Retrospectiva Kinuyo Tanaka

Sumário

Carta de amor (Koibumi, 1953), por Igor Nolasco
A lua ascendeu (Tsuki wa noborinu, 1952), por Tomás Farias
Para sempre mulher (Chibusa yo eien nare, 1955), por Anita Gonçalves
A princesa errante (Ruten no ôhi, 1960), por Roberta Pedrosa
A noite das mulheres (Onna bakari no yoru, 1961), por Pedro Serpa
Senhorita Ogin (Ogin-sama, 1962), por Ruy Gardnier


Carta de amor
(Koibumi, 1953)
por Igor Nolasco

Estreia de Kinuyo Tanaka como diretora, em meio a uma já extensa carreira como atriz, Carta de Amor é um longa intrigante. Trata-se de um melodrama com os dois pés fincados no gênero, mas com certos (e bem-vindos) respiros de humor. Sendo realizado oito anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, o filme lida intensamente com soldados, amores traçados e perdidos no conflito e a situação do Japão no pós-guerra, sem mostrar uma única farda e sem o disparo de qualquer tipo de projétil. Acima de tudo, surpreende pela forma como esquadrinha sua narrativa: a de um homem cujo reatamento com sua paixão de infância mostra-se obstruído não por agentes externos ou situações rocambolescas da trama, mas sim por seus próprios preconceitos e códigos de moralidade, desvelados enquanto arcaicos em meio à sociedade cada vez mais dinâmica que se desenvolve após o término do conflito armado.

Deprimido e sustentado pelo irmão, o ex-combatente Mayumi encontra um novo ofício após esbarrar, por acaso, em um conhecido dos velhos tempos que agora gere uma barraca, onde cobra para ler e redigir cartas em japonês, inglês e francês para mulheres que desejam comunicar-se com os soldados estrangeiros com quem se envolveram durante a guerra. A maior parte dessas cartas – ou, ao menos, a maior parte das que são mostradas no recorte temporal englobado pelo filme – disfarça, entre juras de amor eterno, pedidos por envio de dinheiro. Logo descobrimos que uma parcela substancial das clientes da barraca, após terem “vendido tudo”, passaram a “vender a si mesmas”, prostituindo-se. Mayumi enxerga-as com algo entre a pena e o desprezo; não obstante, as tolera durante a realização de seu trabalho, e logo descobre que as cartas por ele redigidas são tidas como belas e, sobretudo, eficacíssimas pelas mulheres que as encomendam – e escutam toda a redação, ditada por ele, enquanto devaneiam com aqueles que estão no além-mar. Em dado momento, enquanto Yamaji, seu sócio na empreitada, atende a uma mulher na barraca, Mayumi – que está pescando, de ouvido, o que é dito entre os dois – logo percebe que quem está falando é Michiko, sua amada há muito desaparecida, após ter se mudado para Tóquio e engatado em um casamento. É a partir desse momento que a cabeça do protagonista dá um nó.

Segue uma das sequências mais bem arquitetadas da produção, em que Tanaka põe o personagem principal para perseguir seu interesse romântico pela cidade até chegar a uma estação de trem, só conseguindo chamar-lhe a atenção quando ela já está dentro do transporte, prestes a seguir viagem. Os dois tentam abrir caminho entre a massa proletária até alcançarem um ao outro, em um momento não apenas plasticamente sublime como, de certa forma, representativo de uma das temáticas gerais do filme: a do amor tentando manter seu espaço em meio às relações de trabalho sufocadas no Japão urbano da década de 1950. Os flashbacks que seguem, fazendo a necessária exposição da infância compartilhada, do amadurecimento e dos desencontros entre as duas personagens, também constam entre os quinhões do longa onde Tanaka mais brilha enquanto cineasta, artífice do onírico; muito escreve-se, a respeito de Carta de Amor, sobre o uso singular das filmagens externas em locação, que trazem ao longa uma palpabilidade quase neorrealista, e no entanto, nesses flashbacks, ao despregar-se da ambiência citadina e se permitir flutuar com olhos livres, a diretora demonstra como sua aptidão não está necessariamente atrelada a estes espaços.

O sofrimento de Mayumi está em seu confronto com a realidade. Com um olhar que pode ser lido como feminista, Tanaka despe a principal figura feminina do filme do arquétipo de donzela dócil e casta, subvertendo expectativas. A frustração do soldado que agora redige cartas de amor, ao descobrir que sua amada não apenas teria se casado com outro homem, mas posteriormente se envolvido com um soldado americano – e com ele tido um filho – leva-o a um ataque de fúria (um dos momentos mais dramaticamente carregados de todo o longa), em que espinafra Michiko, desqualificando-a enquanto mulher e enquanto pessoa; o fato de, para além de todo o mais, descobrir que ela se encontra na posição de implorar por dinheiro para o soldado após a morte do filho dos dois enfurece e enoja Mayumi ainda mais.

