Mas o diálogo final mencionado entre Lorelei e seu futuro sogro não acaba ali. Após a personagem expressar seus argumentos, o homem, chocado, exclama: “Me disseram que você era burra! –, ao que Lorelei responde que “pode ser inteligente quando importa, mas que os homens geralmente não gostam disso”. A cena, enfim, não apenas complexifica a personagem estereotipada mas acrescenta uma camada quase meta-linguística ao filme. Ao admitir que atua desta forma propositalmente, assumimos que Lorelei estava, este tempo todo, apenas interpretando um papel de loira burra.

A revelação, enfim, não se restringe à personagem, estendendo-se à atriz que era tão confundida com os clichês que interpretava. A confusão não se deve apenas à mentalidade machista da época, mas também à dimensão mítica que havia sido construída a partir da atriz: por um lado, um fascínio por sua imagem, por outro, o mistério sobre sua verdadeira persona, por trás da máscara, fomentado em grande medida após sua morte precoce.

Em uma de suas obras mais intrigantes, Marilyn Diptych, de 1962, Andy Warhol retrata a atriz recém-falecida em serigrafia, repetidamente, em dois paineis: um colorido, um preto e branco. A imagem utilizada no processo de gravura é uma fotografia promocional de Marilyn em Niagara, de 1953, filme que de fato lançou a atriz à fama, cuja estreia se deu alguns meses antes de Os homens preferem as louras. O que significa a dualidade de cores do díptico? Marilyn viva e Marilyn morta? A Marilyn do tecnicolor e a Marilyn do filme noir? A pulsão sexual e a pulsão da morte?

Se no díptico de Warhol passamos de Marilyns coloridas à Marilyns preto e branco, no filme de Hawks passamos de Lorelei burra à Lorelei inteligente, de musical à comédia, de loira à morena, do clichê à sua ruptura. Essa passagem de um ao outro talvez não seja tão sutil, tão ágil, quanto o é em outros de seus filmes, mas é, ainda, dinâmica. Jane Russell, como costumam ser as mulheres de seus filmes, é ao mesmo tempo firme e charmosa enquanto simultaneamente orquestra as situações em que se encontra e se deixa levar por elas. E em sua interpretação debochada de Lorelei, Marilyn Monroe, aqui, não é só uma imagem; diferente do rosto rígido ao qual nos acostumamos nas obras de Warhol e em tantas outras fotografias suas, ele está, aqui, em constante movimento, sua expressão varia entre a súplica, a sedução, a gratificação, o ultraje e a surpresa em um mesmo plano.

De todo modo, alguma espessura de sua máscara ainda é mantida: não tanto por sua expressão que já descobrimos ser volátil, uma ficção, mas por sua voz, mantida caracteristicamente fina e infantilizada ao longo de todo o filme. Quem rompe com esta não é ela, mas Russell, quando se passa por Lorelei no tribunal, a fim de ganhar tempo para a amiga, que está sendo acusada pelo furto de uma tiara de diamantes, fugir. Dorothy se veste a caráter com uma peruca loira e trajes provocantes, e começa a falar com a voz característica que não se restringe à personagem de Lorelei, mas tornou-se marca registrada de Marilyn. Em dado momento, Dorothy inadvertidamente interrompe a performance, o que só percebemos pela mudança de tom, quando Jane Russell começa a falar com sua própria voz, mais grossa e arrastada, tornando o contraste nítido. Se Russell pode imitá-la com tanta facilidade, seria esta realmente a voz de Marilyn Monroe, ou seria também uma interpretação por parte da estrela? O mito de Marilyn se desdobra, assim, para além de sua imagem, e sua persona torna-se ainda mais incógnita. Onde acaba Marilyn Monroe e começa Norma Jeane Mortenson?

O fato de não podermos afirmar ao certo motiva parte do fascínio que a atriz exerce até hoje³. Os homens preferem as louras parece nos oferecer mais pistas para a solução deste mistério do que as imagens de Warhol, mas talvez sejam pistas falsas, apenas uma encenação mais elaborada. Marilyn interpreta durante a maior parte do filme seu mais típico clichê, apenas para sugerir, no final, que talvez fosse tudo uma farsa. Aquilo que mais fascina em Os homens preferem as louras, afinal, talvez seja justamente sua capacidade de entrar e sair de situações tão díspares de modo tão suave, de dissipar paradoxos em nome deste “bem maior” que é o entretenimento. É importante, afinal, lembrar, que além de tudo isso, se Os homens preferem as louras continua sendo um filme tão popular ainda hoje, é porque se mantém, sobretudo, divertido.

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1 Escritora e roteirista de numerosos peças e filmes, inclusive para D. W. Griffith.
2 Uma adaptação cinematográfica silenciosa da história já havia sido feita em 1928, mas é hoje considerada perdida.
3 Esse fascínio é próximo daquele presente não apenas nas obras de Warhol, mas também em sua persona. Hoje quase tão célebres quanto suas telas, afinal, são suas citações irreverentes, nas quais nunca podemos afirmar se o artista realmente acredita nos absurdos que professa ou se estaria apenas reproduzindo a própria cultura que utiliza como tema; se ele realmente é assim ou se estaria se escondendo por trás de uma máscara. 

Terra dos faraós
(Land of the Pharaohs, 1955)
por Luca Nicolleli

Amemos as loiras (e as morenas), o brontossauro e o filhotinho de leopardo, os aviões, os jornalistas apressados e os infinitos verbetes da Enciclopédia – mas jamais amemos a pirâmide. O castigo de Terra dos faraós é ser, em direção à eternidade, um monumento destinado ao fracasso, que esconde em seu interior as riquezas de suas grandiosas e inconclusas projeções. Na companhia de alguns críticos defensores, honrados súditos sem língua, ele permanece à espera de uma segunda vida. É possível desprezá-lo, um grande corpo de obra requer grandes riscos e grandes quedas. O que amar, sob o signo desse desprezo, nesse filme tão estranho, informe, “menor”, que fora rejeitado até por seu realizador?

Suas próprias palavras podem nos oferecer um caminho entre muitos outros. “Look at it, feel it. I love the feeling of gold” (Olhe, sinta. Eu amo o sentimento do ouro.), diz o faraó Khufu ao seu confidente sumo sacerdote Hamar. A mesma ideia que retornará, ao avançar do filme, na voz da segunda esposa e gananciosa Princesa Nellifer. As sensações do toque, os prazeres terrenos e carnais que representam, conflitam com o destino daquele tesouro, com a crença de que ele dará segurança na passagem do faraó à sua segunda vida. O filme inteiro narra a idealização e construção de uma tumba que proteja cadáver e joias; nessa mesma cena, o faraó é apresentado aos labirínticos projetos dos arquitetos de seu reinado, encontrando-se rodeado pelos espectros do porvir. A opção pelo projeto do escravo Vashtar, empreendimento majestoso de uma pirâmide apontada aos céus, passa por um processo anterior a toda elevação. Ele pressupõe bases sólidas, que sustentem o infinito em solo de areia.

São essas bases o interesse de Hawks com o projeto de seu filme. Aquilo que há de mais concreto e físico, portanto, que é reconhecidamente a essência do seu ofício: a imagem dotada de vibração produtiva. Para realizar o objetivo de aperfeiçoar o uso do CinemaScope em todo o seu alcance, não poderia ter filmado paisagens mais dinâmicas: as figuras humanas em série formam um volume denso na natureza desértica, corpos em trabalho árduo são dispostos com rigor em composições elaboradas. O trabalho na pedra, talhada e carregada à exaustão, é o motivo fundamental: os servos aprimoram as superfícies das rochas enquanto entoam canções “alegres”, esforçam-se incansavelmente na busca pela promessa de suas próprias segundas vidas – até as inevitáveis contradições da realidade em que vivem recaírem sobre seus ombros, um fardo pesado como os blocos que carregam.

Ouro e pedra, a dialética em Terra dos faraós. Entre o gosto de seu monarca pelos metais e os labor de seus servos na pedra, o cineasta tenta conhecer as propriedades e os mistérios daquilo que dispõe à sua manipulação. A matéria visual é a prioridade do seu exercício; no Egito, quem tem olho é rei – Vashtar não consegue exercer sua tarefa com a perda da visão, os escravos são vendados para não enxergarem os desvios enganadores no interior da pirâmide. Contrariando a si mesmo, Hawks sucede, com mãos de ourives: pensamos que toda adversidade em set não deixou de produzir a beleza em tantos desses planos, ou as modulações de espaços que permitem uma montagem de tão sofisticadas gradações; ou o colorido aquarelado e tão singelo do seu design de produção. O acompanhamento musical de Dimitri Tiomkin nos transfere ao sentido da audição, à atmosfera negra que ele evoca.

