Artigo de Shion L.
detalhe da obra Por enquanto 35 (2019-2021), de Manauara Clandestina. Foto Fabio Souza
Diante da ocasião de se pensar no décimo-nono aniversário do Mês da Visibilidade Trans e Travesti e, a respeito do cenário cultural, referente aos museus e suas dinâmicas, pergunto: o que tem a travestilidade a ver com as instituições de arte e como observamos essas relações nesse tempo?
Entre as premissas dos espaços de arte, sendo a produção de imagem um de seus principais interesses, compreendo aqui a representação acompanhada de seus cânones e modelos, têm os museus, desse modo, nos ofertado suas coleções e repertórios visuais desde suas formações. Na contemporaneidade, diante das reivindicações político-identitárias e seu boom publicitário nos últimos anos, o mercado de trabalho começa a alertar-se sobre a urgência de se construir equipes mais diversas no Brasil, especificamente no sistema de arte. À serviço da representatividade, fomos atrás de novas imagens, e se estas não estivessem nos acervos, que comissionássemos novas, então.
Referente às discussões acerca da presença de pessoas trans nas instituições de arte, nos cabe, como urgência, avaliar o que devolvem às travestis e pessoas dissidentes de gênero as imagens agenciadas pelos museus? Portanto, quais são os limites da representação? O compromisso com a pedagogia da imagem e a promoção de um encontro estético nos conduz para algo próximo àquilo que Rancière chama de ruído dos corpos1:
A política começa quando há ruptura na distribuição dos espaços das competências – e incompetências. Começa quando seres destinados a permanecer no espaço invisível do trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que não têm para afirmar-se coparticipantes de um mundo comum, para mostrar o que não se via, ou fazer ouvir como palavra a discutir o comum aquilo que era ouvido apenas como ruído dos corpos.
Ao trazer travestis e pessoas dissidentes de gênero para os projetos expositivos, os museus estabelecem um compromisso pedagógico comprometido em tornar estes ruídos dos corpos, sonoridades audíveis preenchidas de nitidez. No entanto, o desafio encontra-se na compreensão de certa medida entre esta educação da imagem e a possibilidade de uma presença dissociada da visão, de modo que possamos perceber, sendo o sistema de arte um espaço das relações trabalhistas, como negociamos a geração de imaginários e a promoção de subsídios e realidades táteis, uma vez que imagens não comem, não pagam contas e não morrem aos 35 anos no Brasil. Vejamos o que analisam Bruna G. Benevides e Sayonara Naider Bonfim Nogueira no Dossiê: Assassinatos e Violência Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 20202, publicado pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) junto ao IBTE (Instituto Brasileiro Trans de Educação):
As travestis e transexuais femininas constituem um grupo de alta vulnerabilidade à morte violenta e prematura no Brasil. Apesar de não haver estudos sistemáticos sobre a expectativa de vida das travestis e transexuais femininas, Antunes (2013) afirma que seja de 35 anos de idade, enquanto a da população brasileira em geral, é de 74,9 anos (IBGE 2013).
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1 RANCIÈRE, Jacques. (p. 59 – 60), 2012.
2 BENEVIDES, Bruna G. NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim. (p. 46)
O MAM Rio, em 2021 exibe na exposição Composições para tempos insurgentes, com curadoria de Beatriz Lemos, Pablo Lafuente e Keyna Eleison, a obra Por enquanto 35 (2019 – 2021) de Manauara Clandestina. Na série fotográfica, a artista se debruça sobre o dado estatístico como um interesse poético para a produção dos retratos instantâneos das 73 travestis e pessoas trans femininas registradas com vida.
Em pesquisa publicada pela FAPESP3 em 2020, no estado de São Paulo, apenas 13,9% de mulheres trans e travestis possuíam envolvimento com o mercado formal. Já a respeito de homens trans, esse percentual aumenta para 59,4%.
Diante do interesse pela produção das imagens desobedientes de gênero, o que o circuito artístico tem a ver com este panorama? As instituições de arte voltam-se, neste momento, para suas primeiras elaborações diante das travestilidades, em sua maioria com enfoque poético e acerca de suas potências narrativas, mas devem também voltar-se para a criação de novas metodologias de convívio e participação, estas que já vêm sendo empreendidas por pessoas trans.
Em Pedagogias das travestilidades4, Maria Clara Araújo dos Passos, ao observar a produção acadêmica travesti no Brasil, com enfoque para Adriana Sales, Marina Reidel e Thiffany Odara, nos conta que estas educadoras desenvolvem suas possibilidades pedagógicas por meio de suas corporalidades5, corroboro aqui e acrescento: não há possibilidade de um convívio travesti sem a elaboração de novos métodos de contato e sem a criação de outras epistemologias. Por isso, a travestilidade é, fundamentalmente, tecnológica e pedagógica por consequência.