Vale ressaltar, caso já não esteja claro, que em momento algum os jogos de cena armados pela cineasta propõem um endosso acrítico ao protagonista, e – pelo contrário – o constroem enquanto um personagem complexo e dramaturgicamente rico: mostrado como agressivo e, na sequência supracitada, até mesmo cruel pelo tratamento que dispensa a Michiko, ele é a todo momento objeto de tentativas de dissuasão pelas outras personagens que o cercam, em tentativas de lhe oferecer uma perspectiva mais razoável. Mayumi começa Carta de Amor como o arquetípico soldado que tem dificuldades em seu processo de ressocialização após o retorno para a urbe; vaga pelas ruas com um olhar perdido, mata tempo na estação de trem, olhando para as plataformas, sonhando pelo retorno da mulher que ama e para a qual, para todos os efeitos, se guardou (pois desconversa, a princípio, quando o irmão ou outras pessoas trazem o assunto para o amor e para o sexo; e é dito, a certa altura, que nunca teria se envolvido com uma mulher). Em um comportamento representativo de uma masculinidade defasada e objetificadora, perde a cabeça quando descobre não ter havido “reciprocidade” a esse respeito, como se isso fosse uma condição sine qua non para que Michiko se mostrasse “digna” de ser, novamente, seu amor. Mayumi, que agora ganha a vida escrevendo cartas de amor para mulheres, mostra-se incapaz de se por no lugar das mesmas; durante a redação dos apelos, mesmo quando as clientes tentam explicar a ele o motivo de estarem naquela posição, ele não lhes dá ouvidos. Ainda que tenha o amor como ofício, é incapaz de abrir o peito para viver o seu.

Como pano de fundo, a cidade mostra-se um espaço em que impera a lei do cão. Não são só Michiko ou as mulheres que vão à barraca das cartas que estão fazendo qualquer coisa para sobreviver no Japão pós-guerra; o próprio ofício da redação de cartas para os iletrados já é mostrado como um recurso para superar a falta de empregos formais, bem como a revenda de livros e revistas usados por preços inflados promovida pelo irmão de Mayumi – personagem que, mesmo pouco citado nesse texto, é de importância vital para o desenrolar da narrativa de Carta de Amor, servindo como o contraponto racional do protagonista e, no frigir dos ovos, aquele que precisa se desdobrar em uma tentativa de reatar o casal.

Fazendo, já em seu primeiro longa, um complexo estudo de personagem e um tratado sobre as relações na sociedade contemporânea que emerge da devastação do conflito armado, Kinuyo Tanaka já demonstra um tato para enquadrar composições visuais inesquecíveis e para reger um drama tematicamente carregado com grande fluidez rítmica. Compactado em enxuta minutagem, Carta de Amor prende o espectador ao oferecer uma perspectiva muito particular sobre questões universais da sociabilidade humana, enquanto mostra-se simultaneamente preocupado em retratar um momento emblemático do presente de seu país. É um marco-zero proveitoso para uma grande cineasta.

A lua ascendeu
(Tsuki wa noborinu, 1955)
por Tomás Farias

A percepção de que a ocasião da fruição de um filme é uma recepção que se faz à sua autora encontra, fundamentalmente, quais pressupostos? Quando a validade da pergunta e ainda das perguntas que levam a esta, das direções historicamente formuladas a esse respeito denota sem contornos na existência da figura autoral a presença nuclear da individualidade, a sua aplicação inserida nos meios de produção e recepção do cinema (tudo o que os filmes movimentaram em suas idealizações e concepções, pelas suas viabilidades e viabilizações e nas infinitas receptividades e recepções que oferecem e provocam e foi infalivelmente atravessado por essa consciência na intensidade em que ela esteve ou não voluntariamente ativa) denota em tudo que contorna a percepção e realização da individualidade no contato com o movimento orgânico de particularidades inerente aos próprios meios. Escrito oito anos antes por Yasujiro Ozu e postergado pelos estúdios, A lua ascendeu guarda em si, pelas mãos de Kinuyo Tanaka, uma disposição vibrante dos mais e menos íntimos mistérios que a autoria absorve e reflete desvelando a si própria da sua condição de mistério. As marcas não se mascaram em sua permeabilidade indivisível. A marca assume sua sujeição disparando a si mesma.

As presenças marcam. E o contato inerente é o entrelace permanente do mundo quando tudo esteve essencialmente presente nele. Estar no território familiar de Ozu não pode deixar de provocar a zona, localizada quando ilocalizável, de absorção definidora dos elementos a partir de tudo que os elementos expressam e só expressaram por serem manipulados, exprimidos de forma tão íntima e sistematicamente particular no exercício de uma linguagem assimilada e incorporada tão radicalmente pelo contato. Não se fabrica a recusa de ser senão uma sujeição. Quando ela implica a inexistência de régua e olhar algum que não seja o corpo sujeito. Tanaka não se entrega senão ao movimento que pressupõe a urgência da realização das suas próprias possibilidades, da provocação de aberturas no terreno e da inserção que se mantém o tempo todo inerente a uma lógica própria de percepção e condução de dinâmicas tão intimamente familiares. A lua ascendeu se ocupa dos espaços deixados pelas receptividades e adesões que se antecipam a si mesmas, das percepções indissolúveis da individualidade e do contato, dos processos individualizantes inseparáveis dos processos de aproximação, pertencimento e estranhamento, dividindo a amplitude de contato definida e alimentada pela eternamente incompleta consciência de que o individual, por tudo o que carrega de tão fortemente pessoal e oculto, é inescapavelmente vivido na presença compartilhada.