Padrões de construção: pedra por pedra, plano por plano, som por som. É uma tentação ao espectador a de procurar afinidades entre o fazer do filme e o fazer da pirâmide; essas são várias e preciosas – dois exercícios coletivos, de proporções colossais, a obra enquanto epitáfio. A concreção do que a tumba-cinema se torna, sua existência e sentido posteriores, é endereçada na fala final de Vashtar sobre Khufu: he built better than he knew (“ele construiu melhor do que sabia”). Ao faraó – longe do canteiro, sem a capacidade motora para o desenho, não movendo sequer um grão nesse chão – é conferida a assinatura final, o nome cravado no tempo. Não há dúvidas que o autor hawksiano, mais do que o tipo do trabalho, é o tipo do espírito. O espírito está lá, seus temas estão visivelmente contornados: a comunidade, o objetivo, os homens. Essa é uma história das primeiras civilizações, que se decide contar como se contaria qualquer outra que lhe fosse apaixonante. Há apenas motivos afirmativos para que um homem do poder antigo fale como um homem do poder novo, o sulista dono de plantações de algodão faulkneriano. Exploração, compromisso e desejo.

Terra dos faraós organiza suas questões entre os dois polos da matéria e da alma, atravessa-os no movimento de um pêndulo. Esse embate é central ao filme, é o mesmo que assombra Khufu e que faz funcionar as engrenagens de todo um sistema produtivo. É de matéria e de alma que se produz qualquer coisa de valor, aquilo que deve ser amado e lembrado. Amemos, pois, tudo que está a reluzir na tela como a fatura de um gesto ambicioso. Amemos os interiores suntuosos, as multidões orquestradas. O modesto e eficaz mecanismo de Vashtar, a didática de sua explicação. A melodia que seduz a cobra, a mãe que salva seu filho, o traçado das gotas de sangue sobre o chão. Os planos maléficos de Joan Collins, mergulhada em um mar de sombra desde o primeiro instante, como ela é vista através do prisma da morte nos momentos finais do marido traído, abstraindo sua imagem na luz. Amemos o pathos da tragédia, a densidade emocional que toda fala carrega, o fim aterrorizante da nova rainha. Amemos como todas as coisas se concentram e se dilatam sob o frio luar e a quente chama das tochas. Amemos, sempre amemos e lembremos da pirâmide.

Relógio de luz
Onde começa o inferno (Rio Bravo, 1959)

por Hernani Heffner

Para Lilian

Não há nada a dizer sobre Rio Bravo.

O filme já diz tudo. Por todas as línguas que o cinema possui. Cinema, não filme.

Ver filmes em determinadas salas de exibição 35mm faz toda a diferença.

Vi Rio Bravo por acaso no final dos anos 70, cinema Alaska, dentro da famosa e mal afamada Galeria Alaska, o ponto de encontro dos travestis de Copacabana. Era também onde Rogéria e outras artistas se apresentavam de quando em quando. Nada mais contraditório do que ir ver o ícone supremo da macheza hollywoodiana, John Wayne, em meio a um corajoso desfile público de plumas e paetês. Tempos de ditadura militar.

Nada disso importou para mim. Não tinha muita consciência do mundo à minha volta.

O que vagamente importava é que tinha “idade” (16 anos), travestida em “altura” (18 anos), para ver o filme, já que a censura e os donos medrosos de cinemas viviam impedindo a entrada de “menores”. Não conhecia o Alaska. Estava passando um filme antigo e provavelmente não criaria problemas. Mas não era um poeira e não estava apresentando um programa duplo. Isso era esquisito. Não existia na época noções como “clássico”, “cult”, “incontornável”. Exibição regular de filmes antigos, logo descobriria, era coisa de Cinemateca e das salas que ela programava no Rio de Janeiro (naquele momento o cinema Lido 2, no bairro do Flamengo). A do Alaska foi no mínimo inusitada para um filme de 20 anos antes.

A galeria era escura, algo avermelhada (o comércio do local era similar ao que Paul Schrader mostraria logo a seguir em Hardcore – No submundo do sexo; um retrato não muito diferente foi feito pelo José Joffily no curta que leva o nome da galeria) e o cinema não se destacava. Dentro, dava continuidade ao vermelho nas cadeiras de espaldar alto. Eram novas e fugiam ao padrão das salas mais antigas, algumas ainda com as longarinas e assentos todos de madeira, como no Botafogo (atual Estação Net Rio), outras baixinhas e com os velhos estofados Kastrup, como as do Palácio, que ainda podem ser conferidas no Teatro Riachuelo.

O interior era pequeno, quase minúsculo para os padrões da época de lançamento de Rio Bravo. Tinha também uma inclinação incomum, que julguei um avanço em termos de não ver a cabeça do espectador/a sentado na fileira da frente. A razão prosaica era o aproveitamento da pequena área disponível, o que se vê ainda em muitas salas de shoppings redefinidas a partir de lojas e pequenos mercados. Um caso particularmente surpreendente para esse tipo de reaproveitamente é a sala da Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre.

A cortina abriu. E surgiu na tela uma cópia quase impecável, só ligeiramente magenta, o que ajudava o tom de barro da fotografia de Russell Harlan, traindo a pouca receptividade que o filme tivera, mesmo no Brasil, país amante dos faroestes, mas que já começava a vê-los principalmente pela telinha de tv. Bat Masterson, primeira série estadunidense de bangue-bangue para TV dublada em português (primeiro trabalho do recém-chegado mestre da mixagem Carlos de La Riva Goded), estreou por aqui no mesmo ano do lançamento batizado como Onde começa o inferno, título que procurava insuflar alguma ação, senão um difuso apelo, em que a distribuidora, e grande parte da crítica e do decepcionado pequeno público, só viram falta de tiros e ação. Pelo menos nas muitas séries de TV que sobrevieram, a receita se manteve e a duração era bem menor.

Howard Hawks, o diretor de Rio Bravo, considerou o fenômeno. Percebera que a TV tinha triunfado e sobretudo com westerns. Os espectadores de matinês com Broncho Billy, Tom Mix e Hopalong Cassidy (que fez a transição para a TV em 1949) estavam agora cansados e sentados em suas poltronas de sala de estar, mas ainda diante do “velho oeste” recriado nos mesmos velhos estúdios agora alugados para as emissoras. Os episódios de Gunsmoke, Chaparral, Couro cru, e o hoje completamente esquecido O rebelde, entre centenas de outros, eram uma curiosa mistura de nostalgia, novela de TV, juventude e vaqueiros/pistoleiros cada vez mais frágeis.

Oriundo marginalmente da era de ouro, um coadjuvante de Couro Cru, Clint Eastwood, encarnou melhor do que ninguém essa aparente anti-transição que redundou em protagonistas mais enigmáticos, “frágeis” e feministas. E disso se aperceberam Sergio Leone e principalmente Quentin Tarantino, este no delicioso Era uma Vez em Hollywood, melhor programa duplo com Rio Bravo, ever.

Walter Brennan e Rick Nelson estavam no elenco de Rio Bravo por conta dos seriados de TV. E também por serem, um, um velho colaborador e ícone do western (e do próprio Hawks), caso de Brennan, e outro, uma boa contrafação do fenômeno musical juvenil Elvis Presley, caso do segundo. Dean Martin e Angie Dickinson também tinham passagens recentes de muito sucesso pela TV, mas foram escolhidos sobretudo por um crescente potencial dramático que tem em Rio Bravo uma confirmação do acerto da escolha.

