Seis notas sobre A Terra Queima

RAUL ARTHUSO

1. A Terra Queima faz o trajeto inverso de Viramundo, provavelmente o mais conhecido documentário de Geraldo Sarno: começa na religião e termina no retrato da pobreza extrema, passando no caminho pela seca, as questões da propriedade da terra que ocasionam o êxodo rural e a migração. São temas, portanto, já abordados por Sarno que aqui ganham outro tratamento e figuração.

2. Geraldo Sarno foi um dos mais fiéis “paladinos” do interesse do Cinema Novo pelo retrato da realidade nacional e suas mazelas, especialmente no espaço privilegiado do “atraso” nacional: o sertão. A vida nordestina e suas personagens sempre estiveram no imaginário de Sarno ao longo da carreira, mesmo em suas incursões ficcionais como Coronel Delmiro Gouveia e Sertânia, seu último filme. Enquanto, o núcleo duro do CN voltava seus olhares para a classe média e o espaço urbano na segunda metade da década de 1960, ou faziam a guinada para a estruturação de um cinema mais economicamente viável nos anos 1970, Sarno continuou investigando o atraso do interior brasileiro, suas consequências gerais para a vida nacional e quais eram as formas de luta.

3. Em A Terra Queima, esses ingredientes se encontram todos em diferentes medidas numa narrativa que tenta abarcar diversos detalhes e descrever um certo estado da questão da pobreza a partir da condição causada pela seca prolongada de cinco anos no sertão nordestino. Nesse sentido, o filme realmente não consegue esconder seu modelo de produção, já que se trata de um documentário para a TV pública canadense com patrocínio da ONU. A narração costura com dados e descrições de contextos de fundo sociológico as imagens que vão transitando atrás de personagens e situações. Enquanto Viramundo parece se mover no mesmo lugar, recolhendo personagens que chegam como que a abraçar suas histórias para construir o retrato dos migrantes e sua relação com a religião, a câmera de A Terra Queima transita por espaços emulando movimentações e percorrendo os espaços com o mesmo nomadismo que busca mostrar ao espectador (estrangeiro).

4. Muito da irregularidade do filme vem desse desejo de mobilidade e da variação de temas para dar conta da composição do quadro social. Cada sessão do filme dura alguns minutos, uma ou duas cenas e, em geral, um depoimento apenas. A abertura, numa grande festa religiosa que mistura catolicismo, culto de matriz africana e carnaval, ilustra o sincretismo religioso. Após cumprir essa função, passamos ao próximo movimento que guarda pouca relação com o anterior a não ser na construção de um grande painel. Há, assim, momentos fortes, como a primeira cena em frente à catedral mostrando a festa religiosa ou a reunião de camponeses ao pé de uma árvore, onde discutem formas de subsistência e luta contra a opressão do grande latifúndio. Por outro lado, Sarno erra a mão não pouca vezes, abusando da exploração da pobreza em momentos vazios – penso principalmente na cena do caminhão-pipa e quando o cineasta aborda uma família migrante na beira da estrada – ou num sentimentalismo chocante. Nesse ponto, chama a atenção quando o documentário aborda a morte de crianças por inanição, mostrando um hospital com diversos pequenos corpos raquíticos, com olhar perdido, numa figuração que lembra certas imagens dos corpos dos campos de concentração mostrados em Noite e Neblina, de Alain Resnais. A associação em si não tem nada de mais. As imagens desses corpos, ainda mais se tratando de crianças, mostrados tão diretamente, é impactante, não fosse a sequência terminar com um enterro de uma criança, com música de forte teor emotivo, que não apenas dilui a força das imagens até ali como coloca a sequência num registro exploratório muito parecido com o que corriqueiramente faz o jornalismo. O malogro do filme está em querer apresentar a seca, a luta camponesa, o sincretismo religioso, a migração, a luta indígena por demarcação de terra, o descaso governamental e a mendicância urbana no mesmo fio, como se fosse possível dar conta de um país em pouco menos de uma hora.

5. Acredito que Cineastas e Imagens do Povo, trabalho central na obra do crítico Jean-Claude Bernardet, tenha colocado Geraldo Sarno num lugar parcialmente injusto. Viramundo é tomado no livro como exemplo do que Bernardet chama de “modelo sociológico”. Nele, a despeito de mostrar a realidade social do povo e procurar aderir a seus anseios, o documentarista impõe sua voz como portador de um mandato para falar em nome dos pobres que aparecem apenas para ilustrar os dados que o cineasta traz de antemão. Aqui em A Terra Queima o modelo é parecido, mas é curioso pensar as diferenças. Os dados estatísticos parecem mais descolados da tessitura das imagens e das entrevistas. Os relatos são filmados em situações cujo controle do cineasta é menor. As perguntas e intervenções de Sarno não foram retiradas na montagem, mesmo quando sua pergunta é um pouco ridícula, como no momento que o documentarista pergunta a um sertanejo se ele acredita que Deus vai realmente fazer alguma coisa por ele. Sarno aqui se entrega um pouco mais às arestas e se aproxima, mesmo de forma tímida, do filme de conversa, inescapável depois do turbilhão transformador do documentário brasileiro chamado Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, lançado no mesmo 1984 de A Terra Queima.

6.  O filme de Geraldo Sarno serviu em Cineastas e Imagens do Povo como metonímia de uma atitude que Bernardet critica nos cinemanovistas desde Brasil em Tempo de Cinema, quando quer demonstrar que o Cinema Novo é um movimento de classe média urbana intelectual, apesar dos anseios de fazer um cinema popular. Assim como essa redução da questão do Cinema Novo, Bernardet reduz também Viramundo. Ele perde a dimensão catártica da parte final do filme, quando a viração religiosa toma conta das imagens com uma energia que deve ter ultrapassado as próprias intenções de Geraldo Sarno. É o plano de grupos de pessoas que Sarno parece dominar com desenvoltura, captando a energia desse encontro entre as pessoas num espaço e a câmera. Esses são os grandes momentos de A Terra Queima: a festa religiosa que abre o filme, a reunião ao pé da árvore dos camponeses, o ritual dos indígenas Pankararé. Os desfiles, as reuniões, as danças coletivas… Esses são o verdadeiro interesse da câmera de Sarno e o investimento de encontro entre mundo e cineasta nessas situações, uma das forças de seu cinema, como se a dimensão coletiva e suas catarses tivessem um poder que o cineasta não encontra na ação individual e ideias pessoais. É por isso que A Terra Queima oscila tanto, pois entrevistas e abordagens do documentarista com os sujeitos são apagados perto dos momentos em que o espaço está tomado por multidões, coletivos e seus rituais. A dimensão de povo, seu espaço e ocupação são o interesse e a força do cinema de Geraldo Sarno, mais do que qualquer definição amorfa, social ou afetiva, que essa palavra perigosa – e central para o cinema brasileiro moderno – possa ter.

Raul Arthuso é crítico de cinema e pesquisador.

_

Informações
[email protected]



Acessibilidade | Fale conosco | Imprensa | Mapa do Site