A localização que o filme parte por estabelecer é pluralmente atravessada pela ideia de movimento. Sem esgotar na reprodução cumulatória e ordenadora o movimento ritualístico e rotineiro que coabita o tempo e a interação, as inserções presentativas se ocupam de encontros e chegadas marcados por lembranças e costumes, visitas, arranjamentos, pequenos planos em conjunto, deslocamentos de diferentes ordens e sentidos que implicam direções tomadas pelas pessoas em relação umas às outras. Situações de espera e partilha que pressupõem, se referem, indicam ou sugerem algum tipo de distância percorrida, conexões dadas, esperadas, desejadas, marcadas por percursos. Se a monumental contribuição de Ozu ao cinema carrega, fundamentalmente, uma marca tão amplamente particular de compreensão da ideia de movimento e tão visceralmente fiel ao seu estabelecimento estrutural para direcionar nas aberturas determinadas da ordem sempre em andamento o inefável, a melancolia da supressão do voluntário ou de sua homogeneização no coletivo, Tanaka parece recuperar na disposição dos espaços a manifestação de momentos sustentados com um brilho de escape tão furtivamente singular que puderam permanecer infalivelmente escondidos até se combinarem no ritmo que estiveram à vontade para adotar com a ordem supressora. 

A afluência dos anseios ordenados ecoando no ambiente familiar ao emaranhado balançante de subjetividades que dissimula os ecos no presente é uma alavanca decididamente acionada tão logo as primeiras imagens começam com o repouso da neblina intermitente ao pasto e o realce incompleto das construções no horizonte. A irregularidade certeira das inclinações que um ciclo reúne quando despertado em cada ponto de contato, já dada na melodia daquela canção sobre o tempo que faz parte da presença simultânea da família logo após os créditos, não é traída em sua maleabilidade inerente ou desviada nos desdobramentos pelas ações, que não reforçam senão ela mesma. O filme demonstra o alcance de sua encenação em um aproveitamento dos planos pela vazão que ocorre em sua confluência, envolvendo o movimento idealizado no contato direto com a sua manifestação física e presente, aderindo ao desprendimento, às descargas que o enquadramento recebe quando reage ao volume que o ocupa. Um aproveitamento contrabandeado, dissimulado na suposta fixidez em que a câmera verdadeiramente se hospeda na sua pulsão absortiva de aparência engessada, na suposta atividade de cobertura antecipada na montagem, na continuidade espacial comportadamente assimétrica, na teimosia resguardada. 

Há uma constante vedação dos procedimentos que os leva a suscitar a matéria armazenando-a em si, gerando acúmulo a estímulos involuntários do plano, em zonas indetectáveis que abastecem a imagem da presença. A presença aqui não é e nunca se mostra dispensável da presença individual enquanto elemento possibilitador das reuniões. Muito antes das possibilidades quantitativas, pela recusa de uma superficialização estéril e mutiladora, igualadora das pulsões subjetivas à neutralidade, enquanto maneira de perceber e encarar o encontro. Em seu acúmulo de situações através das intenções, especulações e compartilhamentos nas percepções uns dos outros que acaba provocando o envolvimento em si de uns com outros, na indissociabilidade entre indivíduo e conjunto onde ambos se reforçam, A lua ascendeu se impregna da presença compartilhada da individualidade respirando profundamente com as intuições e pulsões manifestadas nos gestos e reflexos dos atores, com um senso de desestabilização incorporado no dinamismo ordenado das sequências. Quando a presença nua da individualidade atravessa ou é mantida pelo plano, a aproximação realizadora da câmera dialetiza as distâncias que a envolvem pela sua imensurabilidade. Distâncias organizadoras das relações aproximativas com uma absoluta inerência que domina completamente os vislumbres incessantes de projetá-las. Distâncias não suprimidas quando alguém imagina quantos casais já olharam a lua, tomada pela singularidade de estar formando um deles.

Para sempre mulher
(Chibusa yo eien nare, 1955)

por Anita Gonçalves

Para Sempre Mulher (1955), terceiro filme assinado por Kinuyo Tanaka como diretora, retrata os últimos anos da vida da poetisa Nakajo Fumiko (1922-1954), submetida a uma mastectomia em função de um câncer de mama, doença responsável por sua morte precoce. O filme foi realizado a partir de uma adaptação, roteirizada por Sumie Tanaka, do livro, recém lançado na época, Chibusa yo eien nare/The Eternal Breasts, escrito pelo jornalista e poeta Akira Wakatsuki, onde este narra seus encontros íntimos com a poetisa¹, interpretada aqui por Yumeji Tsukioka.