Mas cuidado com Hawks, uma velha raposa. Os quatro viraram Stumpy, Colorado, Dude e Feathers por muito mais do que suas origens e talentos imediatos. Um velho coxo, um jovem imberbe, um alcoólatra e uma prostituta não era exatamente a receita corriqueira para os ajudantes do herói. E Rio Bravo não é um melodrama, muito, mas muito longe disso. Diria que é o anti-melodrama por excelência. Os personagens estão nessa posição de vanguarda por capacidades próprias e por respeito a elas. Nesse sentido, Rio Bravo não é exatamente um anti-High Noon. Ainda que Hawks e Wayne tenham invocado essa origem imediata para a decisão de realizar o filme, e fossem mesmo invocados com o filme de Zinnemann, que consideravam politicamente nefasto (leia-se de esquerda, vagamente socialista, embora fosse isso sim uma alegoria da perseguição McCarthysta ao cidadão justo) e dramaticamente equivocado (o tal comentário sobre a impossibilidade de um homem da lei ser fraco, covarde, maricas), a narrativa e a mise-en-scène estão preocupadas de verdade com outras coisas. John Wayne dá conta da mítica e a esta altura insossa posição máscula. Não precisa mais nada. E quanto à questão política, Rio Bravo é ponto final da máxima pro-forma hollywoodiana contra as poderosas elites dominantes e em favor dos fracos e comprimidos. Contradição de superfície sempre no mesmo nível, zero. Mas, como escrevi, Hawks não é bobo. Ele fora sensível às contradições mais profundas, que trabalhara admiravelmente algumas vezes, dentro da fábrica de sonhos ocultos. Scarface, que o Miguel tanto ama, tem uma coragem raríssima em sua versão censurada ao sugerir o incesto como motor de Tony Camonte.

Anjos tortos e rebeldes estavam finalmente entrando em cena diretamente com o chamado western revisionista. Estreara no ano anterior o Um de nós morrerá (The Left Handed Gun, 1958), de Arthur Penn, com Paul Newman interpretando um psicanalítico Billy the Kid, papel que já desempenhara no original escrito para a televisão por Gore Vidal, sem que muitos se apercebessem que o conflito com a autoridade (paterna, geracional, legal) já fora antecipada de uma década por Hawks em Rio Vermelho.

Mas a mudança chegara mesmo com a juventude chamada de transviada. Era hora de aderir, como o fez Watson Macedo, ou produzir uma síntese final de um mundo em desaparecimento, o da Hollywood dita clássica, e o do cinema dito clássico-narrativo, seja lá o que isso queira dizer. É mais fácil entender que Rio Bravo surge no mesmo ano de Acossado, que o Ruy também tanto ama.

Não há conflitos com a autoridade em Rio Bravo, a não ser a corriqueira dos vilões, claro. Mas há rebeldia, uma rebeldia por vezes contestada, mas respeitada. Stumpy, Colorado, Dude e Feathers são rebeldes cada um a sua maneira, cada um com seu déficit social, psicológico, biológico ou fisiológico, mas nunca de caráter. Todos desobedecem todos. Curioso isso. E estamos bem longe do que mais importa em Rio Bravo.

Não há problema em se perceber velho (ou experiente), parecem dizer igualmente todos, ou seja, Hawks. O tempo passa. Mas isso não é necessariamente um problema. O relógio não é cruel como em High Noon. O tempo não tem uma só dimensão, até porque, a essa altura, a mecânica clássica já cedeu lugar à mecânica quântica, e seu interesse pela memória como tempo presente. A river runs through it/Nada é para sempre. As águas escorrem, ponto. A-teoria do tempo na veia, mas com contradição.

O tempo do cinema é único em seu amálgama (odeio agenciamento, palavra espiã). Não é à toa que o 85’ x 141’ faz todo o sentido como resposta real ao High Noon. Mas não é tanto um alongamento. Não são planos longos ou sequências demoradas. É o tempo da tela. De uma proporção relativamente nova na época – 1:1,85 –, que se percorre vagarosamente, muito por conta da imobilidade dos planos, e da falta de ação (deslocamento) significativa (justificada dramaticamente) dentro deles. É mesmo um escorrer que toma muitas formas, entre elas a de um lamento torturante e mortal, el toque a degüello.

Creio que vi Rio Bravo na proporção correta e não em 1:1,66, que era a projeção panorâmica mais comum até então no Brasil. O Cine Alaska se pretendia cinema de cinéfilo e atentava para essas coisas. Não durou muito, infelizmente.

Posso abreviar essas tecnicalidades, claro, mas elas têm muitas funções. E a prolixidade também ajuda no escorrer do tempo daqui.

E é claro que te trouxe até aqui, querido leitor/a, sem muita preocupação de dizer algo substantivo. Papo de cinema, só. O Robin Wood e o Jorge Silva Melo já disseram o fundamental sobre Rio Bravo.

Meu entusiasmo é o mesmo, minha relação certamente que não. Retomando.

Não há naturalismo em Rio Bravo. Há o realismo oculto que Hollywood adorava tecer. Hawks pediu objetivas esféricas na câmara Mitchell BNC e ao diretor de arte Leo Kuter, mais um egresso dos faroestes de TV dos anos 50, cenários em proporção menor em relação aos atores, no filme inteiro. Isso era uma vantagem, uma economia e um minimalismo que, se bem explorados, como o foram, renderiam algo simples e ao mesmo tempo acabado. Não é a toa que é um filme construidor de mitos, mítico e mitológico, mas rigoroso em sua estética e em sua ética: câmara posicionada à altura dos olhos das personagens, quando estas conduzem àação. Hawks jamais admitiria olhares turvos ou adjetivantes.

Não há como reproduzir isso em digital. E em tela pequena (inclusas as de cinemas pequenos, sobretudo os de hoje em dia). É preciso vaguear com o olhar (eis a pista) nas telas grandes de outrora. Não é pelas paisagens do filme e do gênero. Há poucas. É pela imagem construída mesmo.

E também chamar uma mulher para por ordem na bagunça e no fundo começar a redefinir a persona de Wayne, sem que ele soubesse, claro. Em Rio Bravo o macho-alfa John T. é quase o oposto diante de Feathers. “That guy” que Hawks pediu à secretária na década anterior era a escritora de pulps noir, de mistério e ficção-científica Leigh Brackett (Jules Furthman se ocupava do coração dos filmes de Hawks, isto é, os diálogos). Ela sabia como ninguém escrever uma cena que é ao mesmo tempo ouro para crianças e problemas para os pais. Rio Bravo diz a que veio quando Wayne winchestereia a cara do vilão em um giro tão surpreendente quanto preciso e jamais visto em um bangue-bangue. E sem o tiro. Melhor do que o sabre de luz cortando o ar. É claro que as mãos de Brackett estavam nos primeiros esboços de roteiro freudiano de O Império Contra-Ataca: “Luke, eu sou seu pai!”. Não há como não lamentar sua morte precoce.

E como uma equipe hollywoodiana é sempre uma legião estrangeira, o que sempre foi perfeito para construir algo que nunca existiu, o tal “velho oeste”, Rio Bravo traz além de velhos colaboradores (epa, palavra hoje em dia neoliberal, ler filologicamente) de Hawks, como Wayne, Brennan, Harlan, dois nomes pouco relacionados em sua filmografia pregressa, o do músico russo Dimitri Tiomkin (que agregou dois brasileiros à gravação da trilha musical, os violonistas brasileiros Laurindo Almeida e Nestor Amaral) e do montador dinamarquês Folmar Blangstead, não por acaso o montador do filme de Penn e de algumas das séries de TV já referidas. Não necessariamente ele e outros estavam em Rio Bravo para repetir uma fórmula que vinha dando certo alhures. Talvez fosse o exato oposto. Conhecer a mecânica para não repetir.

Mas não subestimemos Hawks, que certamente era um homem da indústria e do mercado, mas também um artista refinado, cultor dos sonhos ocultos. Blangstead estava em Hollywood há muito tempo. Tinha começado na década de 1930 como diretor de westerns que não interessaram ninguém. Teve que virar montador para sobreviver. Distingue-se com um filme que teve várias versões muito longas e mesmo em seu lançamento tinha uma duração incomum para um melodrama, Nasce uma estrela, o de George Cukor, com Judy Garland. Era um mestre na composição dos andamentos. Algo perfeito para um filme que explorou também a inserção de andamentos musicais em uma medida incomum para a carreira do diretor. Um cinema medido pelas palavras adicionou outras medidas. Um amálgama difícil mas resolvido de forma brilhantemente simples. Nisso Jorge Silva Melo tem razão: Rio Bravo é uma obra-prima de simplicidade, da planificação à mise en scène.