Entre algumas participações disruptivas no MAM Rio, carrego comigo a fala de Paula Beatriz de Souza Cruz, a primeira travesti diretora pedagógica da rede estadual de ensino no Brasil, no encontro que teve como tema O que têm as travestilidades a ver com as infâncias?, mesa referente ao curso de curta duração Quando as infâncias convocam o agora6. Enquanto pesquisadora e educadora neste espaço, têm me interessado propor essas relações. Me movimenta imaginar encontros como os de Auá Mendes e Maria Martins, no projeto comissionado AniMAM, tal qual Wassa e Abdias Nascimento na Residência AniMAM: Pesquisa em Artes, um programa interessado em sugerir outros caminhos por meio da produção audiovisual acerca de obras presentes nas coleções do museu:
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3SILVA, Maria Aparecida, 2020.
4PASSOS, Maria Clara Araújo dos, 2022.
5PASSOS, Maria Clara Araújo dos, 2022.
6Curso ocorrido no MAM Rio em 2022.
AniMAM tem como um de seus compromissos apresentar uma obra enquanto tema às infâncias e, ao trabalharmos com artistas a partir de suas pesquisas e, mediante ao acompanhamento crítico, o trabalho não se trata da criação de mais uma homenagem ou elogio aos artistas modernos, mas sim uma residência interessada em propor comentários e revisões através de uma perspectiva contemporânea. (…) A respeito do acompanhamento das pesquisas, uma das principais características da condução se dá na compreensão das negociações entre o tema proposto pela curadoria, as poéticas dos artistas e a invenção de uma abordagem – quais as medidas entre devolver à obra uma impressão e retornar ao mundo uma produção generosa e que convide para uma revisão coletiva?7
Ainda a respeito das iniciativas de revisão dos acervos e os diálogos com produção moderna, em 2021, durante a exposição Fayga Ostrower: formações do avesso, ocasião que marcou o centenário da artista e educadora, observar sua produção por meio de repertórios dissidentes na contemporaneidade me parecia um desafio, ainda que tratando-se de uma intelectual tão interessada pelo mistério e pela análise dos processos cognitivos como geradores de um mundo. Em que momento esses repertórios se atravessavam? De que maneiras o conhecimento intuitivo8 de Fayga se relacionaria às práticas relacionadas à vivência como método nas artes? Tornar ruídos em outras sonoridades. Trago isso para meus processos de mediação e acredito que essas movimentações nos contem também sobre as tecnologias travestis.
É histórico para o MAM Rio ter uma travesti construindo processos educativos, curatoriais e formativos, seja na interface da Educação, nas exposições ou na programação, cuja interseccionalidade entre esses campos possa vir a contribuir para uma elaboração institucional não estética, mas no âmbito trabalhista e de produção intelectual.
Sabemos que o processo de socialização das travestis no Brasil teve seu curso associado à debilidade do mercado formal, sendo as artes, sobretudo a performance, um espaço profissionalizante e formador alternativo à prostituição, ofício este que constiui o imaginário social brasileiro e seus estigmas sobre a travestilidade. Por isso, a restauração deste imaginário não pode ser constituída, unicamente, por meio da produção de imagens, e que façamos disso um lembrete para que a arte contemporânea e suas dinâmicas não tornem-se apenas uma plataforma da manutenção das relações de alteridades já conhecidas.
Uma vez que firmaram-se as travestis na performance, nas artes e na construção de metodologias dissidentes como práticas de subsistência, é responsabilidade dos espaços institucionalizantes, interessados por seus saberes e tecnologias, devolverem também os subsídios destituídos a elas.
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7Trecho da entrevista com Shion L oferecida à ZAIT, 2022.
8O conhecimento intuitivo imediato repercute em nós como um reconhecimento imediato. As memórias de situações anteriores já vividas servem de referência aos dados novos. Estes, em novas integrações, por sua vez se transformam em conteúdos referenciais. Sempre nos reencontramos e nos reconhecemos. OSTROWER, Fayga. 1997.
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Shion L é pesquisadora, artista e educadora. No campo de pesquisa, sua produção escrita atravessa interesses entre estudos de gênero, museus e educação. Atua na composição da equipe de Educação do MAM Rio com ênfase na concepção de programas de formação e projetos contínuos.
Referências
BENEVIDES, Bruna G. NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim. Dossiê: Assassinatos e Violência Contra Travestis e Transexuais Brasileiras, ANTRA, IBTE, 2021.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Editora Vozes, 1977.
PASSOS, Maria Clara Araújo dos. Pedagogias das travestilidades. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2022.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Martins Fontes, São Paulo, 2012.
SILVA, Maria Aparecida. Trabalho e saúde na população transexual: fatores associados à inserção no mercado de trabalho no estado de São Paulo, Brasil. Scientific Electronic Library Online, 2020.
ZAIT. Entrevista, 2022.