Além do seu trabalho praticamente devocional ao cinema – importante dizer que ela atuou em mais de 250 filmes, tendo seu auge no período do pré-guerra –, Tanaka, no âmbito de sua vida pessoal, perdeu o pai quando ainda era criança, e teve de dedicar-se, ao longo de sua vida, aos cuidados com seus irmãos doentes². De certo modo, esse pode ser um paralelo notável entre sua vida pessoal e aquilo que pode lhe ter suscitado atração pelo livro de Wakatsuki, levando-a ao desejo de adaptá-lo para o cinema, o que ocorreu sobretudo por iniciativa própria. Além disso, no pós-guerra, Kinuyo passava por um momento um tanto crítico em relação à sua carreira como atriz, algo que pode ser associado ao seu próprio envelhecimento. Podemos relacionar, ainda que com ressalvas, a condição de Kinuyo à condição de Fumiko: os seios e a juventude estão associados à maternidade, a uma noção específica de feminilidade e a um ideal estético feminino, muito perpassado pelo olhar masculino proeminente no meio cinematográfico da época. Paralelamente às questões de gênero, Kinuyo parece compreender as semelhanças entre a luta de Fumiko (uma combinação entre persistência e resignação diante da morte), e sua própria tarefa de modelar o tempo (perante a duração e o fim inerentemente cinematográficos).

Para Sempre Mulher explora o esfacelamento de uma rotina que oprime Fumiko – mais especificamente, o casamento e a relação de subserviência ao marido –, mas que também alicerça e compõe seu ser social e cultural. Esse esfacelamento, estando associado primeiramente ao divórcio e posteriormente à própria doença, também a atinge, de forma que a personagem parece enxergar-se destituída de elementos que até então lhe eram basilares, constituintes, como a maternidade e uma certa expectativa de feminilidade. Nesse sentido, ela sente-se destoante em relação ao mundo à sua volta – e que exerce sobre ela uma esmagadora pressão –, onde até mesmo o casal de idosos com os quais divide o quarto no hospital tem um ao outro até o dia da morte.

Apesar do esfacelamento da rotina e de estruturas que afligem e constituem a personagem, simultaneamente, é certo que Tanaka – assim como faz Fumiko, com seu pequeno espelhinho de mão redondo – joga luz nas rachaduras e frestas por onde Fumiko respira, espia e satisfaz-se, mesmo que diante da iminência assombrosa da morte, do ambiente fúnebre e claustrofóbico do hospital, local em que se ambienta a segunda parte do filme.

As frestas se traduzem na persistência que existe perante a duração do próprio filme, por onde a condição trágica de Fumiko se arrasta lentamente, ainda que acompanhada de uma encenação ágil, que dispensa muitas palavras ditas ou reações por parte das personagens. Às vezes, um gesto ou um objeto evidenciado em close-up, seguidos ou não de um contraplano, de um olhar, exprimem em si – como símbolo ou elipse – a ação, a reação e a emoção (as palavras escritas, o troféu, a bolsa, o tabi, o desenho, os sapatos sendo calçados, o sutiã etc.). Esse tipo de operação reúne uma série de sentimentos e significados fluidos enredados e justapostos de forma complexa, contraditória e poética, ainda que muito objetiva e direta em termos da decupagem e da montagem.

Interessa aqui refletir sobre como Kinuyo Tanaka modela o tempo e filma os espaços. Há uma modulação na representação temporal, orquestrada de modo variável de acordo com cada contexto e situação dramática, numa mescla entre um tempo que corre de maneira natural e um tempo composto por fragmentos, que realça expressivamente ações pontuais através da montagem. Em algumas sequências e planos, o fusuma – as portas corrediças das casas japonesas, que ao mesmo tempo delimitam e integram os espaços interiores e exteriores da casa, num movimento que oscila entre o revelar e o esconder, dotadas de sugestividade oriunda de sua opacidade – parece ser enquadrado como forma de realçar a profundidade do campo em planos relativamente longos, em que diferentes ações e movimentos ocorrem de modo sincrônico. Já a diacronia, também presente, é modelada na decupagem de cenas com maior velocidade – que soam aceleradas – pela intervenção da montagem, através de planos curtos, com cortes sucintos, secos e rápidos, onde uma série de movimentos breves e objetivos decorrem um após o outro, constituindo assim uma única ação ou acontecimento. Aqui, o fusuma também está em evidência, mas se faz predominante pelo movimento brusco do abrir-e-fechar, e, sobretudo, pelo ranger que o movimento emite. Essas são geralmente sequências com maior destaque narrativo e dramático, como é o caso do momento em que Fumiko descobre a traição do marido.

Em oposição à profundidade dos planos abertos e ventilados nas casas e locais proeminentes na primeira metade do filme, as paredes e portas do quarto do hospital o tornam um espaço contido, como um cativeiro, em que a única mediação entre o interior e o exterior na imagem se dá por meio de uma grade. Nessa segunda parte, prevalecem planos fechados em Fumiko e em seu rosto, e nos percebemos ainda mais íntimos da personagem – já estando ela aqui mais despida de máscaras sociais. No momento em que toma banho na casa da amiga Kinuko – viúva daquele pelo qual cultivava uma paixão –, Fumiko direciona-se a ela, mas é como se falasse diretamente à câmera, ao espectador, exibindo suas cicatrizes, ainda que fora de enquadramento. A mise en scène oscila entre o esconder e o revelar, sujeitos às vontades da personagem, que está aqui no comando: após exibir-se à amiga, assustando-a, Fumiko fecha a janela que até então nos permitia vê-la³, e põe-se a cantarolar, dominando toda a sequência que sucede, sobrepondo-se aos diálogos entre as personagens que estão do lado de fora, sentados em torno de uma mesa. “Ela mudou muito depois da operação. É como uma criança”, alega seu irmão.