Onde Hawks queria chegar? Me parece que a lugar nenhum. Já estava tudo lá, dentro do gênero. Era uma questão, talvez, só de clarificar um pouco mais, a tal síntese. Afinal, como disse certa vez José Carlos Monteiro, westerns são essencialmente filmes sobre a camaradagem masculina. Não conheço nenhum western onde essa sororidade (vão me xingar… vá lá, corrigindo o erro semântico, mas não linguístico, irmandade, compadrio, brodagem) fique mais clara. E onde a mulher não é só um objeto decorativo para o desejo do herói, mas uma ameaça real, do plano dramático ao ontológico. Bem Hawks, não?

Uma experiência completa de cinema
Hatari (Hatari!, 1962)

por Lucas Bueno

Hatari! é um dos melhores filmes de Howard Hawks. O diretor consegue êxito tanto nos aspectos já estabelecidos ao longo de sua versátil filmografia (o estilo direto, os compassos e descompassos das relações entre homens e mulheres, o foco nas ações que valem por si só) quanto nos aspectos mais ousados, até certo ponto experimentais, como o tempo mais dilatado e a narrativa rarefeita, suspensa, mais econômica do que nunca. Aqui, Hawks se permite divertir ao máximo com as interações entre os membros de um grupo liderado por John Wayne que caça e captura animais para o zoológico, em plena savana da Tanzânia.

A estrutura, bem simples e concisa, alterna entre dois tipos de sequências. As sequências de ação, de caça e captura dos animais selvagens (girafas, zebras, rinocerontes, antílopes); e sequências de convivência dos personagens na base, onde as relações entre cada membro da equipe são desenhadas e vão se tornando mais complexas, conforme a gradual inserção da recém-chegada fotógrafa Dallas (Elsa Martinelli) no seio do grupo. A partir desse pacto estabelecido (e só subvertido de alguma maneira na sequência final), Hawks desenvolve toda uma concepção de mundo otimista, baseada em uma profunda coexistência entre ordem e caos, natureza e civilização. Ele aborda os ajustes e desajustes da relação que a humanidade mantém com o mundo ao redor (selvagem) e que cada um mantém na esfera pessoal, nas relações interpessoais próximas. Como um pintor moderno que, com poucos traços, consegue trazer muita expressividade às figuras (e, a partir delas, temas) que recorta no espaço, Hawks trabalha com uma estrutura de fácil assimilação, que funciona em seu caráter repetitivo e que prioriza as interações dos personagens entre si e com o ambiente ao redor de todos, e as mais diversas emoções que essas interações podem suscitar: o amor, o ciúme, a cumplicidade. Emoções universais, o que é realçado ainda mais pelo fato de os personagens terem origens diversas: há uma italiana, um irlandês-americano, dois franceses, um alemão e um indígena nativo-americano.

Mesmo com os inúmeros acontecimentos e suas consequências (sejam eles acidentes que machucam fisicamente os personagens durante as cenas de caça ou um descompasso de comunicação que leva alguém à mágoa), o deslumbre pela beleza da composição das cenas impera, assim como as tiradas e ternuras trocadas entre os membros do grupo, todos muito diferentes entre si. Acompanha-se o cotidiano dos personagens com uma certeza de que, no fim das contas, tudo ficará bem, independente da hostilidade da savana ou dos desacertos sentimentais inevitáveis. Há tensão e relaxamento, momentos de perigo e de ócio, mas quase sempre há uma ordem otimista que permeia as ações e as reações dos personagens – isso é consequência da visão positiva (mas nunca ingênua, nunca negando o fator da violência e da possibilidade de morte) do filme sobre a civilização, e faz com que o espectador se preocupe menos com o que vem a seguir. Ao longo de todo o filme, Hawks coloca o espectador radicalmente no presente. Diferente de Bringing Up Baby, em que reina a expectativa de como a situação de Cary Grant ficará mais complicada conforme ele se deixa arrastar por Katharine Hepburn, ou de Scarface, onde sabe-se que o destino de Tony Camonte é inevitável, apenas questão de tempo, ou até de Only Angels Have Wings e Gentlemen Prefer Blondes, as expectativas em Hatari! são colocadas em fogo baixo, em uma experiência única de imersão no presente de cada momento, acentuando ainda mais a beleza das cenas de ação e a riqueza das cenas de ócio.

Hawks não perde de vista em nenhum momento, em seus grandes planos conjuntos nos quais quase todos os personagens estão presentes, a relação de cada um com seus pares. Uma profunda sensação de conexão entre todos é criada dessa forma – a todo momento os personagens têm um objetivo, um conflito e uma relação particular muito bem definida – e aparecem no quadro mesmo quando não são o foco principal da cena. A mise en scène enfatiza justamente a multiplicidade de sentimentos e diferentes relacionamentos presentes em vários níveis da tela.

O Sean Mercer de John Wayne, o sisudo mas gentil líder do grupo, e a Dallas de Elsa Martinelli, uma inexperiente mas corajosa novata, dividem o tempo de tela e os enquadramentos com outros personagens memoráveis. Pockets (Red Buttons) cumpre o papel de alívio cômico, além de ter medo do contato com os animais e sentir-se inseguro a respeito de Brandy (Michèle Girardon), outra figura – menos expressiva e interessante – que compõe o coletivo e por quem Pockets nutre afeto. Aqui, fica claro o paralelo entre a vida profissional e pessoal do personagem: sua relação com os animais se repete em sua relação com Brandy. Essa insegurança termina por ser superada, e tudo fica bem – Brandy também nutre afeto por Pockets. Além disso, ele é responsável por capturar diversos macacos por meio de um mecanismo engenhoso – um míssil que lança uma rede sobre a árvore na qual os animais estão refugiados. Pintado com as cores da bandeira americana, é um triunfo da utilização sagaz da tecnologia em plena guerra fria, mais um arroubo otimista do diretor.

O elenco ainda conta com Kurt (Hardy Krüger, um ex-piloto de corrida alemão) e Chips (Gérard Blain, um sniper francês), e a relação dos dois, desde o início, concilia rivalidade e amizade. Na primeira cena de Chips, que aparece em um hospital procurando trabalhar com a equipe após um acidente envolvendo outro personagem, Kurt acerta um soco no rosto do francês. Esse ato é devolvido mais tarde, quando Chips é contratado e se torna parte do grupo – Kurt reage à vingança com um sorriso de canto dos lábios. Depois, os dois acabam se interessando por Brandy, o que ocasiona ciúmes e cria um clima de competição. Os dois nunca chegam a se acertar completamente, a rivalidade não é (e não precisa ser) superada, e não impede uma amizade entre eles. Esses aspectos contraditórios convivem harmonicamente, como com os animais, onde a violência e a competição fazem parte da ordem natural das coisas.

A sensação de intimidade no seio do coletivo, de uma profunda conexão de amizade entre todo o elenco, parte também de uma atenção maior dos personagens aos próprios sentimentos, ao lugar de cada um deles no mundo, e também de um grau elevado de alteridade no meio do ambiente selvagem. Em uma cena emblemática, Pockets explica para Dallas o motivo do comportamento rude de John Wayne para com ela – se ele não gostasse da moça, não se daria ao trabalho de agir com desconfiança; se ele age assim, é porque ela conseguiu tocá-lo o suficiente para que ele acione um mecanismo de defesa, herdado de uma relação passada que deu errado (justamente pela má vontade da ex-mulher do personagem em se adaptar ao ambiente da savana). Em outro momento no filme, Dallas retribui o favor do amigo com outra análise. Sabendo do afeto que Pockets sente por Brandy, ela nota que Brandy não parece interessada em Kurt ou Chips, mesmo quando teve a oportunidade perfeita de demonstrar carinho. Dallas, que obviamente entende o comportamento de Brandy muito melhor do que qualquer homem ali presente, assegura Pockets de que ele tem uma chance com a garota, e o encoraja a agir. O conhecimento de uns aos outros expresso pelos personagens (e o interesse na psicologia de cada um por parte de Hawks) fortifica a sensação familiar, de camaradagem entre o grupo, e reforça a qualidade da alteridade como essencial à experiência humana de maneira orgânica, sem discursos moralistas – tudo gira em função dos personagens e da lógica positiva, mas nunca ingênua, na qual o filme opera.

