O cérebro (e a caminhada) de Guido Anselmi

Vista da exposição. Foto Drica Oliveira.

Texto curatorial

Havia na origem uma pretensão embutida no ato fotográfico, qual seja a de instituir uma estase completa do mundo. Congelar em imagens o fluxo das coisas e dos acontecimentos, tendo atributos, propriedades, sentidos e personalidades capturados tanto quanto a “alma” do momento e de forma mais ampla o Zeitgeist, um amálgama de movimento e “espírito” da época ou do tempo vivido por trás do simples ato, gesto, situação. Desnudar o mundo em seus interstícios parecia a melhor forma de compreendê-lo de imediato. Ao olhar, mais do que intuir, conhecer de fato, por completo.

Às incompletudes que foram se apresentando na relação com as fotografias (e outras formas de imagens “fixas” indiciais), sobrevieram algumas soluções como a potencialização estética, a serialização documental obsessiva e a adição artificial do movimento, esta chamada nos primórdios de vistas animadas, fotodrama ou, na designação final, cinema. O mundo não se contentou com a sugestão benjaminiana de que fotografias são simplesmente um ponto de partida (e não de chegada) na relação com os mortos. São uma evocação, e não uma explicação.

Insistindo nas verdades, na proposição psicanalítica, surgida também no fim do século XIX, as superfícies visuais, como qualquer manifestação artística, teriam debaixo de si camadas mais recônditas. Seria preciso recolher e interpretar os sinais, ou sintomas, ou signos, que dessem acesso ao impulso, desejo ou pensamento original, que revelassem o mistério da existência de cada um de nós. As imagens viraram matéria-prima para a tentativa de compreensão dos momentos vividos.

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O conjunto de fotografias do filme cinematográfico 8 ½, obra-prima de Federico Fellini (1920-1993) rodada de 8 de maio a 14 de outubro de 1962 e lançada em 16 de fevereiro de 1963, selecionado para esta exposição comemorativa do centenário de nascimento do cineasta italiano de um total de 2.200 negativos, enfoca os bastidores de filmagem dessa produção. Tanto as circunstâncias peculiares da realização, quanto o volume de imagens e a documentação mais atenta do processo de filmagem são atípicas mesmo para um cineasta que vinha se consolidando como “único”. Em uma trajetória recente marcada por premiações importantes como a Palma de Ouro por A Doce Vida (1960) e por uma filmografia memorialística, 8 ½ surge de início como um retrato expandido de um momento de crise pessoal, por conta da dificuldade em encaminhar um novo filme, e do mundo, devido à crise dos mísseis nucleares instalados em Cuba. A paralisia criativa leva Fellini a entrar em contato mais profundo com a psicanálise junguiana, o que lhe proporciona a adoção sistemática de um diário escrito e desenhado de sonhos, fonte de uma imagística personalíssima que alimentará o resto de sua carreira. O mergulho subjetivo se metamorfoseia em mais um alterego, dessa vez o do cineasta Guido Anselmi, cuja consciência/inconsciência forma a matéria-prima do que se vê e ouve ao longo do filme. Mas, longe de ser um mero delírio casual ou uma narrativa cifrada do Id, 8 ½ é o ingresso definitivo de Fellini no cinema moderno, uma turning point em torno do fazer cinematográfico não convencional, moldada por experimentações técnicas como o quadro esférico (a nascente proporção 1.85:1) e rigor de realização nos diferentes setores da produção de que nos dá conta justamente o presente conjunto de fotografias.Nada de fluxo de consciência, autoficção, mockumentary, memória afetiva, sonhos e pesadelos, inconsciente. Algo além.

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Toda sala de exibição clássica tem um quê de caverna de Platão, funcionando ora como sombra pálida do mundo, ora como intérprete luminosa da realidade mais insípida. Na sugestão do teórico do cinema Hugo Munsterberg também metaforiza as funções cerebrais mais nobres. E a sugestão psicanalítica do inconsciente certamente encontra eco quando mergulhamos na escuridão mais profunda, guiados apenas pelo jogo de luzes e sombras e pelos sons do mundo.

Quando Fellini comissionou de forma inesperada o fotógrafo francês de still Paul Ronald, na única vez em toda a sua carreira em que não trabalhou conscientemente com seu colaborador habitual para a função, o italiano Pierluigi, certamente não buscava apenas o registro de cenas para a divulgação do filme e de suas estrelas. Muito antes da cultura do “making-of” desvelar todo o processo de realização de um filme para o grande público, não era comum documentar os bastidores em busca de algo mais do que o anedótico ou o espetacular. O interesse de Ronald pelas esperas, impasses, escolhas, conflitos e casualidades, enfim pela vida escorrendo em um set de filmagem, tem a ver com sua formação no novo cinema franco-italiano que emergiu no pós-Segunda Guerra Mundial, mais focado no cotidiano e no humano. Seu estilo visual, porém, estava longe dos novos realismos, pautando-se mais na escola do chiaroscuro de seu mestre Aldo (Aldo Graziati, mais tarde o afamado diretor de fotografia G. R. Aldo). Fellini buscava um olhar fresco e suficientemente artístico para revelar o que ele mesmo não sabia da opção que tomara com o novo filme. Se o cinema, como dizia, era quadros (pinturas) em movimento, talvez poses congeladas lhe trouxessem alguma luz em meio à grande crise de sua vida. Famoso, premiadíssimo, acusado (sem o ser) de mulherengo, rodeado de um estonteante novo cinema internacional, como ir além de si mesmo?

