50 anos dos Domingos da Criação

DOMI VALANSI E MÁRION STRECKER

Em 1971, há exatos 50 anos, no auge da ditadura militar, o crítico e curador Frederico Morais, que na época era o coordenador de cursos do MAM Rio, organizou seis edições dos Domingos da Criação. Desde 1969, ele já vinha desenvolvendo no Bloco Escola do MAM práticas educativas que cada vez menos se baseavam em ensino de técnicas específicas. Sua noção de ateliê passou a ser qualquer local onde se reunissem professores e alunos, e a técnica deveria se adequar aos materiais disponíveis.

Olhar para essas manifestações nos dias de hoje é importante para se pensar sobre criatividade, a liberdade de expressão, a construção coletiva e o museu como catalisador dessas manifestações. O que mudou nos últimos 50 anos na arte e na educação e o que ainda podemos aprender com os Domingos?

Domingos da Criação, 1971. Fotografia: Autor não identificado. Acervo MAM Rio.

Domingos da Criação, 1971. Fotografia: Autor não identificado. Acervo MAM Rio.

Propondo atividades experimentais, Frederico Morais atraiu milhares de pessoas à área externa e aos jardins do museu. O que aconteceu ali? Eram happenings? Festa? Arte? Educação? Tudo isso junto? Há um vídeo da Matizar Filmes no Youtube em que Frederico explica com as seguintes palavras: “Os Domingos nasceram como um desdobramento da minha atividade como professor e diretor de curso do museu. Quase como um projeto educativo. Eu queria discutir o próprio conceito de domingo. O que é o domingo dentro numa estrutura, por exemplo, dessa relação de trabalho e lazer? Meio e fim de semana? Trabalho e diversão?”.

“Eu queria superar um essa ideia de um fim de semana cujo lazer é meio convencional, burocrático ou do culto social, ou só do futebol etc. e tal. Eu queria imaginar um domingo que levasse a coisa mais para o lado da criação, da criatividade. Uma das ideias básicas, filosoficamente falando, é que todas as pessoas são inatamente criativas. Só não exercem essa criação se são impedidas de exercer, ou por repressão política, ou por repressão paterna, por uma educação etc.”.

Domingo terra a terra, 1971. Fotografia: Autor não identificado. Acervo MAM Rio.

Domingos de papel, 1971. Fotografia: Autor não identificado. Acervo MAM Rio.

Radical e inovadora, a proposta tinha as seguintes premissas: todos os materiais, incluindo sobras industriais, poderiam ser usados para a realização de trabalhos artísticos; todas as pessoas são inatamente criadoras, se forem motivadas; e a arte substitui o objetivo pela atividade.

Os Domingos da Criação aconteceram em meio às mudanças radicais na arte e cultura brasileira nos anos 1960 e 1970, e ampliaram os sentidos de arte e educação, assim como o conceito o papel do museu.

O domingo por um fio, 1971. Fotografia: Autor não identificado. Acervo MAM Rio.

Um domingos de papel, 1971. Fotografia: Autor não identificado. Acervo MAM Rio.

OS SEIS DOMINGOS

Um domingo de papel
O primeiro evento aconteceu em 24 de janeiro de 1971, em pleno verão. Os materiais, doados por indústrias, eram sacos de papel, papelão, bobinas de papel-jornal, jornal, papel higiênico, embalagens velhas e novas. Carlos Vergara usou uma bobina de 150 quilos para fazer um teatro de papel, com esculturas vivas. Antonio Manuel levantou um barraco para todo mundo entrar. Um turista americano fez esculturas com revistas. O papel virou também serpentina para crianças, jovens e adultos. O domingo foi uma festa.

O domingo por um fio
O segundo evento reuniu cerca de duas mil pessoas, entre adultos e crianças, exercitaram livremente sua imaginação com fios de diferentes materiais. Além do público, artistas participaram com trabalhos especialmente criados para o happening: Ascânio Monteiro realizou uma escultura com fios de cobre e lã; Eduardo Angelo pendurou cordas em uma das passarelas do museu; João Carlos Goldberg realizou obras com cabos elétricos; Sérgio Campos Melo com cordas; Guilherme Magalhães Vaz com fio de bronze; Carlos Henrique Magalhães com fios elétricos e fitas de papel laminado; e Paulo Fogaça fez telas com cordas.