A relação entre John Wayne e Elsa Martinelli é a mais importante do filme, e também a mais violenta. Dallas fica arrasada a ponto de abandonar o grupo quando sente que seus sentimentos por Sean não são correspondidos depois de meses de tentativas. Não por acaso, um dos momentos de maior tensão do filme ocorre com os dois, quando uma família de elefantes adultos aparece atrás de seus filhotes, que estão sob a guarda de uma Dallas desprotegida. O desacerto entre homens e mulheres é um tema recorrente nos filmes de Hawks, que aqui equilibra muito bem os momentos mais tristes de Dallas e de desconfiança por parte de Sean com cenas de ternura entre os dois. Um destaque é a cena do primeiro beijo que Dallas rouba de Sean. A personagem de Martinelli bota todas as cartas na mesa ao perguntar para Sean como ele gosta de beijar. Sean não compreende, e Dallas então parte para a ação. Primeiro, John Wayne está desconfiado. Por fim, cede e beija Martinelli apaixonadamente. Essa cena resume todo o arco do relacionamento entre os dois ao longo do filme – o fim da resistência de Sean em relação à moça e a gradual tomada de ação por parte de Dallas, que começa nada à vontade com o ambiente ao seu redor mas rapidamente aprende a se divertir com os animais e aventuras que aparecem.

A última sequência, quando John Wayne mobiliza todo o grupo para encontrar Dallas, subverte o pacto prestabelecido por Hawks entre cenas de perseguição na savana e cenas de ócio e preparação na cabana. Dessa vez, a perseguição acontece em plena civilização, na cidade, e os próprios elefantes agora auxiliam na procura pela moça. Hawks cria nesse clímax um tom mais cômico, é uma perseguição que só poderia terminar com um final feliz. Contraste marcante com as demais cenas de ação, em que a violência e grandeza de cada movimento (seja dos carros ou dos animais) são evidenciadas.

Hatari! é um filme sobre a relação do homem com tudo ao seu redor, e é um olhar confiante sobre toda a humanidade. Mesmo na violência (e não apesar dela), há um profundo amor e equilíbrio. Existe beleza nos desencontros e percalços que levam ao amor mútuo, desde que haja boa vontade para viver uma aventura. É toda uma filosofia de mundo de um homem conectado ao presente e que soube, com o mínimo de narrativa, trazer muita verdade. Tudo isso – mas principalmente o pacto de tensão e relaxamento, de alternância entre o íntimo no épico e o épico no íntimo que estrutura as longas sequências – faz com que Hatari! seja uma experiência completa de cinema. Uma experiência que louva a aventura em todos os sentidos.

O esporte favorito dos homens
(Man’s Favorite Sport?, 1964)

por Tomás Farias

A concisão, a literalidade da ação reconhecidas em Howard Hawks provocam certo equilíbrio que o cinema mantém por sua impressão diegética de realidade – junto aos índices de realidade em sua condição material de representação. A percepção por parte do espectador – sendo a imagem ela mesma essa condição – amplia a porção de realidade que se oferece à ficção, quando o representado penetra essa disposição para se acomodar na ficção. A transmissão acolhe um lapso, uma distância inexprimível porque se preenche com a própria distância, o reconhecimento que atravessa a si mesmo guardando um estranhamento confortável. Em Hawks, a denotação alcança esse efeito de amortecimento pela concentração das ações em sua esfera mecânica, quando esta, antes de se estabelecer como ponto de referência para a automatização programática, é o envoltório da disposição orgânica que as possibilita e é contida por elas.

O esporte favorito dos homens (Man’s Favorite Sport?) evidencia um paradoxo pela visão que dele se oferece ao situar-se no conjunto da obra de seu realizador, no tempo e no gênero. A ressonância pode induzir certa impressão de uma repetitividade arcaica, da solidificação de espaços onde essa inspiração antes penetrava, de uma calmaria que se deixou perpetuar na reminiscência. Reconhecíveis em tal propensão são as desmedidas; estas marcaram o ritmo dos filmes que se imporiam na acusação da obsolescência pressentida, o desconjuntamento abrasivo unificado nos laços, os escorregões contidos por núcleos espiralares. Quando o acúmulo residual gerado no âmago do conjunto estabelecido a partir da fricção se emancipa, quando sua espessura escapa expandindo determinada zona, este se evidencia pela afluência, tornando-se significativo – e singular – justamente por tal evidência, pelo relevo.

Os acenos de O esporte favorito dos homens a Levada da breca (Bringing Up Baby) acabam por ilustrar essa singularidade, e a organicidade que continua se impondo 26 anos depois não omite (embora, e felizmente, absorva muito bem) a inventividade do que se oferece ao espectador através de uma recusa profunda à compunção – e por isso é percebido como acomodado. O desenfreamento e o desarranjo se misturam na não concretização de certa pacatez que delineia um correr do tempo acinzentado, acidentes que marcam uma corrida permanente que ocorre em uma direção que se mantém ausente, dissolvida pelos propósitos que a justificam e se anulam. A superficialidade se cristaliza ultrapassando o supérfluo. Se o desenrolar do próprio filme soa estresir a si mesmo, o transplante se prova não necessário para garantir a sobrevivência de um organismo que apresenta sinais de esgotamento, mas singular na medida em que a garantia é posta em risco pela própria sobrevivência, e aí O esporte favorito dos homens se aclimata com a recepção que dele se espera, sempre se esperou e se dá no próprio filme. O interior daquele ambiente que se desfaz na medida em que se calcula reage aos próprios estímulos, que se amortecem no estado de entorpecimento e de esmorecimento quando estas são as condições que mantém o seu pulso.

Tudo se denota sem adornos e a entonação que se nutre desse estranhamento é a dos gritos abafados por todas as máquinas do “Piano Museum” juntas, é a das conversas não tidas atropelando elas mesmas, é a do beijo interrompido pelo telefone, é a dos galhos quebrados e das repetidas vezes que Rock Hudson cai na água quando um peixe morde o anzol por acidente ou quando tenta ligar o motor do barco e é arrastado pelo mesmo em sua roupa inflável, ou prende sua roupa em algum zíper que não é o de Paula Prentiss na frente da noiva, é aquela que soa a mais reproduzível. E, por que não?, refrescante. É toda a atmosfera que parece envolver um mundo pré-fabricado, ou que opera a lógica própria da literalidade sem tornar uma limitação a ocupação de tudo em sua esfera reproduzida, se apropriando dela para atingir uma concretude que se liquefaz na superfície. Doses de conforto administram os descompassos, quando esses se afloram na risada que questiona os espaços a serem conquistados e quando camuflam organicamente espaços que a tristeza e eles mesmos se recusam a fechar. Aquela noite quase estranha como as noites que se querem fatídicas ainda guarda a teimosia que sustenta todas as inibições.

Faixa vermelha 7000
(Red Line 7000, 1965)

por Anita Gonçalves

Faixa Vermelha 7000 começa com um acidente. Mas, antes, os créditos iniciais são apresentados sobre filmagens de carros de corrida em alta velocidade, delimitando-se já o escopo e o tópico central do filme. Nesse momento, elementos que permeiam o cinema de Hawks, a velocidade e a violência que ela propaga, são hiper-expressos pelo congelamento das imagens dos carros em movimento, cujo aspecto borrado e trêmulo manifesta a instabilidade que atravessa o filme. Em outras palavras, a explicitação desses elementos se dá quando o movimento, fluido e cinematográfico, é freado, tornado fotográfico. Assim, a variante temporal, enquanto duração, fica reduzida a segundo plano, sendo destacada a alta velocidade do deslocamento do carro no espaço imagético – pelo próprio “borrão” – e o instante presente em detrimento de uma linearidade que abarcaria passado e futuro. Os créditos iniciais terminam com a explosão de um automóvel e o nome de Howard Hawks – cineasta dos corpos e das máquinas em confrontação – aparece em tela.

O acidente do início do filme, que acaba em morte, é puro evento presente, que se desvanece rapidamente. Apesar da cena do velório, parece não haver tempo e nem espaço para o sentimento de luto, e isso fica evidente pela forma fugaz e mecânica com a qual a namorada e os amigos do falecido piloto lidam com sua morte, sem grandes emoções. Em Hawks, cineasta do corpo¹, as profundezas da mente e da alma não possuem espaço, e a psique e os sentimentos humanos só existem quando decalcados e evidentes na superfície – isto é, através da ação, como já estabeleceu Rivette². Nesse caso, o passado e o futuro só participam do presente fílmico, respectivamente, como motor breve e inicial a relações correntes e como risco à vida (isto é, como ameaça da morte). A morte faz parte da rotina, sempre existindo contingencialmente à espreita; não necessariamente no sentido de um destino final e inevitável à “raça humana”, mas como um elemento que reforça a instabilidade, a violência e o perigo inerentes ao presente, ao mundo e às relações entre os humanos com esse mundo (por eles criado e sobre o qual perdem o controle). Enfatizados pela montagem acelerada, os gestos e ações que mobilizam o próprio movimento do carro e, por conseguinte, resultam nas consequências fatais, tornam esse momento ainda mais efêmero, além de relevar a responsabilidade humana no tocante a seus atos e às respectivas consequências, traço fundamental da moralidade hawksiana. Ao ressaltar gestos e ações do piloto que precedem sua morte, como que numa relação de causa e efeito, Hawks contrapõe-se ao deslumbramento de Holly (Gail Hire) – a mulher que acredita, por má sorte, causar a morte de todos os seus amantes – proclamando, através desse recurso, quais são as leis morais e físicas que regem o filme.

