Homenagem a Michael Snow

por Theo Duarte

Wavelength, de Michael Snow. Canadá/EUA, 1967.

Pianista de jazz autodidata e artista plástico de formação, o canadense Michael Snow (1928-2023) dedicou-se desde os anos 1950 a distintos meios como a pintura, fotografia, escultura, música, holografia, instalação sonora, livro-objeto e performance. Explorou a fundo as propriedades técnicas e formais tidas como irredutíveis desses meios, inter-relacionando-as e buscando expandir o alcance de suas possibilidades, frequentemente por estratégias de direcionamento da atenção e demais recursos que visavam diretamente os próprios processos perceptuais do observador na interação com a obra.

Apesar da versatilidade de sua atuação, Snow é mais conhecido por seu trabalho em um único meio, o cinema. Mais exatamente por um filme que, segundo Snow, seria a soma de todas as suas ideias estéticas postas em prática em diferentes meios: Wavelength (“Comprimento de onda”, 1967). Desde a sua primeira exibição, foi considerado um divisor de águas para o cinema de vanguarda, sendo depois reconhecido como obra mais significativa de tendência cinematográfica denominada como estrutural. Sua influência extrapolou o restrito campo do cinema experimental, indicando inovações absorvidas na música, escultura, instalações e até mesmo no cinema industrial.

O filme consiste em um lento zoom in quase sempre contínuo que leva 45 minutos para ir do plano geral de uma sala ampla até um ponto específico entre as janelas da parede, o qual podemos intuir como destino final já no primeiro terço do filme. A maquínica redução do campo visual na trajetória do zoom não é afetada por quatro esparsos eventos humanos que ocorrem na sala. Na banda sonora, o registro sincrônico desses eventos se mescla a partir de certo momento a um zumbido eletrônico, criado por um gerador de ondas senoidais, que varia lentamente do ruído mais grave ao mais agudo, em tensão crescente similar àquela produzida pelo regular zoom in.

O espectador, na expectativa do que pode acontecer em cena e do desfecho, é conduzido em Wavelength de modo similar a um filme de suspense. Mas em razão da rarefeita atividade dramática e proeminência dada aos aspectos formais, é convocado a responder ao filme de outros modos, como por exemplo, atentando-se ao próprio prolongamento temporal contínuo do zoom. Nesse sentido, pela memória dos regulares enquadramentos pregressos e expectativa de sucessiva diminuição na trajetória do zoom até o destino final antevisto, o espectador poderia configurar ativamente um “objeto” espaço-temporal, uma espécie de “escultura mental de forma derivada-da-memória”, como queria Snow1. No caso, uma escultura processual no formato de uma pirâmide, análogo aquele do feixe de luz da projeção cinematográfica. A integralidade desse formato não seria abalado pelos breves flashbacks, antecipações e sobreposições que ocorrem no filme e eventualmente marcam fixos estágios da trajetória progressiva do zoom.

Outros eventos formais vão perturbar a apreensão estável do filme. O espaço da sala apresentado inicialmente – um espaço “realista” ilusoriamente tridimensional, estruturado pelos princípios da perspectiva linear – é desestabilizado pela própria redução contínua do campo visual, que provoca uma impressão de achatamento espacial. Além disso, irrompem cintilações de cores que parecem ter lugar na própria superfície material do filme. Há então uma intensa variação luminosa, cromática, de textura e de granulação permitidas pela diferença entre as qualidades dos rolos de filme (alguns deles vencidos), pelo uso de filmes para externas em um ambiente fechado, pelo uso de filtros coloridos (gel e plásticos colocados em frente da lente), pela reversão para o negativo ou positivo, pelas breves inserções de monocromos, pelos ajustes de exposição à luz, e pela eventual abertura aos clarões de luz e outros efeitos que ora saturam, ora empalidecem as cores; ora intensificam a vibração, ora “lavam” a luz. Nessa variação, os atributos sensórios dos objetos e do próprio cenário parecem realçados; uma simples cadeira amarela no centro do quadro, por exemplo, atrai continuamente nosso olhar por seu brilho intenso e contraste cromático com os demais elementos. 

Essa rica gama de variações plásticas, produzidas de forma alternada e lúdica, com distintos valores perceptuais e significativos, são assim transformados nos principais componentes estéticos a serem apreciados pelos espectadores. Esses são motivados assim a examinar as propriedades sensuais do filme do mesmo modo como lidamos tipicamente com os objetos das artes visuais. Secundariamente, essas operações chamam atenção à materialidade e planaridade do suporte, em oposição anti-ilusionista com o espaço de representação tridimensional.

A representação fotográfica, no entanto, não é anulada por essas variações luminosas. Há no filme uma tensão dinâmica e persistente entre duas propriedades da imagem cinematográfica; tensão entre esses aspectos que têm lugar na superfície material do filme, que talvez pudéssemos considerar como abstratos, e aqueles relativos à representação figurativa do cenário, dos objetos e atores vistos no espaço ilusório. Essa tensão dinâmica, que provoca a percepção flutuante do espectador entre esses dois polos, se intensifica ao longo do filme até atingir seu ápice no segmento final. Nesse momento, o zoom alcança em um salto no tempo o seu destino antevisto, uma fotografia de ondas do mar colada na parede. Representação em movimento e em profundidade de um registro fixo, em suporte plano, do movimento contínuo representado em um espaço ilusoriamente tridimensional. O contínuo zumbido eletrônico, que no decurso do filme reforçava o polo abstrato, se transforma em seu estágio mais agudo, por um feliz acidente, no som de uma sirene – até atingir uma frequência inaudível. A fotografia, imagem e símbolo das invisíveis ondas sonoras e luminosas que nos conduziram na travessia da sala, pode então desaparecer.

Embora aparentemente reduzido a um único procedimento determinante, interpretado de modo convincente como metáfora das mais distintas ordens, Wavelength possui uma multiplicidade de outros aspectos significativos “cosmicamente equivalentes”2 que escapam à descrição completa. Mas que possibilitam uma experiência surpreendente e sempre renovada a quem se dispuser a flutuar em suas ondas.

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1 Michael Snow. Moving images – Scene one: Cinema (Film). In: Gloria Moure (org.) Michael Snow – Sequences – A history of his art. Barcelona: Ediciones Polígrafa, 2015. p. 123.
2 Michael Snow. A Statement on Wavelength for the Experimental Film Festival of Knokke-le-Zoute. [1967]. In: The Collected Writings of Michael Snow. Waterloo: Wilfrid Laurier University Press, 1994. p. 40.

Texto sobre o filme Wavelength, da mostra Homenagem a Michael Snow, que integra a programação do mês de março.





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