Domingo de tecido
A terceira edição do evento disponibilizou duas toneladas de materiais doados, como retalhos, rebarbas de seda, jérsei, malha, brim, lã, telas e sacos de aniagem, para o público interagir e criar livremente na área externa do museu. A professora Georgette Melhem, do ateliê infantil, realizou atividades com as crianças. Ao longo do dia, artistas fizeram trabalhos diante e também com a participação do público. De tarde, no auditório da Cinemateca do MAM, foram exibidos filmes sobre as edições anteriores do evento, o Domingo de papel e o Domingo por um fio. Também se apresentou o grupo de teatro experimental A comunidade, dirigido por Amir Haddad, que fez jogos dinâmicos e improvisações. Os trabalhos feitos durante todo o dia podiam ser levados embora ou abandonados ali. O que importava era a atividade transformadora.

Domingo terra a terra
O quarto dos históricos encontros aconteceu em 25 de abril e foi um dos mais radicais pela natureza dos materiais oferecidos ao público na área externa do MAM Rio. Vários caminhões com toneladas de areia, cal, cimento, cascalho, saibro, argila, barro e pedra britada foram doados como matérias-primas para criações livres e espontâneas.

“Mesmo assim, o público não se intimidou. Os trabalhos realizados por artistas e anônimos participantes situaram-se entre os extremos do corpo e da produção textual: jogos de palavras, poemas enterrados, como nos trabalhos realizados por Roberto Pontual, Osmar Dillon e Francisco Nascimento. O corpo foi modelado no gesso ou na areia, integralmente ou mediante o agigantamento de fragmentos tais como pés, mãos, torsos ou ancas. Em certos trabalhos buscou-se uma espécie de síntese minimalista entre escultura e arquitetura: projeção no piso, de uma coluna do museu, formas bulbosas, quadrículas etc. O Domingo terra a terra foi a prova de fogo da série, demonstrando, cabalmente, a vitalidade da proposta”, escreveu o crítico e professor Frederico Morais, idealizador do evento, no texto “Cronocolagem: os Domingos da Criação”*.

*Anotações preparadas por Frederico Morais por ocasião da exposição “Anos 70: trajetórias – Domingos da Criação”, no Itaú Cultural (SP, 2001), revisadas e atualizadas para o livro “Domingos da Criação, uma coleção poética do experimental em arte e educação”, coordenado por Jessica Cogan e o Instituto Mesa.

O som do domingo
Primeiro evento da série que não ofereceu nenhum material ao público, este domingo contou com a participação de músicos, instrumentos musicais ou qualquer objeto de onde se pudesse tirar som como caixas de fósforo e folhas de alumínio. Alguns participantes gritavam. No jardim de pedras, o compositor Jaceguai Lins improvisava sons instrumentais junto com o público. E Maurício Salgueiro acionava uma escultura-máquina no pátio do museu, que emitia o som de um sintetizador.

Corpo a corpo do domingo
O release convidava: “leve seu corpo ao Museu de Arte Moderna”. E assim, no dia 29 de agosto de 1971, a área externa do MAM Rio foi ocupada por grupos de dança, teatro, expressão corporal, capoeira, teatro de fantoche, contorcionistas, praticantes de artes marciais, ioga e educação física. O corpo como suporte, meio e/ou linguagem, lançado no espaço, brincando, gesticulando, ágil, lento, mas principalmente expressivo. Participaram da edição: Klauss e Angel Viana, Amir Haddad e seu grupo A Comunidade, Vera Azevedo, Maria Pompeu, entre outros.


Frederico Morais dizia que todas as pessoas são criativas, a não ser que sejam impedidas por algum tipo de repressão – educativa, familiar, política etc. Essa e outras histórias estão no livro “Domingos da Criação, uma coleção poética do experimental em arte e educação”, coordenado por Jessica Gogan e o Instituto Mesa, com colaboração de Frederico Morais.

Links relacionados

Artigo Frederico Morais, os Domingos da Criação e o museu-liberdade, da pesquisadora Jessica Gogan.

Sobre o Curso do MAM para Educadores “50 anos dos Domingos da Criação – museu e experimentação”.

Publicado em 10 de maio de 2021.



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