Chama atenção o contraste presente na alternância entre os cenários – bastante restritos aos espaços do bar, do hotel e dos quartos – e as imagens de corridas reais, numa conjunção que dá luz a um contexto simultaneamente trivial e perigoso, equilibrado e instável. Nas cenas ambientadas nos espaços cenográficos, a encenação concentra-se muito nos diálogos e os enquadramentos tendem a ser estáveis e dotados de rigidez; as tramas românticas emergem sobretudo daí. Em contrapartida, os momentos da corrida rompem com a segurança e tranquilidade cenográficas e com a simulação de um universo espacial contido e diegético. Aqui, a materialidade do mundo e o presente erguem-se, providos de grande instabilidade e escancarados ao perigo. Estando explicitado em seu próprio título, o filme se constrói na estipulação de um limite, sendo os momentos de corrida aqueles em que, a qualquer instante, o limite seguro da velocidade corre risco de ser ultrapassado pelo ponteiro bambo e oscilante do velocímetro (que não age sozinho, é preciso dizer). Mas, justamente por compor a ordem estruturante aqui firmada, a própria possibilidade de tragédia se torna previsível, provocando assim um clima de expectativa e tensão permanente que nunca se atenua. A pista e o circuito automobilístico transfiguram-se em corda bamba.

As relações entre as personagens não são estáveis, mas há uma circunscrição da rede de interações entre os homens, as mulheres e as máquinas que é bastante evidente ao longo do filme. Consiste em um universo que replica o arranjo do circuito, da corrida e da disputa esportiva masculina, os quais circundam e condicionam o romance e o drama. Assim como em uma corrida de automóveis, não existe somente um protagonista preestabelecido, mas sim uma alternância e oscilação incessantes no que diz respeito à ocupação de tal posto. Se um piloto morre, é logo substituído por outro na pista e na teia das relações amorosas, restituindo-se rapidamente o equilíbrio lesado pela perda. Os homens competem constantemente entre si. As mulheres, praticamente fadadas a se tornarem viúvas ou a serem abandonadas pelos seus companheiros (a máquina amada em detrimento da mulher amada), constituem-se em uma rede de cumplicidade e de apoio, havendo rivalidade tão somente entre elas e os próprios automóveis, quase como se competissem com os carros pela mão do amante. Podemos ir além na reflexão acerca dessas tensões, levando em conta as divisões de gênero que existem no filme para pensar numa cena como a de Gabrielle (Marianna Hill) no comando do volante. Nesse sentido, é como se houvesse, ainda que tímida e sugestivamente, uma disputa e disparidade entre homens e mulheres pelo domínio da paixão e pelo estado de êxtase, através das situações de adrenalina e de risco. Gabrielle, antes de sua experiência na pista de corrida automobilística despertar-lhe fascínio, diz: “I’m not jealous of Holly. I’m jealous of you. Because you are in love” (“Não estou com ciúmes de Holly. Estou com ciúmes de você. Porque você está amando.”)

Aludindo a outra fala da personagem de Marianna Hill, o carro é como um leão e o piloto é como seu domador. Acontece que a tentação humana de ultrapassar o limite do seguro, tatear o perigo e fazer a máquina rugir ferozmente pode culminar em tragédia. Somente as paixões, existentes aqui apenas na pulsação do coração e na superfície do mundo, dos gestos, dos atos e dos corpos, são capazes de suscitar tal aptidão transgressora ao perigo – ao mesmo tempo que edificadora da vida, potencialmente partidária da morte: faz o coração bater mais aceleradamente; ou então, por outro lado, o faz parar de bater de uma vez por todas. A corrida de automóveis é, ao mesmo tempo, o que impulsiona e o que aniquila as relações amorosas.

A violência que advém da alta velocidade e da extrapolação dos limites de segurança abre e encerra o filme. Mesmo assim, não há marcas expressivas de traumas, mudanças de rumo ou rupturas: o filme obedece um movimento cíclico e contínuo, emulando a própria configuração dos circuitos de corrida. O acidente, a violência, e, em casos mais drásticos, a morte, fazem parte desse cotidiano do perigo, dessa atmosfera tensa e instável que, curiosamente, se sustenta na própria estabilidade, equilíbrio e constância da sucessão de ações e circuitos. Em Faixa Vermelha 7000, Hawks conserva a violência como elemento sempre previsível, habitual, iminente e latente, envolvendo os atos e as paixões humanas e tensionando as relações entre as personagens subjugadas ao triângulo amoroso e conflituoso dos homens, mulheres e máquinas. Os carros, conduzidos e “domados” pelos seus pilotos, mesmo assim, voam, derrapam, incineram; mas a lei física prevalece: um corpo em movimento tende a permanecer em movimento.

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1 SGANZERLA, Rogério. “Cineastas do Corpo”. O Estado de São Paulo. São Paulo: 26 jun. 1965.
2 RIVETTE, Jacques. “Génie de Howard Hawks”. Cahiers du Cinéma, nº 23, maio de 1953.

El Dorado
(El Dorado, 1966)
por Matheus Zenom

El Dorado, penúltimo filme de Howard Hawks, se abre com uma sequência de créditos sobre pinturas da vida no Velho Oeste. Dentre elas, se destaca a cartela com dois cavalos que partem para se enfrentar, acima dos quais se inscrevem os nomes de John Wayne e Robert Mitchum, protagonistas da história a seguir. Os grandes pares são uma das marcas do cinema de Hawks; nos lembramos especialmente de Cary Grant e Katharine Hepburn em Levada da breca, Humphrey Bogart e Lauren Bacall em Uma aventura na Martinica e À beira do abismo ou Marilyn Monroe e Jane Russell em Os homens preferem as louras. Em El Dorado, temos pela primeira e única vez o encontro nas telas entre Mitchum e Wayne, dois atores conhecidos pelos seus tipos durões, mitos próprios que atravessam o cinema hollywoodiano e que ultrapassam as suas personagens.

Começamos acompanhando Mitchum, o xerife J.P. Harrah da cidade de El Dorado, que entra em um hotel a procura do pistoleiro Cole Thornton, que acabou de chegar na cidade para tomar parte em um conflito de terras: de rifle na mão, abre a porta do banheiro para encontrar Wayne se lavando na pia. Uma amizade antiga é reencontrada, mas Mitchum não sabe ainda de que lado Wayne está, como vai se portar no conflito. Conta a ele toda a história e faz o amigo mudar de ideia, pois não tinha sido bem isso que lhe disseram antes.

Wayne vai até o rancho do infame Bart Jason (Ed Asner) para dizer que recusa o trabalho e, em seu caminho de volta, ouve um tiro disparado em sua direção, e retruca imediatamente, acertando o abdômen do filho de Kevin MacDonald (R.G. Armstrong), o homem que havia sido contratado para matar. Wayne tenta ajudar o garoto, o que se mostra impossível. Antes de morrer, diz algumas palavras, suficientes para que, quando seu corpo é levado até o pai, Wayne possa comprovar que ele foi morto pela irresponsabilidade de quem “botou um garoto para fazer o trabalho de um homem”.

Na saída da fazenda, no entanto, uma das filhas de MacDonald, Joey (Michele Carey), o espera à espreita, aproveitando a passagem desavisada de Wayne para baleá-lo pelas costas, em uma ferida que a princípio não parece ser grave. Voltando à cidade, o médico de El Dorado diz que não pode retirar a bala e recomenda que ele procure outro médico na próxima cidade grande pela qual passar. Wayne desacredita deste conselho, os meses se passam e a bala continua cravada nas suas costas, começando a provocar uma debilidade física que será decisiva no desenvolvimento da história: a paralisação momentânea do lado direito de seu corpo.

