Santa Entre Demônios (1949)

RUY GARDNIER

Mercedes vai do céu ao inferno. De segunda a sábado, ela é dançarina e acompanhante do clube noturno que dá título ao filme, Salón México. Aos domingos, ela vai visitar a irmã menor num colégio interno de elite. De segunda a sábado, o arquétipo da puta, o comércio, a carne. No domingo, o arquétipo da mãe, o sentimento puro, a alma. Mas uma não pode viver sem a outra: para pagar a escola que formará Beatriz, Mercedes precisa se sacrificar no lodo, convivendo entre escroques, roubando, conseguindo dinheiro às custas da honra. Santa Entre Demônios, portanto, é também um título apropriado, porque expõe os dois extremos binários da salvação e da perdição.

Salón México (1949) pertence à exuberante série de melodramas dos anos 40 e 50 dirigidos e roteirizados por Emilio “El Indio” Fernández e fotografados em modo expressionista por Gabriel Figueroa, como Maria Candelária (1944), Manchada pelo Destino (1949) ou Vítimas do Pecado (1951). Passado quase inteiramente à noite, Santa
Entre Demônios não conta com os majestosos planos de céu de Figueroa, mas para compensar bastam os planos pouco iluminados em que as luzes dos anúncios luminosos alteram a visibilidade do espaço cênico, como se o pleno de luz, a graça divina, se oferecesse brevemente aos personagens mas eles fossem incapazes de capturá-la. Como em todo melodrama, a base está no antagonismo entre uma ligação sentimental genuína e todo o resto da sociedade, vil, canalha, pragmática e egoísta que tenta destruir essa união.

O gesto de bondade expõe a falta de amor no mundo, então é preciso eliminá-lo. Fernández acrescenta a essa receita temperos latinos e cristãos de salvação e perdição, honra familiar e sacrifício. Mercedes é a mãe que só pode tornar-se mãe virando puta, é aquela que faz o sacrifício e nem sequer pode revelar à irmã, nem a ninguém, que se sacrifica. Não à toa, a escada que leva à sua casa depauperada é filmada como um caminho à ascensão divina, enquanto as escadas do hotel em que Mercedes rouba um dinheiro que de direito é dela são filmados de baixo para cima em sentidos opostos, gerando formas diagonais que sugerem um labirinto (por extensão, o
inferno).

Entre Mercedes e Beatriz, há os homens. Primeiro Paco, o cafetão e bandido que toma todo o dinheiro do prêmio da dança com Mercedes, depois espanca-a em duas ocasiões. Depois Lupe, o policial viúvo que se apercebe do roubo de Mercedes, mas em seguida descobre que ela usa todo dinheiro que ganha para pagar a escola da irmã, e não só a perdoa como apaixona-se por ela. Por fim há Roberto, tenente piloto do México recém voltado de combates contra o Japão na Segunda Guerra, que o deixaram manco. Ele é filho da diretora da escola, conhece Beatriz e quer casar-se com ela. Se Paco é o representante da sordidez habitual do Salón México, pura carnalidade e oportunismo, Lupe e Roberto parecem representar opções espirituais, ambos concebendo o amor como o reconhecimento de gestos belos, espirituais.

A simbologia é evidente: Mercedes ascende ao Céu quando vai para casa, Roberto vive nele quando pilota. Casar Beatriz com ele é garantir a salvação da irmã. Mas ao mesmo tempo ninguém pode saber como a mulher ganha a vida e sustenta a escola da irmã. Assim como Mercedes, Lupe vive entre o céu e o inferno, homem justo mas mediano, monástico depois da morte da esposa: um ser em busca de redenção que descobre que ela é possível quando se está ao lado de uma santa.

Mas é claro que ninguém chama seu filme de Salón México sem querer fazer uma reflexão sobre o país. A partir de Maria Candelária, Fernández foi o verdadeiro inventor do “tipicamente mexicano” em termos de imagem cinematográfica, filmando céus, vegetação, paisagens e os povos autóctones. Profundamente ligado ao caldo cultural, “El Indio” preenche seu filme de números musicais de ritmos populares, canto e dança. Há também
uma visita das duas irmãs ao Museu Nacional, e elas são filmadas em salas com peças arqueológicas possivelmente aztecas. E, claro, há uma festa de celebração do Grito de Independência numa praça pública lotada.

O México de Emilio Fernández, então, está entre as grandezas dos povos passados, na grandeza do heroísmo dos que lutam na guerra e do heroísmo da mãe que se sacrifica para criar a filha (ouvem-se os barulhos dos aviões exatamente na hora em que Beatriz discursa sobre heroísmo materno em sua chamada oral), no poder edificante do ensino, mas essas são as exceções diante do mundo de vícios e caráter duvidoso da casa noturna que dá nome ao filme. Esse México, subdesenvolvido, lascivo, do lúmpen de vida noturna representado por Paco, ou do empresário dono do clube, que parece apenas um Paco que deu certo, é o verdadeiro desafio que o país deve enfrentar. Contra o salón, a escola.

Mas, além de qualquer coisa, Santa Entre Demônios é de um júbilo visual impressionante, com Figueroa explorando sombras, silhuetas, cintilações, iluminações noturnas e Fernández ritmando imagens de intensa fluidez, filmando o corpo para achar a alma. No fim das contas, o que ele acha é a beleza.


Ruy Gardnier

A Cinemateca do MAM é patrocinada pela Samambaia Filantropias.

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