Em torno de Hélio Oiticica

Mostra com 9 filmes do artista, outros sobre ele e sua obra, e outros ainda sobre assuntos importantes de seu universo cultural

HERNANI HEFFNER

Acompanhando a exposição Hélio Oiticica: a dança na minha experiência, que será aberta em 12 de dezembro no MAM Rio, a Cinemateca apresenta a mostra de filmes “Em torno de Hélio Oiticica”. A ideia da mostra é desenvolver uma genealogia de aproximação e de formação quanto à relação do artista com as imagens em movimento.

A relação do artista com o cinema abarca três vertentes. Uma delas é a forma espetáculo, que leva Oiticica a participar de filmes em 35mm para sala de cinema. A segunda é o Super 8, por sua acessibilidade econômica e técnica de registro, montagem e projeção, ainda tradicionais. E a terceira vertente, que surge com COSMOCOCAS, em que o artista rejeita a película tradicional e a projeção em sala de cinema, denominada de Quasi-cinema. Quasi teria o sentido de “ao lado”, significando um outro tipo de cinema. 

Na vertente espetáculo, a mostra recupera os primeiros contatos de Oiticica com a comunidade cinematográfica e exibe “Câncer”, de Glauber Rocha, filmado no apartamento carioca do artista. 

Na segunda vertente, as fricções com a pintura, a literatura, o cinema e a televisão canônicos são expressas em filmes Super 8 como “Agripina é Roma-Manhattan” e “TV Shots“. 

Na terceira vertente, ocorre o rompimento com a forma espetáculo, marcada pela parceria com Neville Dalmeida (que na época assinava D’Almeida). Nessa época, há o desenvolvimento do não narrativo e a reconfiguração do aparato nos Quasi-cinema e seu caráter preponderante de instalação. Essa trajetória complexa não merece ser reduzida a uma simples rejeição da experiência do cinema tradicional.

Por essa razão, a mostra traz as primeiras experiências fílmicas de Jack Smith, referência estética fundamental e frequentador do Loft#4, residência de Oiticica em Nova York no início dos anos 1970. 

A descoberta do experimentalismo com as imagens em movimento, ocorreu em Londres, quando Oiticica frequentou as incomuns sessões no Arts Lab (a projeção podia ocorrer do teto para o chão, por exemplo). Em carta, Oiticica indica um ponto de virada em sua relação com o cinema:

“Aqui em Londres vi, depois, ‘Chelsea Girls’ do Warhol, o que me influenciou quanto a adotar cinema em minhas experiências; o filme é o mais genial que já vi, e Warhol criou mesmo uma linguagem-cinema” (Arquivo HO 1798.69)

Nos Estados Unidos, em 1971, Hélio faz um curso de produção cinematográfica na Universidade de Nova York e compra os equipamentos em bitola Super 8. “Battery Park”, “Cosmococa”, “Fillmore East”, “Haffer’s Office”, são outros filmes em Super 8 de Oiticica que serão exibidos.

A mostra traz ainda registros da presença de Hélio Oiticica em eventos artísticos e culturais, como os curtas “Apocalipopótese” e “Arte pública”, e em produções de amigos, como um documentário compreensivo sobre sua trajetória dirigido por seu sobrinho César Oiticica Filho, alguns ensaios fílmicos sobre sua poética, como “Héliophonia”, de Marcos Bonisson, e o diálogo de sua imagística e estilística com as de Warhol, com “Chelsea Girls”, feito por Warhol com Paul Morrissey, e os últimos Super 8 de Oiticica, “Igreja Notre Dame” e “Teresa Jordão” .

A formulação de um cinema expandido aparece no roteiro de um filme não realizado, “Nitrobenzel & Black Linoleum”. A mostra procura recuperar esse projeto com o lançamento do Cine Palavra, série que pretende materializar a potência audiovisual e dramática presente em roteiros não filmados de grandes artistas brasileiros e estrangeiros, através da leitura dramatizada do texto por artistas convidados.

Para esta primeira edição, que será realizada no início de 2021 em data a ser divulgada, os roteiros selecionados se relacionam com a formulação da ideia de cinema buscada por Hélio Oiticica. O primeiro é fruto da passagem de Jack Smith pelo Rio de Janeiro, durante o carnaval de 1966, e que resultou em Carnival em Lobsterland, peça que revelou talvez de forma inaugural a mecânica interna de criação do cinema. O segundo roteiro consagra a primeira incursão acabada de Oiticica na tentativa de realizar “Nitrobenzel & Black Linoleum”, que seria um filme-performance-acontecimento projetado para ter 220 minutos de duração.

A mostra procura ampliar a compreensão dos vários caminhos e resultados alcançados pelo envolvimento de Hélio Oiticica com o cinema. Chama atenção para pontos pouco explorados em seus desdobramentos e possibilidades, como o contexto mais amplo de experimentação na cidade de Nova York na segunda metade dos anos 1960. Esse aspecto pode ser observado no longa “Cartas a Paul Morrissey”, de Armand Rovira e Saida Benzal. Morrissey trabalhava com Warhol na Factory e foi o grande motor da cena fílmica underground local. O filme terá sua pré-estréia brasileira na mostra.

Procura-se fugir assim, de um lado, de uma certa leitura que enfatiza a ideia de uma produção que rompe completamente com o padrão institucionalizado do cinema, sobretudo quanto ao dispositivo e uso empregados, quando na mostra pode-se perceber que a “condição” fílmica permanece em grande medida e os elementos de composição remetem e dialogam até mesmo com as formas e referências canônicas, seja o filme noir ou uma Marilyn Monroe, traindo a exposição do artista em grande medida a uma certa ideia de cinema, associada a Hollywood.

Hélio Oiticica foi contemporâneo das primeiras experiências que forjaram o conceito de cinema expandido, hoje plenamente aceito para dar conta do cruzamento artístico de materiais, formatos e formas de apresentação, apresentado por Gene Youngblood em livro de 1970. Curiosamente, não explorou a videoarte nem o cinema em 16mm. Oiticica foi contemporâneo também da abertura do Anthology Film Archives, criado no mesmo ano por um grupo liderado pelo cineasta Jonas Mekas, e localizado no bairro de East Village, onde Hélio foi morar no ano seguinte.

O Anthology foi a principal instituição a difundir e consolidar uma cena local e mesmo mundial para o filme experimental, de vanguarda, expandido, multimídia ou simplesmente não-padronizado. Sua obra fílmica guarda pontos de contato e especificidades frente a esse movimento mais geral da época.

HERNANI HEFFNER é gerente da Cinemateca do MAM Rio.


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