A persistência de Fumiko se traduz na sua obstinação e desobediência diante do tempo que a fagocita e a constrange: é o seu desejo de viver, ainda que orbitado pelo choro recorrente que emana do corredor do hospital (o “corredor da morte”). É nesse sentido que Tanaka dispõe, em gesto de cumplicidade, os desejos da personagem em primeiro plano, seja em sua relação de retomada da sexualidade (“não tenho seios e meu peito arde por dentro”); seja no desacato para com as ordens médicas, nítido em sua fuga do hospital; seja no ato de escrever; seja no desejo de ficar só; seja no desejo de ter os cabelos lavados pela mãe, no leito de morte. Esses lampejos imbricam-se com elementos, ora ditos explicitamente pela personagem, ora subentendidos nos gestos, posturas e olhares sugestivos, como a culpa, a dor, a inveja, o luto, a exaustão, a falta de ar inerente àquilo que a aprisiona e a desmantela; a doença, o hospital. Sua resistência se torna progressivamente mais árdua, ficando cada vez mais evidente a tensão entre a morte que assombra e se aproxima – pulsante no momento em que o choro alheio atrai Fumiko, de maneira quase hipnótica, ao portão do necrotério – e o desejo de viver, de se apaixonar, de conhecer o Lago Toya. Muitas vezes, Fumiko demonstra-se exausta em lutar contra o ar fúnebre que a cerca, quase que vencida nesse caminho já prescrito, cuja sobrevivência se dá unicamente pela capacidade de modular e modelar o tempo, de desacelerar os passos ou de enganar a morte no corredor que envereda para o necrotério.

Na primeira metade do filme, Tanaka parece buscar retratar a solidão de Fumiko, filmando o seu olhar padecido, que acompanha corpos que dela se distanciam, desvanecendo no extracampo ou tornando-se gradativamente pontos minúsculos na profundidade do plano. Existem cenas em que Fumiko é filmada em destaque, no que diz respeito à sua interação com os outros: quando ela está de frente, os outros estão de costas; quando ela está de costas, os outros estão de frente, de forma que nós nos deparamos com aquilo que ela mesma observa, vislumbra, deseja ou teme, de modo que suas costas se tornam o elemento mais expressivo do quadro. Por exemplo, na primeira cena do clube de poesia tanka, Fumiko é a única de costas dentre seus colegas, que julgam criticamente – desdenhando ou exaltando – sua poesia. Ao mesmo tempo que esses recursos formais destacam sua solidão melancólica, isolando-a do resto do mundo, eles também realçam sua subjetividade, jogando luz a camadas sensíveis que geralmente não são concedidas a personagens femininas, para os parâmetros da época.

O julgamento alheio acerca de Fumiko está sempre presente ao longo do filme, e se intensifica na segunda parte, quando o espaço do hospital e o ambiente do mundo exterior parecem ser tomados como dois polos antagônicos pela própria mise en scène: o espaço agonizante do quarto do hospital, cujas quatro paredes rígidas a enclausuram, expresso por planos fechados, em contraponto com o espaço aberto e aerado das ruas, os movimentos sincrônicos das pessoas e dos ônibus, a presença de elementos da natureza, a visibilidade do céu etc. Assim, na medida em que esse mundo – que chega a Fumiko sobretudo através das notícias e matérias de jornais – traz à tona, juntamente à sua qualidade de poetisa, sua doença terminal, invocando efemeridade da sua vida, ela revolta-se, insistindo ainda mais em sua vontade de viver, recusando-se mesmo a escrever poemas em determinado momento. No entanto, o movimento de ir contra o mundo exterior não é definitivo: enquanto mulher encarnada, cujos desejos e anseios não são estanques e invariáveis, o comportamento se altera, na medida em que ela deixa de ou passa a desejar algo. Na trama, esse “algo” é Otsuki, o jornalista. Ela lhe dá os sinais: “Quando morrer, posso estar em qualquer lugar. No seu ombro, por exemplo”.

Fumiko e Tanaka, enquanto cúmplices, lutam perante o tempo, negociando com ele, modelando-o e fazendo-o prolongar-se ao máximo; ambas lutam contra o fim, ao passo que operam a partir dele, subjugadas a ele. Fumiko, porque enfrenta a morte através da persistência e do desejo; Tanaka, porque dá vazão para Fumiko assim o fazer, filmando a vida permeada pela morte, pelo término de uma duração.