Todo o desenvolvimento do episódio trágico com o menino é o que define a posição de Wayne, bem como afirma em um primeiro momento o caráter de sua personagem ao espectador. Ele é um hired gun, mas não é um assassino indiferente. Isto se provará contrário em relação a seu antagonista, Nelse McLeod (Christopher George), um dos melhores atiradores do Oeste, que lhe oferece a oportunidade de trabalhar para Jason, que novamente Wayne recusa. É ele quem dá a Wayne a notícia da decadência de Mitchum, durante os “seis ou sete meses” que se passaram: “Parece que se envolveu com um rabo-de-saia. Está bêbado desde então”. Mesmo sabendo toda a história envolvendo MacDonald e Jason, McLeod não se interessa pela moral que está envolvida, assumindo que apenas tem um trabalho a fazer.

Esse encontro entre Wayne e McLeod se dará após o primeiro deixar El Dorado e perambular por outras cidades, aceitando outros trabalhos, até que reconhece o atirador em um saloon, prestando atenção especial no que acontece em sua mesa. Logo, outro homem entra em cena, o jovem Mississippi (James Caan), que identifica na mesma mesa um sujeito que, junto de mais três, matou um companheiro seu, dois anos antes. A situação com os outros três já fora resolvida e esse homem é o último a matar para que sua vingança esteja completa. Em uma rápida troca de olhares, se percebe que Mississippi não carrega uma pistola, mas é mais rápido ainda o modo como ele atira uma faca para derrubar o assassino.

Quando os dois se preparam, então, para deixar o saloon, Wayne pede a McLeod que avise a seus capangas para não atirarem quando passarem pelas portas, desfazendo a emboscada que estava pronta para eles. O que o outro faz, pedindo para que considere o gesto como parte de sua “cortesia profissional”. Assim, se evidencia um respeito entre Wayne e McLeod, em que, apesar da certeza de sua rivalidade, do confronto futuro em campos opostos, o que sobressai é a admiração mútua, na expectativa de que as questões se resolvam apenas no momento que tiverem de se resolver.

No caminho de volta a El Dorado, Wayne cai do cavalo por causa da bala em suas costas e agora é Mississippi que o socorre, decidindo acompanhá-lo na viagem. Essa personagem desajeitada, um tanto inepta para a vida de aventura no Oeste, se mostra menos ainda para estar ao lado de um pistoleiro como Wayne, por não saber ele próprio atirar. Na cidade, a história sobre Mitchum é confirmada por Maudie (Charlene Holt), interesse romântico de Wayne. Mais do que oferecer as suas armas contra Jason, Wayne deve também tirar Mitchum dessa situação para oferecer maior resistência, contando apenas com o apoio de Mississippi e do velho Bull (Arthur Hunnicutt), personagem que dá fundo histórico ao cenário, como reminiscente do assentamento populacional na região e atormentado até o presente com os ataques dos indígenas.

Um velho, um bêbado e um jovem que não sabe atirar são, portanto, os únicos que se colocam ao lado de Wayne, ainda considerado um dos melhores atiradores do Oeste, mas cada vez mais fisicamente inapto a isso, conforme a paralisia volta a ocorrer. Com todo o grupo reunido, eles aguardam o pretexto para prender o tal fazendeiro, guardando-o na delegacia até que os responsáveis possam levá-lo a julgamento. Será então, dentro da delegacia que se transforma em forte, que retornaremos ao cenário de conflito de Rio Bravo (1959), no qual as personagens se veem confinadas a este espaço, resistindo pelo maior tempo possível à ameaça que vem de fora. “Quando uma coisa funciona, não faz mal repetir”, afirma Hawks a Peter Bogdanovich, em entrevista no livro Who the Devil Made It.

Apesar de todas as semelhanças, El Dorado não pode ser visto apenas como um filme à sombra de Rio Bravo. Aqui Hawks resgata temas e motivos do seu western anterior, mas sobre um tratamento diferente, uma mudança geral nas peças da história. Desde o princípio, o conflito central de El Dorado se mostra mais denso, com a disputa por terra entre dois fazendeiros em uma pequena cidade de um Texas muito recentemente povoado, pouco tempo após a Guerra Civil Americana. O dono das terras, MacDonald, se estabeleceu ali quando “não havia nada além de índios e lobos” na região, tendo agora de se confrontar com um novo rancheiro, Jason, que quer expandir o seu território e ter acesso ao rio onde poderia levar seu gado para beber água e pastar.

A apresentação desse fundo histórico e social, em si, difere bastante do caráter sintético de Rio Bravo, e em grande medida já caracteriza o filme em um período do Oeste imediatamente posterior ao estabelecimento da civilização na região, quando os primeiros conflitos por terra entre os americanos brancos começam a ocorrer. O que Hawks explora, no entanto, não é o western mítico à maneira de John Ford, mas as convenções estilísticas do gênero. Uma vez exposto esse conflito, que fundamenta o cenário da trama, El Dorado se concentrará na relação entre suas personagens e no sentido de aventura que vai se desenvolver dentro deste espaço. Como expressam as palavras do diretor, ao convidar Mitchum para atuar no filme: “no story, only characters”.

É por um amigo, portanto, que Caan buscou sua vingança, assim como é por um sentido de dever com MacDonald e por amizade a Mitchum que Wayne volta à cidade de El Dorado, tomando parte ao seu lado no confronto. Aqui se repete o clássico senso de camaradagem das personagens de Hawks, em que a amizade, no entanto, só se confirma depois de um confronto. Da primeira vez que Mitchum vê Wayne, ele o mantém sobre a mira de sua espingarda até ouvir do outro que não vai aceitar o trabalho oferecido. No reencontro, é uma briga que começa depois de Mitchum ser acordado, bêbado, numa troca de socos das mais intensas e divertidas no cinema clássico.

A história do bêbado é a mesma da personagem de Dean Martin em Rio Bravo, mas, dessa vez, o xerife é quem é acometido por essa fraqueza e, novamente, Wayne é o responsável pela sua volta à sobriedade. Não há, entretanto, o mesmo tipo de apelo emocional presente no filme anterior, porque não vemos esta situação se prolongar, como no caso de Martin, que é a origem do conflito central de Rio Bravo. Apenas em uma única cena, quando Wayne envia Mitchum ao saloon para buscar uma garrafa de uísque, temos a sua figura patética em primeiro plano, exposta a público a sua completa decadência, e a consciência que a personagem adquire sobre seu estado. Ao espectador, basta ver Mitchum assim por alguns minutos para que sua imagem cause impacto o bastante. “Eles riram de mim”, ele diz, ao que Wayne responde: “Estão rindo há muito tempo, mas só agora você está sóbrio para notar”. É um gesto sádico de Wayne, necessário para que Mitchum veja que a gangue de McLeod já está na cidade, mas, principalmente, para que também ele seja visto pelos pistoleiros, que confiam em um trabalho fácil por enfrentarem um xerife incompetente.

A elipse sobre sua decadência é reveladora quanto aos procedimentos de Hawks e como as coisas são encaradas no filme: não importa como isso ocorreu, o fato é que estas coisas ocorrem e a questão é o que se faz a partir disso. Hawks poderia ter continuado a acompanhá-lo, mas passa ao lado de Wayne, estabelece sua relação com Caan e a rivalidade com McLeod. Trancados na delegacia, Wayne, Caan e Bull tratam de fazer Mitchum sóbrio de novo, em uma série de episódios cômicos. A partir daqui, se estabelece o cenário definitivo do filme, em um amálgama de relações cada vez mais sobrepostas: o conflito entre Jason e MacDonald, Mitchum e a bebida, Wayne e a paralisia, Caan e o desajuste, o grupo e a gangue de McLeod.

Tudo é elegante no cinema de Hawks, as personagens mantêm a sua compostura independente da situação em que se encontram, sendo dotadas de uma objetividade absoluta, indo direto ao ponto nas suas questões. Existe uma forte cordialidade entre elas, que sabem da necessidade de resolver as coisas apenas no momento em que tiverem de ser resolvidas – esta que talvez seja a marca do seu “fatalismo galante”, como bem o definiu Peter Bogdanovich. Do mesmo modo, não há desespero no grupo da delegacia diante da circunstância desfavorável em que se encontram. Os retrocessos que acontecem se dão por outras contingências, como a bala nas costas de Wayne, que o faz desabar justo quando estão prestes a acabar com a gangue rival. Wayne se torna uma moeda de troca, pela qual o grupo tem de libertar o fazendeiro da delegacia. As personagens têm de recomeçar, mas não desistem de criar um novo plano, que cumprem até o final.