Hernani Heffner
curador

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A Itália legou e tem legado ao mundo uma contribuição cultural e artística de grande valor. No campo do cinema não tem sido diferente desde a formação da grande indústria cinematográfica italiana no começo do século XX. Os filmes Históricos e o Divismo silenciosos, o Neo-Realismo, a Commedia all’Italiana, o Nuovo Cinema, os Gialli, Westerns-Spaghetti e Pepla, a Nova Comédia, todos os grandes momentos da cinematografia italiana revelaram nomes fundamentais como Pastrone, Rossellini, De Sica, Zurlini, Monicelli, Pasolini, Risi, Antonioni, Argento, Scolla, Bava, Leone, Corbucci, Moretti, os Taviani, Sorrentino. Mas, para além do talento e da contribuição artística de cada um desses e de outros cineastas e técnicos, um nome paira acima de todos como sinônimo absoluto de cinema italiano e de cinema no geral: Federico Fellini. O mestre de Rimini, que adotou Roma como sua morada definitiva, passou à história não só por sua capacidade de invenção cinematográfica, mas também por todo um mundo de imagens, personagens, cenários e mesmo atmosferas que passaram a ser chamadas simplesmente de fellinianas, tal o impacto que sua filmografia vem tendo nas artes e na cultura. Ter se tornado um vocábulo cotidiano é a real medida da importância de sua obra no mundo inteiro, criação multidimensional e multinivelada que neste ano, por ocasião do Centenário do seu nascimento, a Itália, através de sua rede diplomática e cultural no exterior, pretende celebrar.

A presente exposição O cérebro (e a caminhada) de Guido Anselmi, realizada pelo Instituto Italiano de Cultura do Rio de Janeiro e pelo Museu de Arte Moderna, utiliza parte das imagens originalmente selecionadas para a exposição “8 ½ di Federico Fellini nelle fotografie inedite di Paul Ronald”, apresentada em 2019 na Galleria delle Immagini de Rimini (Emilia-Romanha, Itália) com curadoria de Antonio Maraldi e organização do Comune e da Cineteca de Rimini. As fotografias integram a Coleção Antonio Maraldi de fotografie di scena do clássico felliniano 8 ½. Da mesma coleção foram selecionadas outras imagens não utilizadas na exposição original. Uma nova museografia e curadoria foram desenvolvidas pelo MAM Rio, permitindo o acesso a um conjunto inédito, apresentado em primeira mão fora da terra natal do cineasta e destinado ao final a compor o acervo do Museu Fellini, a ser aberto em dezembro de 2020 em Rimini.

O diferencial deste acervo repousa na autoria das imagens, a cargo do fotógrafo de cena Paul Ronald (1924-2015), especialmente contratado por Fellini para esta função na produção de 8 ½. A escolha é significativa pois o cineasta vinha de um grande sucesso com La Dolce Vita, que devia muito ao trabalho de Tazio Secchiaroli (1925-1998), inspirador de várias seqüências do filme e da própria figura do paparazzo, termo criado por Fellini para homenageá-lo. Secchiaroli também era o fotógrafo oficial dos estúdios Cinecittà e nessa condição também registrava os filmes de Fellini, tendo produzido imagens para La Dolce Vita (1960), 8 ½ (1963) e Giulietta degli Spiriti (1965), entre outros. O fotógrafo de cena habitual de Fellini até o final da carreira foi Pierluigi Praturlon (1924-1999). Mesmo um e outro tendo produzidos fotografias famosas e icônicas das filmagens de A Doce Vida, e que acabaram se tornando símbolos do cinema italiano e dos anos 1960, como o banho de Anita Ekberg na Fontana di Trevi, Fellini buscou um outro nome para o registro das filmagens e dos stills de 8 ½. Ao glamour de Praturlone e ao sentido de reportagem de Secchiaroli, ambos interessados mais nos vibrantes bastidores do que no processo de trabalho, optou pelo terceiro grande nome da fotografia de cena italiana da época. Como decano, Ronald poderia ser considerado mais clássico, o que significava preocupado com a beleza intrínseca das imagens e com uma investigação do processo de criação artística, o que pode ser conferido na exposição, corroborando a sensibilidade felliniana para um projeto tão diferenciado como 8 ½.

Convidamos o público a vivenciar a intrigante caminhada sugerida pelo curador, mergulhando no universo e na mente de Fellini, e a celebrar o seu Centenário com toda a pompa e circunstância, como o mestre desejaria certamente!

Livia Raponi
Diretora do Instituto Italiano de Cultura do Rio de Janeiro

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exposição: 18 jan – 15 mar 2020

Curadoria Hernani Heffner
Lei de Incentivo à Cultura
Co-realização: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Embaixada da Itália no Brasil, Consulado Geral da Itália no Rio de Janeiro, Instituto Italiano de Cultura do Rio de Janeiro, Vivere All´Italiana, Fellini 100 Rimini 1920 2020, Regione Emilia-Romagna, Regione Emilia-Romagna Cultura D’Europa, Centro Cinema Cittá di Cesena
Mantenedores do MAM Rio: Itaú, Ternium e Petrobras
Realização: Secretaria Especial da Cultura, Ministério da Cidadania, Governo Federal



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