Os minutos finais de Para Sempre Mulher possuem um peso único dentro do filme. Orbitam entre o plano etéreo, monumental, onírico – pungente na imagem esfumaçada, como que um pesadelo que se transforma em sonho ou um processo químico de sublimação, da alma que deixa o corpo – e a dimensão mundana, cotidiana, de persistência da matéria – através da constância e insistência na operação diacrônica da decupagem, que se repete ao longo do filme, mas aqui sob um ritmo distinto, inédito até então, de uma desaceleração gradual da velocidade. Tanaka faz uso da mesma música que recorrentemente permeia as imagens, justapondo-a à melodia da caixinha de música de Hiro, como se o próprio objeto fosse gradativamente perdendo o ânimo, fracassando na repetitividade melódica, desacelerando o movimento. Assim, soa como se Fumiko e Tanaka não possuíssem mais forças para transcender e vencer o tempo, o fim, e a própria Kinuyo Tanaka, em pessoa, chora silenciosamente no canto escuro do quarto fúnebre do hospital, enquanto Fumiko e seus filhos estão iluminados. Ressoando os mesmos movimentos da mãe, caminham os filhos em direção ao temido portão de ferro, seguindo aquele corpo coberto por um lençol, levado em uma maca por médicos e enfermeiras ao necrotério. Gritam pela mãe, mas, sem ecoar nenhuma resposta, nada mais encontram.

No entanto, através da satisfação do desejo se dá a libertação de Fumiko, triunfando as mulheres sobre a duração e a efemeridade: os planos finais parecem reverter e contornar a morte, condição inerente ao filme de Tanaka e à vida de Fumiko. Kinuyo Tanaka não recusa o fim do filme (tampouco Fumiko recusa o fim da vida: “crianças, aceitem minha morte. É a única coisa que deixo a vocês”), isso seria impossível. Apesar disso, ela reivindica a perpetuação da alma por meio da sublimação e da transformação, por meio do legado da memória. Não mais através do corpo da atriz, Nakajo Fumiko emerge aqui como presença, difusa por todas as coisas, como poesia decalcada na imagem e como versos que ecoam no espaço, enfim livre e para sempre mulher. Preenchendo a dimensão invisível da paisagem do Lago Toya, o qual enfim pôde conhecer, a poetisa transforma-se em flores de caule branco que, arremessadas pelas crianças, flutuam sem raízes na superfície das águas, eternamente, como assim havia profetizado.

1 Ayako Saito. “Kinuyo and Sumie: When Women Write and Direct”. In: “Tanaka Kinuyo: nation, stardom and female subjective”, editado por Irene González-López e Michael Smith. Edinburgh University Press, 2018.

2 Furukawa Kaoru. “Preface: Light and Shadows in the Life of Tanaka Kinuyo”. In: “Tanaka Kinuyo: nation, stardom and female subjective”, editado por Irene González-López e Michael Smith. Edinburgh University Press, 2018.

3 González, Ueda, 2015, p.5-7 apud Saito, 2018, p.143.

A princesa errante
(Ruten no ôhi, 1960)
por Roberta Pedrosa

Ainda antes de assistir ao filme, me peguei pensando em seu título A princesa errante (título que parece ser uma tradução fiel do japonês Ruten no ōhi). Errante é aquele que é nômade, que não tem residência física, mas também alguém que vaga sem destino, um flâneur. Já princesa me lembra o oposto, remete a alguém que está no mesmo lugar há gerações, que já nasce com uma propriedade e representa aqueles que estão ali no mesmo território.

Talvez “princesa errante” possa também ser usado para descrever a trajetória de Kinuyo Tanaka, que se estabeleceu como uma figura central enquanto atriz, foi o rosto não só do cinema de estúdio japonês, mas também representante em suas performances de toda uma geração de mulheres. Foi depois de uma viagem aos Estados Unidos em 1949, que Tanaka, inspirada por uma diretora americana¹ (talvez Ida Lupino), resolveu buscar uma carreira também como diretora. Muito criticada pela imprensa japonesa pela suposta ocidentalização de seus hábitos nas terras estrangeiras, teve que reconstruir sua trajetória e imagem ao voltar da viagem. Há nesse caminho uma reinvenção e uma exploração de outras perspectivas possíveis que envolve a saída de uma zona de conforto e a ocupação de um novo lugar que ainda não existia para mulheres no Japão.

Seu pioneirismo como diretora é um mérito em si, um caminho que certamente encontrou muitos empecilhos e oposição mesmo de pessoas próximas como Kenji Mizoguchi, mas seu cinema também encontrou um espaço em grandes estúdios e sua influência na cena local também propiciou que ela pulasse etapas e partisse para realização diretamente, trilhando um caminho pouco comum em um sistema estruturado de maneira bastante rígida².

A princesa errante (1960) é a quarta realização de Tanaka e a primeira em cor, no formato widescreen. Tem como inspiração as memórias de Hiro Saga, uma nobre japonesa que, por questões diplomáticas, se casa com o irmão do imperador chinês Pu Yi. O filme retrata o drama pessoal da protagonista que tem como pano de fundo não só a diplomacia entre a China e o Japão, mas a decadência do regime imperial chinês e o envolvimento do Japão da Segunda Guerra Mundial. Apesar do tema histórico, o filme é ainda doméstico, adotando o ponto de vista da protagonista Ryuko (interpretada por Machiko Kyō, também protagonista de Rua da Vergonha e Contos da Lua Vaga de Mizoguchi), incorporando também suas limitações³. O filme termina com o suicídio da filha mestiça de Ryuko e uma mensagem de paz da protagonista, que almeja que China e Japão possam se respeitar mutuamente.