Neste conjunto final de sua obra – composto por Rio Bravo (59), Hatari! (63), Man’s Favorite Sport? (64), Red Line 7000 (65), El Dorado (66) e Rio Lobo (70) – Hawks encontra um novo fôlego, em filmes nos quais o sentido de aventura se torna ainda mais proeminente e em que, indiferente a gêneros, os elementos de ação, de humor e de romance possuem papel destacado e semelhante. Nele, tudo é agilidade, movimento constante, e a técnica é resumida ao básico para que a ação se sobreponha. Existe uma contenção do estilo de maneira geral, em relação aos eventos narrativos, às locações e mesmo ao caráter das personagens. El Dorado é um western pela sua caracterização, pelo seu conflito central, mas tudo que acontece ao redor, as muitas cenas que giram em torno a isso, são representativas de uma matéria especifica a Hawks, a sua maneira de enxergar as relações humanas. Neste estilo tardio, Hawks simultaneamente parece levar ao paroxismo as artificialidades do estúdio hollywoodiano e reduzir o gênero a seus elementos mais centrais.

Rio Lobo
(Rio Lobo, 1970)
por Igor Nolasco

A rigor, é possível traçar um marco-zero para o processo de modernização do cinema norte-americano já na década de 1950. O Sunset Boulevard de Billy Wilder tem como objeto uma estrela decadente do cinema silencioso e olha com melancolia para esse período de glórias passadas, mas também parece prever o inevitável declínio do star system como um todo, bem como da linguagem e das convenções que imperavam na indústria desde, pelo menos, o início da década de 1930; em 1958 John Cassavetes surge com o seu Shadows, verdadeiro ponto fora da curva e uma ode à improvisação independente, e a partir de 1960 Roger Corman, já então um cineasta experiente, se firma enquanto figura sólida no mercado à frente de sua American International Pictures, empresa bem-sucedida na produção de filmes de gênero baratos e que, qualitativamente falando, estão entre o que vinha sendo feito de melhor nos EUA durante aquele período. Em meio aos pupilos de Corman, como se sabe, estavam nomes como Monte Hellman, Peter Bogdanovich e mesmo Martin Scorsese. Surgia a Nova Hollywood – a corrida para se chegar lá não foi fácil, mas essa história todo mundo já conhece.

Tudo isso para adentrarmos o ano de 1970 e lidarmos com um filme que, mesmo realizado após todo esse processo, parece uma verdadeira antiguidade, como um guarda-roupa de madeira de lei, estilo rococó, onde mesmo os puxadores são encravados com riqueza de detalhe. Rio Lobo foi a primeira e última incursão do veterano Howard Hawks na década de 70 (não filmava desde El Dorado, lançado quatro anos antes), e também seu último filme. Trata-se de uma obra que pode ser suscetível, de forma muito maleável, ao olhar do espectador. Este pode enxergá-la tanto como uma nova abordagem do diretor a uma série de temáticas, personagens, situações e mesmo atores e gêneros (John Wayne e o faroeste, respectivamente), como também como um canto de cisne autoconsciente que, mesmo enganando à primeira vista, de repetitivo não tem nada.

Ainda que careça de coadjuvantes da qualidade de um Dean Martin ou Robert Mitchum, Rio Lobo é considerado uma “versão repaginada” de dois outros filmes de Hawks: seu antecessor direto, o supracitado El Dorado, e Rio Bravo, de 1959 – um dos filmes mais bem quistos de Hawks entre crítica e público. Lobo não logrou da mesma admiração à época, como ainda não logra hoje; Bravo é lançado num momento em que o cinema norte-americano ainda está em meio ao processo de transição para a modernidade, enquanto Lobo chega ao público anglófono, por exemplo, no mesmo ano em que um marco do Cinema Direto como Gimme Shelter ou um trabalho de um cineasta independente maduro, como o Husbands do já mencionado Cassavetes. Onze anos separam um do outro, e no entanto a cinematografia norte-americana, e mesmo a mundial, já haviam mudado por completo.

Retomando o (já tido como comercialmente exaurido) gênero do faroeste, Hawks busca uma última dança com uma das parcerias mais frutíferas de sua filmografia, que por acaso é também o western clássico encarnado: John Wayne tem também, em Rio Lobo, um de seus últimos grandes papéis, interpretando um coronel do exército do Norte na Guerra da Secessão que adentra uma busca pelos homens responsáveis por uma emboscada que causou baixas em seu batalhão. Temos, no longa final de Hawks, um Wayne já grisalho (e isso chega até mesmo a ser discutido entre os personagens), mas com presença e postura em cena suficientes para que sua imagem de leading man reluza tanto quanto nos faroestes das décadas de 30 e 40. Quem é rei, ou Duke, nunca perde a majestade.

A essa altura do campeonato, o classicismo de Hawks já havia, há muito, sido aperfeiçoado a tal maneira que, em seus últimos longas, o que pode ser visto é um processo verdadeiramente próprio de modernização. Mesmo sendo mais tradicional nesse sentido, e tendo chegado aos cinemas numa época em que o western ainda era um filão popular, Rio Bravo não deixa de ser experimental em sua estrutura: mesmo que a narrativa gire em torno das tensões criadas em uma cidade quando torna-se iminente um ataque à pequena cadeia local, visando a libertação de um bandido, a maior parte da minutagem é dedicada a fazer uma crônica de costumes do lugarejo e a acompanhar seus personagens quase que à moda slice of life. A obra posterior de Hawks pode ser lida como um “período moderno” de sua filmografia, da qual Rio Lobo é não apenas, logicamente, o ponto final, como seu apogeu propriamente dito.

Um mestre da Hollywood clássica, Hawks toca seu derradeiro longa subvertendo noções anteriormente sólidas de sua filmografia e do próprio gênero do western. Já de início, John Wayne, o caubói arquetípico, é objeto de uma arapuca simples, nocauteado e feito de refém por soldados muito mais jovens do exército rival, sendo por eles subjugado e precisando acatar com os termos impostos para livrar-se da situação: o coronel vivido pelo Duke não é um pistoleiro indômito e infalível, e sim um velho veterano de guerra cuja motivação não apela ao extremo ou ao sentimental espectatorial (como em The Searchers, de Ford, ou em tantos outros faroestes), mas sim às sensibilidades próprias do protagonista – o exército do Sul descarrilhara um trem pagador para lhe saquear o ouro e, na batalha deflagrada pelo golpe, um dos abatidos do exército nortista era amigo do personagem de Wayne e integrante de seu batalhão; descobrir que informações sobre a passagem do trem teriam sido vendidas ao inimigo por alguém de seu próprio lado faz com que o coronel entre em uma verdadeira vendetta – ainda que o jeitão tranquilo e o olhar penetrante de Wayne façam com que toda a jornada adquira um tom de casualidade aventuresca. A personagem feminina que ganha espaço na trama, vítima das tramoias armadas por um dos homens que o coronel busca confrontar, não se torna interesse romântico do velho Duke (como ocorre com sua correspondente em Rio Bravo e numa parcela considerável das personagens femininas em faroestes clássicos, num geral) – a única sequência que demonstra uma proximidade física entre os dois se dá quando ela aninha-se nele para dormir ao relento numa noite de frio; ele é surpreendido ao vê-la quando acorda e tudo é tratado como um respiro cômico no filme. A tensão romântica se dá, se tanto, com o mocinho que opera durante a maior parte da minutagem como braço direito do coronel (a dinâmica de um quarteto de personagens que guia a narrativa, presente em outros westerns de Hawks, também se faz presente em Lobo). É um filme bagunçado, por vezes inchado, mas que nunca deixa de surpreender.

Os dias de galã de John Wayne já pareciam contados em 1970, ainda que os de herói – como se vê no tiroteio apoteótico do longa, que mantém a respiração do público suspensa até os últimos segundos antes dos créditos – estivessem fadados a durar até o fim. Envelhecido, remetente a uma outra época, mas ainda assim o homem que consegue fazer o trabalho que lhe designam e que é, sempre, quem o faz melhor. Esse é John Wayne na tela, e esse é Howard Hawks em Rio Lobo.

Este dossiê acompanha a mostra Retrospectiva Howard Hawks que a Cinemateca do MAM promove em julho e agosto de 2023.





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