Viramundo, o retrato detalhado de um Brasil em transição

CHICO FIREMAN


Numa cinematografia que tanto retratou o nordestino, talvez não seja tão fácil reconhecer o pioneirismo de Viramundo, um filme sobre idas e vindas. Foi preciso que seu diretor, o baiano Geraldo Sarno, viesse para São Paulo para que o êxodo do nordestino para os grandes centros finalmente ganhasse um tratamento sério, quase analítico, no cinema nacional. O média-metragem de 37 minutos, pedra fundamental para toda uma linhagem do documentário brasileiro, começa com o registro da chegada dos migrantes que fogem da seca e termina com o retorno frustrado de um deles a sua cidade natal. Um ciclo completo que o cineasta preenche com os movimentos que esse homem, que viaja em busca de uma nova chance na vida, realiza para tentar se encaixar ao sistema que move a maior cidade do país.

Para um diretor tão jovem – Sarno não tinha nem 30 anos quando dirigiu o filme –, é impressionante como Viramundo consegue abordar diversos aspectos ligados às causas e consequências da diáspora nordestina e, principalmente, como é capaz de relacioná-los para produzir um discurso. Neste poucos minutos, fala da fome e da pobreza como molas mestras do processo de desenraizamento dos migrantes, que culmina com a consciência, explicitada por um dos entrevistados, de que é preciso apagar as relações com sua origem para se reconstruir neste novo lugar. Trata também do próprio mecanismo do sistema industrial, que absorve esse migrante sem qualificação para pagar menos a ele, e depois o dispensa justamente pela falta de qualificação, análise feita por um agente deste mesmo sistema. O média é especialmente certeiro em mostrar o sentimento de não-pertencimento do nordestino, que nunca se vê plenamente acolhido na nova cidade, inclusive financeiramente.

O filme faz parte de um pacote de quatro documentários essenciais para o cinema nacional, que foram compilados no longa Brasil Verdade e surgiram como o ponto de partida da Caravana Farkas. Produzidos pelo fotógrafo e documentarista Thomas Farkas, as obras tratam de questões fundamentais à identidade brasileira, o carnaval (Nossa Escola de Samba), o futebol (Subterrâneos do Futebol), o sertão (Memórias do Cangaço) e a migração (Viramundo). Embora todos sejam detalhados estudos sobre os aspectos que abordam, o filme de Sarno chama mais atenção porque, com o passar dos anos, talvez tenha se tornado o mais apurado retrato de um Brasil em fase de transição, do campo para a cidade, do manual para o industrial, um período que foi o estopim dos conflitos sociais que culminariam com a ascensão dos militares ao poder. É particularmente impressionante como, 60 anos atrás, o filme já era premonitório ao registrar o crescimento das religiões neopentencostais que surgem (e se fortalecem) nesse cenário de instabilidade social.

Sarno realiza isso tudo sob o modelo do Cinema Direto, que ditava as normas do documentário na época, em que o conceito era o simples registro da realidade como forma de se atingir a “verdade” mais exata. Isso está contemplado na maneira como os entrevistados falam diretamente para câmera, sem intervenções aparentes, como se fossem meros objetos de estudo para o diretor. O formato imediatamente conecta o cinema visto em Viramundo a um cinema feito no resto do planeta, mas Sarno tem ambições maiores para seu pequeno filme. A partir do momento em que contrapõe entrevistas que se completam e se alimentam, esse filme de estreia do diretor baiano carrega suas imagens com um discurso complexo, que analisa personagens, elementos e contextos, e elabora um retrato detalhado de uma realidade tipicamente brasileira.

Chico Fireman é jornalista e crítico de cinema.

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