A estrutura reforça o tom melodramático da narrativa. Logo na primeira cena, a protagonista cobre o corpo de uma jovem mulher com um manto vermelho, evocando o suicídio da sua filha no final do filme. Essa coberta se conecta com a pasta vermelha da jovem Ryuko que introduz a estrutura cronológica do filme. Do cobertor vermelho à pasta que guarda os sonhos de uma jovem que quer estudar arte e não quer se casar, há um lampejo de um futuro que poderia ser diferente, afinal, apesar do casamento ter sido feliz o destino foi trágico.

Essa ênfase em detalhes também passa por um olhar da diretora para os movimentos abstratos da vida: sejam as árvores ao vento, as paisagens, estações do ano, mas também multidões de soldados, manifestações nas quais pessoas movimentam bandeiras coloridas ao vento produzindo um padrão geométrico. Nesse sentido, o widescreen funciona como uma passagem interessante entre o plano pessoal e o político. Em uma mesma composição pode-se captar o dentro e o fora de uma sala, assim como as magnitudes das cordilheiras entre China e o Japão e o esforço das personagens para cruzá-la.

1 Em um texto de 1966 ela afirma: “Outro estímulo [para começar a dirigir filmes] foi um artigo de jornal que eu li por acidente em um hotel nos Estados Unidos, sobre uma atriz que foi uma estrela e que retornou ao mundo do cinema muitos anos depois como uma diretora”. Outskirts Magazine n˚2 (2023) “The Birth of a Woman Director – I Just Can’t Let Go of Movies. Tanaka Kinuyo. p. 50. Tradução para o inglês Nathan Letoré, tradução para o português minha.

2 Cabe assinalar que, ao contrário de Lupino, cujo cinema foi produzido de maneira mais independente e também com um apelo mais visceral aos temas sociais, formalmente o cinema de Tanaka, mesmo tratando de temas do universo feminino, parece se encaixar mais confortavelmente no contexto mais amplo do cinema estúdio japonês. Acredito que isso se dê porque os filmes de estúdio de gênero doméstico, que ficaram também mais conhecidos no ocidente pelas figuras de Yasujiro Ozu e Mikio Naruse, mas não restrita a eles, não encontram equivalente no cinema de estúdio americano, e tomavam como protagonistas muitas vezes o ponto de vista e a subjetividade feminina.

3 Como seria natural para uma nobre do período, não há um ponto de vista crítico sobre o Japão apoiar o Eixo ou nenhuma consideração sobre a abolição da monarquia na China.

A noite das mulheres
(Onna bakari no yoru, 1961)

por Pedro Serpa 

Em um primeiro momento, é difícil não comparar A noite das mulheres com A Rua da Vergonha. Além de ambos tratarem da prostituição no Japão contemporâneo, Kinuyo Tanaka colaborou com Kenji Mizoguchi em grandes filmes, tendo um deles, inclusive, o título de Mulheres da noite no Brasil, filme este em que Tanaka interpreta a personagem principal. Mas limitar-se a essa comparação é desconsiderar a grandeza própria de A noite das mulheres, belo filme em que, em oposição ao magistral canto de cisne de Mizoguchi, se recusa a perder a esperança.

A princípio, somos introduzidos a uma estrutura coral de personagens em um reformatório para prostitutas (trata-se de período em que a profissão encontra-se na ilegalidade no país). Contudo, diferentemente do filme de Mizoguchi, aqui toma-se uma personagem Kuniko como cobaia para todos os apuros, ao passo que as demais, ainda enclausuradas, são testemunhas do que o mundo pode fazer a elas quando libertas. Antes disso, ainda no início do filme no reformatório, é através de uma visita guiada de um clube de mulheres em uma situação de superioridade (são mulheres supostamente caridosas de classe média) que conhecemos o funcionamento e as habitantes do local. A importância da adoção desse ponto de vista reside no fato de que o filme não buscará estabelecer, como poderia se esperar, uma relação de opressão entre mulheres e homens, mas sim entre mulheres sem poder e mulheres com poder.

Saindo do reformatório, a primeira mulher com poder que Kuniko vai se deparar é sra. Takagi, para quem trabalhará como empregada doméstica. Após um promissor começo, ao descobrir que sua empregada é uma antiga prostituta, a mulher passa a tratá-la com desdém. Destemida e vingativa, Kuniko seduz com facilidade o frágil marido da patroa. O momento seguinte, em que é descoberta a traição do marido, é quando fica evidente pela primeira vez que as relações de poder em A Noite das mulheres superam o lugar comum do homem-forte/mulher-frágil. Em uma tomada parecida tirada de Psicose, sra. Takagi é filmada em um arrepiante plano fechado descendo as escadas rumo ao seu marido, que a observa aterrorizado. O rosto da mulher, de fato, é aterrorizante. Nesse momento, como em um filme de terror, não podemos deixar de temer pelo que lhe acontecerá.

É trabalhando em uma fábrica que Kuniko irá se deparar com outras mulheres mais poderosas do que ela. Na segunda sequência encenada como filme de terror, em que nos deparamos com mais um espantoso plano fechado que captura toda a maldade que pode existir nos olhos de uma mulher, as maléficas colegas de trabalho lhe torturam queimando suas partes íntimas.

Nesses dois primeiros empregos exercidos por Kuniko, não passa despercebida a similaridade deles com seu antigo trabalho. Em todos eles, vende-se o corpo ou a mão de obra a partir de uma demanda externa. É a demanda dos homens por sexo que dá origem à prostituição. A diferença é que agora a lei, feita também pelos homens,  já não mais a permite. Contudo, a exploração do corpo feminino não cessa, mas manifesta-se por outros meios.

Quando Kuniko finalmente encontra um trabalho em que pode estar em paz cultivando flores é que surge, pela primeira vez no filme, o amor. Apaixona-se por Tsukasa, floricultor. Longe do opressor ambiente urbano, A noite das mulheres transforma-se em um sereno filme diurno. Tsukasa e Kuniko, profundamente apaixonados, falam em casamento; contudo, surge a mãe dele, que, sabendo do passado de Kuniko, se opõe ao casamento para manter a suposta pureza da linhagem familiar. Por uma última vez, Kuniko é dominada por outra mulher.

Com esse tom derrotista é que muitos cineastas teriam encerrado A noite das mulheres, mas não Kinuyo Tanaka. Na bela cena da praia, Kuniko ressurge purificada pelas ondas. Em um trabalho envolto pela natureza, como naquele em que encontrou seu amor, ela trilhará um novo caminho. De todo modo, não podemos ignorar que na visita de Tsukasa ao reformatório, onde encontrará a bela carta escrita por Kuniko, vemos novas mulheres chegando ao local para serem reabilitadas. Elas não pararão de aparecer. Esperança? Aqui, não posso deixar de pensar em Mizoguchi.

Senhorita Ogin
(Ogin-sama, 1962)
por Ruy Gardnier

Senhorita Ogin, em fabuloso Cinemascope e cor, é um drama histórico com sobretons de melodrama – o amor impossível, o poder que destrói as relações autênticas de afeto – em que fica evidenciado o papel da mulher como objeto de ostentação e de troca. Isso fica evidenciado porque um dos personagens pratica o oposto: Rikyu acredita nos fluxos da natureza e não no luxo dos homens, e decide que só casará sua filha Ogin com quem ela quiser. Ela tem alguns pretendentes mas mantém-se casta por amor a Ukon, até o momento em que os dois discutem sobre isso – é lancinante o modo como os sentimentos simultâneos de desejo e repressão são retratados por Ineko Arima e Tatsuya Nakadai – e Ogin sai devastada. Ela contrai núpcias sem amor com um comerciante oportunista que posteriormente irá unir-se ao latifundiário Hideyoshi – que enfim poderá se vingar de Rikyu – para denunciar Ogin e Ukon como adúlteros (antes mesmo de se tornarem) e ganhar pontos de barganha com o poder central.

Assim como em Os amantes crucificados, é a própria trama do poder que torna os protagonistas adúlteros. A partir do momento em que eles escapam de uma armadilha para forjar um flagrante, eles iniciam uma rota de fuga em que deixam para trás não só seus pertences, mas também os valores da sociedade, a reputação, ou seja, tudo que é artificial, e ganham a natureza. Ela machuca a perna cruzando um rio e ele pela primeira vez a toca, cuidando de seu machucado e tocando em seu sangue. Já não são mais latifundiário e esposa de comerciante, são homem e mulher, corpos que se tocam e se protegem, e, assim sendo, poderão obedecer à lógica da natureza que quer que corpos atraídos entre si entrem em fricção. Ela acontecerá em meio a hesitação e desespero, mas acontecerá: terá sido toda uma vida para isso, e é vivida como uma experiência que vale uma vida. O bravo momento em que a força da natureza sobrepujou os afazeres sórdidos da sociedade.

Kinuyo Tanaka dirige os atores e enquadra com perfeição e elegância. Nos momentos em que a cena pede alguma coisa especial da câmera, ela está lá para dar: assim é o momento em que Ogin decide que vai aceitar a proposta de casamento, em que corta-se para um plongé em plano aberto para mostrar seu andar autômato para fora do quadro (e fora da vida de esperar por Uron), ou no deslumbrante travelling, à margem de um rio, em que ela se sente humilhada por uma risada de Ukon e ao longe passa uma procissão de crucificação de uma mulher adúltera (outra recorrência do supracitado filme de Mizoguchi). A adúltera antecipa o futuro de Ogin, é o que presumimos quando vemos a cena. No entanto, ao final do filme, não é tanto o medo de ser crucificada que a adúltera transmite a Ogin: é a serenidade no olhar de quem fez o que teve que ser feito, o que a natureza manda, e que aceita pagar qualquer preço por aquilo que fez.

Senhorita Ogin pode não ser o melhor dos filmes de Kinuyo Tanaka como diretora, mas é tão impregnado de um romantismo impossível, tão afetado pela singeleza de Ineko Arima, tão tomado pela elegância formal nos enquadramentos do Scope, nos movimentos de câmera e nas cenas de grupo, tão bem ritmado, que os pequenos descompassos de foco narrativo deixam de incomodar. Notável último filme como diretora.

Este dossiê acompanha a mostra Retrospectiva Kinuyo Tanaka que a Cinemateca do MAM promove em novembro de 2023.





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